20 Junho 2020
"O Auxílio Emergencial pago a 64 milhões de pessoas está ameaçado pelo governo Bolsonaro-Guedes. Começou uma campanha da sociedade civil para defendê-lo. Parece ser por dinheiro, mas é por um mundo novo. Por isso, vale a pena", escreve Antonio Martins, editor do sítio OutrasPalavras, em artigo publicado por OutrasPalavras, 18-06-2020.
Vinte centavos sacudiram o Brasil, em 2013. Diante de manifestações gigantescas pela redução das tarifas de ônibus, o governo de esquerda amedrontou-se, temendo a autonomia das ruas. Os líderes do movimento erraram feio em suas análises da correlação de forças. Uma sucessão de equívocos grosseiros permitiu que a direita capturasse a onda de protestos e, dois anos e meio depois, o poder.
Mas fenômenos semelhantes vêm se repetindo com frequência e intensidade crescentes, em latitudes e circunstâncias políticas distintas. Um imposto “ecológico” sobre a gasolina (que na verdade ampliava a injustiça fiscal) fez nascer na França, em outubro de 2018, a rebelião dos gillets jaunes. Em setembro de 2019, no Equador, um levante indígena e das periferias arrasou a popularidade do presidente Lênin Moreno, após um aumento de 30% nos preços da gasolina, imposto por acordo com o FMI. Um mês depois, no Chile, uma elevação de 3,75% nas passagens de metrô despertou os catracazos secundaristas, destapou trinta anos de revoltas contra as políticas neoliberais e obrigou o presidente Piñera e o Parlamento conservador a aceitarem uma Constituinte. Também em outubro, no Líbano, a introdução de um imposto sobre o whatsapp, de 2 dólares por mês, desencadeou protestos inéditos, queda do governo e uma crise política ainda irresolvida, que inclui moratória da dívida externa.
Serão os R$ 600 do “auxílio emergencial” criado em março o estopim de uma nova revolta brasileira? Ou – talvez melhor – poderão abrir, enfim, um debate sobre os rumos do país, no pós-pandemia? Criarão, além disso, condições políticas para uma Renda Básica permanente, universal e capaz de assegurar vida material digna?
É impossível saber, a esta altura. Mas na última quarta-feira (17/6) um novo ingrediente foi adicionado ao caldo de contradições, potencialmente explosivo, em que o governo trama a extinção do benefício. Um conjunto de 163 organizações e movimentos, articulados em torno da campanha “Renda Básica que queremos” apresentou ao Congresso a proposta de sua prorrogação até dezembro. O valor permanece o mesmo, mas há avanços importantes. Entre eles, reduz-se a intrincada burocracia que excluiu milhões, atrasou pagamentos e obrigou a formação de filas humilhantes. Estendem-se os R$ 600 aos trabalhadores da economia formal cuja renda familiar per capita seja inferior a meio salário mínimo. Elimina-se a exclusão dos que tiveram renda superior a R$ 28 mil em 2018 – o que pode contemplar parte dos uberizados, até agora barrados por Bolsonaro.
Nas próximas quatro semanas, o debate em torno do Auxílio Emergencial pode migrar para o centro da agenda política. A última das três parcelas aprovadas pelo Congresso em 1º de abril começa a ser paga hoje (18/6). Mas a pandemia e o colapso econômico prosseguem, sem dar sinais de amainar. A partir de 18 de julho, cerca de 81 milhões de pessoas, para as quais os R$ 600 são indispensáveis, poderão despencar num abismo de exclusão ainda mais profundo. A demanda surpreendente pelo benefício – que em princípio deveria dirigir-se apenas aos “mais pobres” – revela como regrediu a Economia brasileira; como é insano pretender que ela “volte ao normal” após a covid-19; como é falso o discurso segundo o qual o país, após as contrarreformas de 2016-18, preparava-se “para decolar”.
O governo está em saia justa e em desconforto crescente. Por um lado, o fim do Auxílio poderá abalar a já declinante popularidade do presidente – em especial nas camadas sociais onde ele ganhou um tímido alento. Por outro, a oligarquia financeira, base política essencial para sustentar Bolsonaro no poder, em meio a seus crimes e desatinos, dá sinais de impaciência: deseja impor, o mais breve possível, novos limites ao gasto social e a volta do que chama de “disciplina fiscal”.
No Congresso, por onde a extensão do Auxílio Emergencial terá de passar, reina a ambiguidade. O alinhamento ideológico com as ideias neoliberais é vastíssimo e ficou demonstrado em todas as contrarreformas dos últimos anos. No entanto, a ideologia, apenas, não coloca votos em urna. Haverá eleições em breve, os parlamentares sabem que seu prestígio é baixo e a pandemia tem-nos levado a concessões que talvez em outros tempos fossem impossíveis. São exemplos disso, além da própria votação dos R$ 600 por três meses, em abril, a mais recente aprovação a Lei Aldir Blanc, que investe R$ 3 bilhões na Cultura.
A novidade essencial introduzida em 17/6, pela proposta das 163 organizações, é criar um polo de mobilização. Agora, a luta para prolongar o auxílio emergencial, introduzir um embrião de Renda Básica no Brasil e questionar a “volta ao velho normal” não é apenas uma quimera – nem depende de um gesto de “boa vontade” do Palácio do Planalto ou do Congresso. Há instrumentos claros para agir: no momento, uma petição, indicações sobre como pressionar os parlamentares. Em breve, articulações com partidos, personalidades, antigos e novos “influenciadores” darão mais caldo à mobilização. Num país infelicitado pela pandemia e por um governo de devastação nacional, está surgindo um respiro, uma oportunidade nova para atuar, refletir e questionar. Porque a Renda Básica é, em muitos sentidos, a antítese do projeto de concentração brutal de riquezas, eliminação de direitos e esvaziamento da democracia, que o Brasil vive desde 2016. É o que veremos isso a seguir.
Auxílio Emergencial já transfere, para as maiorias,
quinze vezes mais renda que o Bolsa Família. Sua grandeza sinaliza
quanto o Estado poderá fazer, quando deixar de ser colonizado pelo 0,1%
Nos planos iniciais do governo, o Auxílio Emergencial era uma espécie de compensação, um “cala-boca”. Em 23/3, em sintonia com autoridades monetárias de outros países, o Banco Central (BC) ofereceu à banca privada um pacote de benefícios financeiros equivalente a R$ 1,2 trilhão. No mesmo período, tramitava no Congresso a chamada Emenda Constitucional do Orçamento de Guerra, que autorizaria o mesmo BC a comprar, pelo valor de face, créditos irrecuperáveis (os chamados “títulos podres”) em poder de bancos e corporações. A justificativa, como sempre nestas ocasiões, era “resgatar” o sistema financeiro, por meio de injeções de “liquidez”.
Mas e para salvar a população açoitada pela pandemia? Em março, no conjunto de medidas adotadas em meio à pandemia, o governo ofereceu algo como uma esmola. Um pagamento de R$ 200 mensais, apelidado pelo Palácio do Planalto de “coronavoucher”, equivalia a mínimos R$ 6,66 por dia – pouco mais que três notas de R$ 2. O projeto governamental foi atravessado por uma articulação rápida, liderada pela sociedade civil, apoiada pelos partidos de oposição (e descrita em mais detalhes no próximo tópico do texto). Quando se formou uma maioria nítida em favor de R$ 500, o Palácio do Planalto cedeu e elevou o valor em mais R$ 100, numa jogada (em grande parte bem-sucedida) para apresentar o benefício como sua criação.
Mas as dimensões que o “voucher” assumiria surpreenderam a todos. No início de junho, o número estava, segundo a Caixa, em 64,1 milhões. Além disso, 16,7 milhões, que cumprem os requisitos mas a quem foram solicitados documentos adicionais, estavam na fila de espera. Embora indignem, as concessões indevidas (servidores militares, Luciano Hang, pessoas de renda alta) não são relevantes, do ponto de vista estatístico. Só as solicitações já aprovadas já tornam o Auxílio Emergencial cerca de quinze vezes superior, em montante, ao bolsa-família: são R$ 38,4 bilhões transferidos mensalmente, contra cerca de R$ 33 bilhões ao ano. Além de pagar cerca de cinco vezes mais (são de R$ 89 a R$ 178, no bolsa-família), o Auxílio Emergencial abrange uma população maior. A diferença aparece graficamente nos mapas abaixo, construídos por O Globo com base em dados do governo federal.
(Divulgação/Outras Palavras)
As consequências humanas são ainda mais importantes. No mesmo jornal, os repórteres Pedro Capetti e Geralda Doca traçaram, em 12/6, um pequeno panorama dos resultados. Milhões de pessoas, atingidas pela quebra da economia, usam previsivelmente o benefício para se alimentar. Mas outro fenômeno emergiu, mostram eles: a redução parcial das dívidas bancárias das famílias mais pobres. Segundo os últimos dados da Confederação Nacional do Comércio, já chega a 66,5% do total a percentagem de domicílios endividados – submetidos ao pagamento dos juros mais altos do mundo. A dívida total das pessoas físicas ultrapassa 3,1 trilhões de reais: em média, quase R$ 15 mil por brasileiro…
As sucessivas “reformas” econômicas adotadas desde 2016 (Trabalhista, da Terceirização, da Previdência, do Congelamento do Gasto Social, entre outras) prometiam um mercado de trabalho “dinâmico”. Livre das “amarras” regulatórias, os empresários se sentiriam livres para contratar, e a redução dos índices de desemprego pressionaria os salários para cima. O fato de 80,7 milhões de brasileiros credenciarem-se a um benefício que tem como um dos critérios possuir renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo (R$ 511) revela como este discurso era falso e indica como é preciso alterar radicalmente os rumos.
Mas como assegurar esta mudança de rumos, se o governo quer evitá-la a todo custo?
Esvaziada, a democracia brasileira não abre espaço
para debater em profundidade a Renda Básica.
Mas a tramitação do Auxílio Emergencial revela brechas que é preciso aproveitar
Se o Brasil fosse uma democracia digna do termo, o destino do Auxílio Emergencial estaria pautado com destaque no Congresso e seria manchete todos os dias nos jornais e na TV. O governo trama abertamente o fim do benefício. A vida de 81 milhões de pessoas (sem contar seus dependentes menores de 18) será atingida gravemente. Em meio a uma pandemia que não arrefece, elas podem ver-se obrigadas, em quatro semanas, a se lançar em desespero às ruas, para sobreviver. Muitas perderão o teto e a comida, como já adverte a FAO, agência da ONU para alimentação.
Mas tal prioridade não existe para os parlamentares, conta José Antonio Moroni, integrante do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e um dos coordenadores da campanha pela prorrogação do auxílio emergencial. “Se os trâmites do Parlamento já são incertos em tempos normais, imagine em épocas de covid-19”, diz ele. As sessões presenciais da Câmara e Senado estão compreensivelmente suspensas. As votações são feitas à distância. Mas o que poderia ser uma oportunidade para publicizar a atividade dos representantes do povo (com apresentação online aos temas em debate e ao posicionamento dos congressistas, por exemplo) converteu-se em mais opacidade. A pauta é fixada exclusivamente pelos presidentes da Câmara e Senado. Sequer as reuniões de líderes dos partidos ocorrem com regularidade. Nesse cenário, não há a mínima ideia sobre quando, e de que forma, entrará em votação o destino do Auxílio Emergencial.
Recorre-se a artifícios – e a campanha pelos R$ 600 tem sido particularmente hábil e criativa em manejá-los. Em março, no esforço que transformou o “coronavoucher” no Auxílio Emergencial, por exemplo, três instrumentos mostraram enorme capacidade de viralizar e repercutir. O escritor e ator Gregorio Duvivier talvez tenha dado a partida, ao produzir uma edição especial do GregNews dedicada ao tema. Um grupo de cerca 2 mil youtubers, articulado pela matemática Tatiana Roque repercutiu as ideias básicas. Esta densidade permitiu que uma petição online escapasse da previsibilidade deste instrumento, e reunisse, em poucos dias, 500 mil adesões. A história está contada numa extensa matéria que a economista Alessandra Orofino escreveu para a revista Piauí.
Alessandra também narra como se passou a uma segunda etapa, já no Congresso. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, havia formado uma comissão de deputados encarregada de examinar medidas socioeconômicas relativas à pandemia. Cinco de seus integrantes –, Orlando Silva (PcdoB-SP), Tabata Amaral (PDT-SP), Mauro Benevides Filho (PDT-CE), Felipe Rigoni (PSB-ES) e Arnaldo Jardim (Cidadania-SP) serviram de interlocutores entre a campanha e Maia. Ao fim, a proposta tomou a forma de um projeto de lei apresentado pelo deputado Eduardo Barbosa (PSDB-PA), aprovado em sessão virtual e votação simbólica.
Na nova batalha, iniciada em 17/6, o cenário tende a ser muito distinto, Já não haverá o clima de surpresa com a pandemia, nem de busca, quase ingênua, do “bem comum”, entre parlamentares de um vasto leque de siglas. Será uma disputa política mais clássica e renhida. Há dois fatores novos, ambos com enorme peso. Por um lado, em favor da prorrogação do Auxílio Emergencial, pesam seu sucesso inegável, sua viabilidade comprovada e – em especial – o trauma material e político que sua retirada pode significar, para 80,7 milhões de brasileiros. Por outro, contra este embrião de Renda Básica, conspiram o governo Bolsonaro e a oligarquia financeira.
Como todas as propostas transformadoras e populares, a Renda Cidadã está sujeita a captura.
O ministro Paulo Guedes não pensa em outra coisa.
Mas há muito espaço para evitar que seu plano seja bem-sucedido.
Ao longo da pandemia, deu-se um movimento – limitado, porém, importante – na base de apoio social ao governo Bolsonaro. Todas as últimas pesquisas revelam que ele perdeu força no conjunto da população. Ficaram para trás os tempos em que um terço da sociedade o apoiava, um terço o rejeitava com todas as forças e um terço permanecia “isento”. Agora, a rejeição aproxima-se dos 50% e os defensores fiéis encolhem para menos de 30%. Vem daí o mote “somos 70%”. Mas além disso, houve uma migração social do apoio.
Entre os mais ricos, mais brancos e mais escolarizados – o grupo em que o capitão foi, desde as eleições, majoritário – seu apoio despencou, certamente devido às insanidades “queima-filme” cometidas durante a pandemia. Em contrapartida, entre os economicamente mais pobres, a sustentação permaneceu minoritária – mas cresceu alguns pontos. A causa deste último movimento é, precisamente, o Auxílio Emergencial. Com pouco acesso à informação, uma parcela dos beneficiários dos R$ 600 reais taxa os pagamentos como “dinheiro do governo” – e agradece. Agora, mostra uma das últimas pesquisas, apenas 28% ainda consideram o governo “bom” ou “ótimo”. Mas entre os que recebem o Auxílio Emergencial, esta parcela sobe para 34%.
Mas o que poderia ser um trunfo converte-se, nos limites estreitos do projeto bolsonarista, em dor de cabeça. Embora tenha crescido, o apoio do governo entre os mais pobres é minoritário e volátil, mostram as mesmas pesquisas. Desaparecerá junto com os R$ 600 – podendo transformar-se em ira. Além disso, não compra votos no Congresso, nem influência no Judiciário, nem espaço na mídia.
Quem garante hoje a presença do ex-capitão no palácio – e em liberdade – não são seus seguidores evangélicos, ou a baixa oficialidade do exército e PMs. É o 0,1%, a aristocracia financeira. Esta classe, mínima mas poderosa e influente, tem pressa e foco. Está insegura: o cassino financeiro ruiu em todo o mundo, e sua salvação ainda não está assegurada. Em muitos setores economicamente relevantes, há empresas quebradas; e há bancos que podem desabar, caso estas corporações tornem-se insolventes. Todos precisarão ser salvos pelo Estado. Enquanto Paulo Guedes permanecer no governo, Bolsonaro será a garantia do resgate. Aí estão o 1,2 trilhão de benefícios aos bancos, ou a Emenda Constitucional do Orçamento de Guerra.
* * *
Paulo Guedes tem uma proposta para o Auxílio Emergencial. Quer transformá-lo no oposto do que é a Renda Básica. Esta sugere redistribuir a riqueza, numa era em que as máquinas fazem boa parte do trabalho antes realizado por humanos. Sustenta que, dadas as próprias modificações na produção, esta redistribuição já não pode ser realizada por meio dos aumentos salariais: hoje, eles beneficiam apenas uma minoria. Propõe, como alternativa, que todos tenham acesso a meios financeiros para uma vida digna, independentemente de trabalharem. Defende que este benefício seja complementar a uma espécie de Revolução dos Comuns: a garantia de serviços públicos excelentes e desmercantilizados: Saúde, Educação, Moradia, Transportes oferecidos gratuitamente ou a preços módicos.
Mas há uma versão deturpada da Renda Básica, concebida por economistas ultraliberais como Milton Friedman e defendida há décadas por instituições como o Banco Mundial. Implica privatizar e mercantilizar os serviços públicos – criando uma nova fronteira para a acumulação capitalista. Nessa lógica, tudo o que hoje é Comum (o SUS, por exemplo) pode ser transferido ao mercado e à lógica do lucro e da desigualdade. Cada pessoa pagará segundo suas posses monetárias. Aos empobrecidos, restará o pouco que puderem comprar… usando as migalhas que o Estado lhes oferecerá.
Paulo Guedes defendeu abertamente esta proposta, numa reunião ministerial em 9/6. Segundo sua visão, haverá, após as três parcelas, uma redução drástica do benefício – para R$ 200 ou 300. Em seguida, ele se tornará permanente, mas assumirá a forma de uma “Renda Brasil”. Esta última estará vinculada à redução drástica dos direitos sociais. Virá acompanhada da “Carteira de Trabalho Verde e Amarela”, que desidrata tanto quanto possível a proteção trabalhista, e do fim da contribuição patronal à Previdência – o que inviabilizará por completo a Seguridade Social.
O ministro está cheio de planos perversos. Valeria perguntar-lhe, à moda de Garrincha, em 1958: “Já combinou com os russos?”
A campanha iniciada em 17/6 convida a compreender em profundidade
os mecanismos monetários que se escondem por trás do capitalismo contemporâneo.
Ela não é por R$ 600 – embora comece com eles. Por isso, vale fazê-la
A apresentação de uma proposta clara de Auxílio Emergencial pela sociedade civil, em 17/6, teve um efeito político essencial. Ela corta o espaço com que Bolsonaro e Guedes poderiam contar, para fingir uma “concessão”. Quanto mais o novo projeto, suas bases e seus argumentos tornarem-se conhecidos, melhor se estabelecerá a disputa política, e menos condições terá o governo para afirmar que está oferecendo o “benefício possível”.
Porém, o efeito será ainda maior se a ideia de perenizar o Auxílio Emergencial vier acompanhada de uma provocação mais profunda – que ajude a compreender a natureza do capitalismo contemporâneo; seus mecanismos de acumulação de riquezas; o papel dos Estados, em assegurá-los; e as possibilidades reais de inverter esta ação.
Este esforço exige expor a capacidade de criação de moeda dos Estados. Uma Reforma Tributária é indispensável e urgente, no Brasil. Mas garantir a continuidade do Auxílio Emergencial; e estabelecer, mais além, uma autêntica Renda Básica – que seja universal e que assegure de fato condições para uma vida digna, independentemente de trabalho – são objetivos que não dependem desta Reforma Tributária.
As sociedades precisam se apropriar também dos mecanismos monetários de redistribuição (ou concentração) de riquezas. Quando num país periférico, como o Brasil, o Banco Central permite que a banca privada crie 1,2 trilhão de reais; ou quando os bancos centrais dos países mais ricos anunciam que emitirão “todo o dinheiro que for necessário” para salvar os mercados financeiros, eles não remanejam um único centavo dos Orçamentos públicos. Eles alteram o balanço de riquezas emitindo moeda nova – “fictícia”, contudo com o mesmo poder de compra da moeda tradicional. Quando um investidor internacional adquire um imóvel numa zona valorizada de uma metrópole brasileira, e afasta uma família local; ou quando assume o controle de uma empresa brasileira, ninguém lhe pergunta a origem de seus dólares ou euros. Foram gerados a partir do acúmulo capitalista tradicional? Foram criados pelo Banco Central norte-americano ou europeu? Não importa: têm idêntico poder de compra, em qualquer situação.
E é aqui que aflora, ao contrário da redução da Economia a um conjunto de técnicas de cálculo, sua possível dimensão ética e humanística. A que serve, afinal, o manejo das riquezas produzidas pelo ser humano? A “voltar ao normal” e continuar reproduzindo uma sociedade em que seis homens brancos acumulam tanto quando a metade mais empobrecida do planeta? A estimular lógicas de competição sem limites que autorizam a buscar, em qualquer parte do mundo, o trabalho humano mais barato e a natureza mais fácil de devastar? Ou a tirar proveito da pandemia, e do choque reflexivo que ela provoca, para dizer que “nada será como está”! E estabelecer novas relações sociais?
Talvez a luta para manter o Auxílio Emergencial e para criar, além dela, uma Renda Básica real desencadeie explosões populares como as que sacudiram a França, o Equador, o Chile, o Líbano e o próprio Brasil, nos últimos anos. Talvez, não. Mas algo parece certo: ela tem a vocação de dizer: “não é por R$ 600” – embora comece com eles. Por isso, vale travá-la.
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Os R$ 600 que podem mudar a face do Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU