05 Mai 2021
"O projeto planetário que os governos tentam impor é, portanto, radicalmente impolítico. Ele se propõe, aliás, a eliminar da existência humana todo elemento genuinamente político, para substituí-lo por uma governamentalidade baseada apenas em um controle algorítmico. Cancelamento do rosto, afastamento dos mortos e distanciamento social são os dispositivos essenciais dessa governamentalidade", escreve Giorgio Agamben, filósofo italiano, em artigo publicado por Zurich Zeitung, 30-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Parece que, na nova ordem planetária que está se formando, duas coisas, aparentemente sem relação entre si, estão destinadas a ser totalmente removidas: o rosto e a morte. Tentaremos investigar se elas não seriam, ao contrário, de alguma forma conectadas e qual é o sentido de sua remoção.
Já era conhecido dos antigos que a visão do próprio rosto e do rosto dos outros é uma experiência decisiva para o ser humano: "O que se chama ‘rosto’ - escreve Cícero - não pode existir em nenhum animal exceto no homem" e os gregos definiam o escravo, que não é senhor de si mesmo, aproposon, literalmente "sem rosto". Claro que todos os seres vivos se mostram e se comunicam uns com os outros, mas só o homem faz do rosto o lugar de seu reconhecimento e de sua verdade, o homem é o animal que reconhece seu rosto no espelho e se espelha e se reconhece no rosto do outro. O rosto é, neste sentido, ao mesmo tempo a similitas, a semelhança e a simultas, o estar junto dos homens. Um homem sem rosto está necessariamente sozinho.
É por isso que o rosto é o lugar da política. Se os homens tivessem que comunicar sempre e apenas informação, sempre isso ou aquilo, nunca haveria política propriamente dita, mas apenas troca de mensagens. Mas, visto que os homens precisam em primeiro lugar comunicar a sua abertura, seu reconhecer-se mútuo em um rosto, o rosto é a própria condição da política, aquilo em que se assenta tudo o que os homens falam e trocam.
O rosto é, neste sentido, a verdadeira cidade dos homens, o elemento político por excelência. É olhando para o rosto que os homens se reconhecem e se apaixonam, percebem semelhança e diversidade, distância e proximidade. Se não há uma política animal, é porque os animais, que já estão sempre à vista, não fazem de sua exposição um problema, simplesmente vivem nela sem se importar com ela. Por isso eles não se interessam pelos espelhos, pela imagem como imagem. O homem, por outro lado, quer se reconhecer e ser reconhecido, quer se apropriar de sua própria imagem, busca nela sua própria verdade. Ele transforma, assim, o ambiente animal em um mundo, no campo de uma incessante dialética política.
Um país que decide renunciar ao seu próprio rosto, cobrir os rostos dos seus cidadãos com máscaras em toda parte é, portanto, um país que cancelou de si todas as dimensões políticas. Nesse espaço vazio, submetido a cada instante a um controle sem limites, agora se movem indivíduos isolados uns dos outros, que perderam o fundamento imediato e sensível de sua comunidade e podem apenas trocar entre si mensagens dirigidas a um nome sem rosto. E sendo o homem um animal político, o desaparecimento da política significa também a remoção da vida: uma criança que, ao nascer, não vê mais o rosto da mãe, corre o risco de não poder conceber sentimentos humanos.
Não menos importante que a relação com o rosto, é para os homens a relação com os mortos. O homem, o animal que se reconhece no próprio rosto, é também o único animal que celebra o culto dos mortos. Não é surpreendente, então, que também os mortos tenham um rosto e que o cancelamento do rosto ande em paralelo com a remoção da morte.
Em Roma, o morto participa do mundo dos vivos por meio de sua imago, imagem moldada e pintada em cera que cada família conservava no átrio de sua casa. O homem livre é, em outras palavras, definido tanto por sua participação na vida política da cidade quanto por seu ius imaginum, o direito inalienável de guardar o rosto de seus ancestrais e exibi-lo publicamente nas celebrações da comunidade. “Após o sepultamento e os ritos fúnebres - escreve Políbio - a imago do morto era colocada no ponto mais visível da casa em um relicário de madeira e essa imagem é um rosto de cera feito em total semelhança tanto por forma quanto por cor”. Essas imagens não eram apenas objeto de uma memória privada, mas eram o sinal tangível da aliança e da solidariedade entre os vivos e os mortos, entre passado e presente que era parte integrante da vida da cidade.
Por isso desempenhavam um papel tão importante na vida pública, tanto que foi possível afirmar que o direito às imagens dos mortos é o laboratório em que se funda o direito dos vivos. Tanto que quem havia se manchado com um grave crime público perdia o direito à imagem. E a lenda reza que quando Rômulo fundou Roma, fez cavar um poço - chamado mundus, "mundo" – em que ele mesmo e cada um de seus companheiros lançam um punhado da terra de onde provêm. Esse poço era aberto três vezes por ano e dizia-se que naqueles dias os Mani, os mortos entravam na cidade e participavam da existência dos vivos. O mundo nada mais é que o limiar através do qual os vivos e os mortos, o passado e o presente se comunicam.
Entende-se então por que um mundo sem rostos só possa ser um mundo sem mortos. Se os vivos perdem seu rosto, os mortos tornam-se apenas números, que, na medida em que foram reduzidos à sua pura vida biológica, devem morrer sozinhos e sem funerais.
E se o rosto é o lugar onde, antes de qualquer discurso, comunicamos com os nossos semelhantes, então até mesmo os vivos, privados de sua relação com o rosto, por mais que tentem se comunicar com dispositivos digitais, estão irreparavelmente sós.
O projeto planetário que os governos tentam impor é, portanto, radicalmente impolítico. Ele se propõe, aliás, a eliminar da existência humana todo elemento genuinamente político, para substituí-lo por uma governamentalidade baseada apenas em um controle algorítmico. Cancelamento do rosto, afastamento dos mortos e distanciamento social são os dispositivos essenciais dessa governamentalidade, que, segundo as declarações concordantes dos poderosos, deverão ser mantidos mesmo quando o terror sanitário se tiver amenizado. Mas uma sociedade sem rosto, sem passado e sem contato físico é uma sociedade de espectros, como tal condenada a uma mais ou menos rápida ruína.
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O rosto e a morte. Artigo de Giorgio Agamben - Instituto Humanitas Unisinos - IHU