25 Abril 2020
"Se, por um lado, temos o desafio de parar a proliferação do coronavírus, cuidar dos infectados e dos doentes com Covid-19, por outro, precisamos entender que pessoas estão morrendo devido à Covid-19. Contudo, nunca podemos aceitar que elas morram como objetos largados em um leito hospitalar ou no chão de um corredor de algum pronto-socorro. O valor da vida humana não permite isso, nem mesmo em meio a um contexto excepcional de urgência e escassez", escreve Alexandre A. Martins, professor de bioética e ética social na Marquette University em Wisconsin, nos EUA.
Segundo ele, "o cuidado é uma arte na qual regras e protocolos não são suficientes para determiná-lo. O cuidado é uma arte exercida 'com o coração nas mãos'. Nos momentos mais desafiadores, a arte do 'coração nas mãos' encontra caminhos criativos para promover o cuidado e ajudar as pessoas a morrer com dignidade. A arte do 'coração nas mãos' encontra caminhos para confortar famílias sofrendo porque não podem se despedir dos que amam, enterrados em uma vala comum sem direito a um funeral".
A existência de um ser racional como nós inclui saber que a vida tem um limite. Somos seres finitos para os quais a existência acaba, isto é, nós morreremos. A consciência dessa realidade ainda impacta a maioria dos membros da nossa espécie. É difícil aceitar que muitas pessoas que amamos vão morrer; e que nós também morreremos. Há aqueles que olham para a morte como o fim de um processo biológico experienciado por qualquer organismo vivo. Isso é verdade. Dessa forma, a morte não deveria ser algo dramático; é apenas o fim do processo de um organismo vivo que levará ao início de outro processo na natureza, tal como a decomposição. Lembro aqui as palavras de Antoine Lavoisier: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Como parte da natureza, estamos no mesmo processo de transformação bioquímica. Contudo, esse processo de transformação não é visto de modo tão simples quando somos confrontados com a morte de pessoas que amamos ou mesmo com a nossa própria morte.
Acabamos de celebrar a Páscoa, a festa da vitória da vida sobre a morte. Os cristãos professam a fé na esperança da ressurreição: a morte não é a última palavra, mas, sim, a vida eterna no amor misericordioso de Deus. Páscoa é a fé no Mistério Pascal da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Contemplando a sua cruz, raios de esperança resplandecem a partir do amor crucificado que derrotou a morte. Iluminados pelo Mistério Pascal, a morte torna-se apenas uma passagem da existência histórica à salvação escatológica. Particularmente para os cristãos, o fim de uma existência histórica não deveria ser o pior dos males, mas apenas parte de um processo que unifica o imanente com o transcendente no seio da existência de Deus. Porém, o drama da morte ainda está presente nos sentimentos, até mesmo dos fiéis mais piedosos.
A morte não é um acontecimento fácil. Claro que algumas pessoas lidam melhor com a morte do que outras. Acompanhado pacientes terminais e estando com eles e seus familiares nos últimos minutos de vida em várias ocasiões, testemunhei que a morte é um momento forte da vida, uma mistura de sofrimento e esperança, de dor e amor. Considerando essa realidade paradoxal, prefiro transferir meu olhar para o processo de morte e me pergunto como podemos tornar a morte menos dolorosa, já que, como animais racionais, desenvolvemos tecnologia suficiente para melhorar e prolongar nossas vidas. Em outras palavras: o problema não é a morte em si mesma, mas evitar que a vida acabe sem dignidade.
São Camilo de Lellis (1550-1614), fundador da Ordem dos Ministros do Enfermos, conhecida como Camilianos, iniciou sua obra com doentes abandonados no Hospital São Tiago do Incuráveis em Roma. Num tempo em que cuidar dos enfermos não era algo nobre e muitas vezes era uma forma de punição, Camilo de Lellis reuniu um grupo de pessoas que desejavam cuidar dos doentes com compaixão e ternura. “Mais coração nas mãos” era uma das frases favoritas de Camilo para encorajar seus companheiros no modo como eles deveriam cuidar dos enfermos.
No século XVI, a medicina não era tão desenvolvida como hoje. As pessoas doentes não tinham bons prognósticos e, em muitas situações, a doença se tornava praticamente uma sentença de morte. A Europa também enfrentou muitas pragas, epidemias de doenças contagiosas que mataram muitas pessoas. Durante as pragas, uma das principais medidas era pôr as pessoas infectadas em quarentena e deixá-las morrer isoladas em vista de conter a proliferação da praga. São Camilo e seus companheiros acreditavam que essas pessoas desafortunadas mereciam mais do que morrer sozinhas. Elas eram seres humanos que mereciam cuidado especial para morrer bem. Assim, muitos camilianos arriscaram suas vidas para cuidar das vítimas das pragas com “o coração em suas mãos”. Vários camilianos até morreram servindo esses enfermos e foram, mais tarde, reconhecidos como mártires da caridade pela Igreja Católica. Contudo, uma das coisas mais interessantes ocorridas durante períodos de pragas foi que os camilianos ficaram conhecidos como padres da boa morte.
A pandemia do coronavírus e da Covid-19 impõe desafios à vida e à morte. Atualmente, medidas como pôr em quarentena os infectados para que morram isolados, visando conter o avanço das contaminações pelo vírus são impensáveis. Uma das medidas mais encorajadas é o distanciamento social entre as pessoas saudáveis, em quarentena em suas próprias casas. Ademais, agirmos para identificar os infectados e disponibilizar assistência médica aos doentes com Covid-19. Muitas pessoas com a mesma doença, necessitando do mesmo tratamento ao mesmo tempo, criam um gigantesco drama para qualquer sistema de saúde no mundo; mesmo os países mais ricos sofrem com escassez de recursos médicos e muitas questões éticas surgem na busca de melhor responder à pandemia e ao seu impacto no sistema de saúde. Decisões dramáticas precisam ser tomadas. O objetivo é parar o avanço do vírus e cuidar dos enfermos com a ajuda da medicina moderna. Todavia, muitas pessoas continuam morrendo, mais do que em qualquer situação normal.
Se, por um lado, temos o desafio de parar a proliferação do coronavírus, cuidar dos infectados e dos doentes com Covid-19, por outro, precisamos entender que pessoas estão morrendo devido à Covid-19. Contudo, nunca podemos aceitar que elas morram como objetos largados em um leito hospitalar ou no chão de um corredor de algum pronto-socorro. O valor da vida humana não permite isso, nem mesmo em meio a um contexto excepcional de urgência e escassez. A morte é, sim, o fim de um processo biológico; mas a dignidade da vida humana – algo intrínseco dado por Deus antes mesmo da existência individual, como afirma a tradição cristã, ou um valor inerente, como é reconhecida pela Declaração dos Direitos Humanos – não nos dá a opção de deixar que esse processo chegue ao seu fim sem o cuidado necessário para uma boa morte.
Por mais conscientes que sejamos sobre o fim da existência, ainda temos dificuldade para aceitar a morte. Mesmo acreditando na esperança da ressurreição, sofremos diante da passagem da vida histórica à escatológica. Independentemente da dramaticidade da situação e do tamanho do sofrimento, o cuidado é uma virtude moral que ajuda as pessoas a morrer com dignidade.
O cuidado na vida da pessoa, esteja ela saudável ou doente, é uma arte de atenção, sensibilidade e compaixão. Há quem afirme que cuidado é uma parte essencial da existência humana. Outros são ainda mais radicais e dizem que a essência do ser humano é cuidado. As pessoas gostam de ser cuidadas, e parece que há um impulso na maioria das pessoas que as leva a gostar de cuidar dos outros. Se é verdade que cuidado é parte da existência humana tanto quanto a morte, o cuidado também deve se realizar no fim da vida, para que a dignidade seja promovida na passagem final da vida à morte.
O cuidado é uma arte na qual regras e protocolos não são suficientes para determiná-lo. O cuidado é uma arte exercida “com o coração nas mãos”. Nos momentos mais desafiadores, a arte do “coração nas mãos” encontra caminhos criativos para promover o cuidado e ajudar as pessoas a morrer com dignidade. A arte do “coração nas mãos” encontra caminhos para confortar famílias sofrendo porque não podem se despedir dos que amam, enterrados em uma vala comum sem direito a um funeral.
A existência tem um fim. Uma existência com sentido parece ser aquela que experienciou o cuidado entre a alegria e a dor, a felicidade e o sofrimento. O cuidado é uma virtude que dá sentido para a alegria e a esperança capaz de superar o sofrimento. Sendo uma virtude durante a vida, o cuidado mostra a beleza humana da criatividade na busca de meios para ajudar a morrer, cuidando “com o coração nas mãos”.
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Cuidando até o fim com o “coração nas mãos”. Pacientes terminais e COVID-19. Artigo de Alexandre A. Martins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU