23 Abril 2020
Nesta pandemia, há uma nova apreciação da abnegação dos médicos no cuidado dos doentes. Médicos professam o dever de cuidar dos doentes e aceitar os riscos. Comprometem-se em salvar vidas. Quando há incerteza sobre o benefício para o paciente, é dever deles tratar até que haja evidências favoráveis ou contrárias.
A opinião é de Nuala Kenny, pediatra, irmã canadense das Irmãs da Caridade, da Nova Escócia, Canadá, autoridade da Ordem do Canadá desde 1999, autora de vários livros, incluindo Healing the Church [Curando a Igreja] (Ed. Novalis, 2012) e Rediscovering the Art of Dying [Redescobrindo a arte de morrer] (2017) e coautora de Still Unhealed: Treating the Pathology in the Clergy Sexual Abuse Crisis [Ainda não curado: tratando a patologia na crise dos abusos sexuais clericais] (Ed. Novalis/Twenty-Third Publications, 2019).
O artigo é publicado por La Croix International, 21-03-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Em 34 anos de trabalho, cuidando de pacientes gravemente doentes e moribundos, nunca tive um colega que não pôde responder ao meu apelo: “Estamos perdendo essa criança e preciso de sua ajuda”.
Ao ensinar ética médica, por vezes tive de enfatizar o núcleo moral da medicina em face da mercantilização e comercialização. Mas, nas necessidades dos pacientes que corriam risco de vida, meus colegas sempre se fizeram presentes. Tenho uma identificação forte com Jesus e com seu desejo de cura. Há, no entanto, algo desse desejo em todos os médicos.
Nesta pandemia, há uma nova apreciação da abnegação dos médicos no cuidado dos doentes.
Médicos professam o dever de cuidar dos doentes e aceitar os riscos. Comprometem-se em salvar vidas. Quando há incerteza sobre o benefício para o paciente, é dever deles tratar até que haja evidências favoráveis ou contrárias.
Compatível com essa tradição, a triagem – determinando a prioridade dos tratamentos entre os pacientes – em um serviço de emergência hospitalar garante que os mais enfermos sejam vistos primeiro.
Hoje, temos relatos emocionantes, de Milão a Nova York, de médicos e enfermeiros que precisaram praticar a triagem no serviço de emergência por causa da tecnologia escassa de salvar vidas nesta pandemia da Covid-19.
No tumulto pré-pandêmico da crise de abuso sexuais clericais, o Papa Francisco disse: “Vejo a Igreja como um hospital de campanha após uma batalha” (2013).
Quem imaginaria que “um hospital de campanha” iria passar de uma simples metáfora da crise de abusos clericais a uma realidade médica mundial?
Como bem sabem os médicos e médicos militares, em um hospital de campanha decisões de vida e morte são tomadas em situações de grande risco pessoal, recursos limitados e caos entorpecedor de sentidos. Algo assim está longe de ser prática comum e pode causar um transtorno do estresse pós-traumático muito tempo depois da batalha.
Na América do Norte, a pandemia deve atingir o pico neste período de Páscoa, sobrecarregando os recursos e exigindo uma triagem nos serviços de emergência. Reconhecer o trauma espiritual e o sofrimento moral dos médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde é uma necessidade pastoral fundamental.
O “sofrimento moral”, que distingue-se do dilema moral e do conflito moral, veio de enfermeiras que eram ordenadas a agir contra o próprio entendimento que tinham sobre qual era o melhor tratamento a ser dado por elas a seus pacientes.
O termo agora descreve a situação em que as pessoas têm a clara sensação da “coisa certa a fazer”, mas se veem forçadas a agir de outra forma segundo as circunstâncias ou a lei.
Os organismos governamentais e profissionais devem tornar público quando e como uma triagem nos serviços de emergência vai ser imposta e o quanto esta triagem difere da prática médica ordinária. Isso é necessário para manter a confiança pública e ajudar mitigar o sofrimento moral.
Da mesma forma, as decisões no nível hospitalar devem ser compartilhadas pelo médico do paciente, pelo chefe da unidade de tratamento intensivo e pela administração do hospital.
Os objetivos da triagem nos serviços de emergência são minimizar doenças graves e mortes, bem como perturbações sociais durante a crise. Há uma mudança drástica no atendimento centrado no paciente para o atendimento centrado na população, e uma mudança também drástica na autonomia e escolha individual para o bem comum com a administração dos recursos compartilhados.
Esta mudança requer um processo justo, razoável, transparente e responsável, que respeita a dignidade de todos os pacientes necessitados de recursos médicos, incluindo terapia intensiva, ressuscitação, ventiladores, enfermeiros e terapeutas respiratórios. No início da triagem, não há exclusão automática por juízos segundo a idade, estado de saúde, raça, sexo ou qualidade de vida.
Eticistas canadenses e americanos identificaram valores subjacentes aos critérios de triagem nos serviços de emergência, incluindo patrimônio, utilidade/benefício, proporcionalidade, reciprocidade e solidariedade.
A equidade é uma concepção de justiça que trata as pessoas de forma igualitária, considerando as diferenças relevantes.
O ensino social da Igreja sobre a “opção preferencial pelos pobres” exige que o protocolo minimize a discriminação estrutural no acesso aos recursos, especialmente para pessoas com doenças médicas e psiquiátricas crônicas, deficientes, refugiados, prisioneiros e comunidades de cor e carentes.
O critério de utilidade/benefício requer padrões de inclusão e exclusão dos recursos com base no julgamento médico de critérios clínicos para o benefício e a sobrevivência.
A proporcionalidade exige que intervenções necessárias e eficazes sejam a alternativa menos restritiva.
A reciprocidade exige o apoio aos que enfrentam um fardo desproporcional no cuidado dos enfermos. Ela inclui fundamentalmente o pessoal da limpeza e a equipe de preparação de alimentos em hospitais e instalações de tratamentos prolongados, aqueles que não têm um dever profissional.
É preciso existir pessoal adequado, um ambiente de trabalho que mitigue os riscos à saúde com vacinas, antivirais e equipamentos de proteção, além do tratamento aos trabalhadores infectados. Isto pode incluir serviços arriscados e pagamento de horas extras.
A solidariedade e o bem comum são elementos cruciais do ensino católico. “A vida e a saúde física são bens preciosos, confiados por Deus. Temos a obrigação de cuidar razoavelmente desses dons, tendo em conta as necessidades alheias e o bem comum” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2288).
As fontes do sofrimento moral estão principalmente na exigência de um comportamento que contradiz o dever moral dos médicos de tratar dos doentes e na prática e nos tratamentos inovadores sem que haja pesquisas rigorosas, o que pode resultar em prejuízos e atrasos.
O estresse moral surge das preocupações relativas ao não abandono de moribundos e seus familiares, com um tratamento e acompanhamento paliativos limitados, bem como surge com o dano de longo prazo causado a pacientes que não acessam aos tratamentos em decorrência de outras doenças.
A fatiga física e emocional e os conflitos éticos entre os deveres com os doentes e os riscos para consigo e com os familiares, o que exige isolamento, intensificam este sofrimento.
Para os católicos, o sofrimento moral agrava-se pelas decisões difíceis quanto à sedação paliativa na insuficiência respiratória e à conscientização do paciente sobre a morte assistida por medicamentos.
No período pós-pandemia, poderemos nos tornar profissionais de saúde mais justos e cuidadosos. Ou acabaremos mais traumatizados e distantes.
Os agentes de saúde vão precisar de aconselhamento para lidar com o sofrimento moral da triagem nos serviços de emergência realizada nos próximos dias.
Rezo para que encontrem apoio e cura em Jesus, o Grande Médico, que promete: “Eu quero, fique purificado”.
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Triagem de emergência nos recursos de saúde e o sofrimento moral dos cuidadores - Instituto Humanitas Unisinos - IHU