Na atual emergência do coronavírus, já temos exemplos nestas duas direções: por um lado, vemos ganhar força o discurso da solidariedade, com práticas de associativismo espontâneas, assim como um reforço ao papel do bem público e comum. Noutra direção, a crise surgiu como oportunidade para surgirem os Coronagolpes – como no caso da Hungria e de Israel –, onde a “guerra médica” é utilizada como pretexto para suprimir a democracia e estabelecer um fechamento do regime político", escreve Erick Kayser, mestre e doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
Poucos dias atrás, um “duelo filosófico”, de forma incomum, ganhou repercussão nas redes, chegando a figurar no sábado (11/04), por alguns momentos, entre os assuntos mais comentados do Twitter. O debate colocava os filósofos Slavoj Zizek e Byung Chul Han frente a frente acerca dos seus principais pontos de suas análises sobre a pandemia do coronavírus. Para além das diferenças entre o filósofo esloveno e o sul-coreano, esta polêmica virtual e (quase) “irreal” – já que ambos possivelmente sequer souberam que ela ocorreu – é um interessante caso que permite trazer à tona uma diferença de fundo, com significativas implicações, onde se opõem, grosso modo, uma perspectiva política otimista versus uma pessimista quanto os efeitos e possíveis desdobramentos da crise do vírus Covid-19.
Se é verdade que a urgência dos acontecimentos envolve a todos nós, cabe expor brevemente as posições de Zizek e Han sobre a crise do Covid-19. Seus artigos foram recentemente publicados na compilação Sopa de Wuhan – Pensamiento Contemporáneo en Tiempos de Pandemia (e-book disponível gratuitamente), que reúne mais de uma dezena de autores renomados, publicado em língua espanhola pela Pablo Amadeo Editorial. Felizmente, tanto o texto de Zizek quanto o de Han já foram traduzidos e estão disponíveis em português. Podemos resumir a principal diferença entre eles em duas frases. Para Zizek, a pandemia teria provocado um golpe mortal no capitalismo, permitindo já antever sua superação. Em direção oposta, para Han, após a pandemia, o capitalismo continuará ainda mais forte, possibilitando formas de controle total sobre os indivíduos através de uma biopolítica digital.
Apostando no fim do capitalismo, Zizek se arrisca a fazer uma alegoria da crise com o famoso golpe assassino do filme Kill Bill, chamado “técnica do coração explosivo”, onde a pessoa que o recebe ainda pode continuar suas atividades por um tempo, beber uma taça de vinho, conversar etc., mas, inevitavelmente, o coração explode, levando a vítima à morte: “Minha modesta opinião sobre a realidade é muito mais radical: a epidemia de coronavírus é uma forma especial de ‘técnica do coração explosivo’ no sistema global capitalista, um sintoma de que não podemos continuar no caminho que seguimos até agora, que mudanças são necessárias”. Ele chega a apontar para a possibilidade da emergência de um novo comunismo, capaz de superar o modelo atual de Estado-nação e instituir um novo tipo de governança internacional, baseada na cooperação.
Menos otimista, Han afirmará respondendo diretamente a Zizek, que nada disso acontecerá; que poderíamos passar a viver em uma espécie de ultracapitalismo, tendo o Estado policial digital praticado na China como o novo modelo a ser replicado pelo mundo. Segundo ele, “o vírus não vencerá o capitalismo. A revolução viral não chegará a ocorrer. Nenhum vírus é capaz de fazer a revolução.” Contudo, ainda que não aponte para “sinais redentores” em meio à crise, Han não descarta, por completo, as possibilidades de mudanças sociais. Sendo taxativo de que “não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus”, sua aposta é que a humanidade seja capaz de fazer um bom uso da razão para “repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima e nosso belo planeta”.
Numa análise apressada, não é difícil apontar para as fragilidades no argumento de Zizek, afinal, parece neste momento um tanto inverossímil afirmar que estaríamos vivenciando o prelúdio de um renascimento do comunismo. Por outro lado, o alcance dos efeitos econômicos e sociais da crise são de tamanha magnitude, que acreditar que tudo voltará ao “normal” talvez seja uma previsão ainda mais irrealista. Han, por sua vez, ainda que nos soe mais factível, aposta de forma diminuta em um horizonte de transformações guiadas pela “razão”. Observo que esta pequena brecha também pode ser vista tão criticamente quanto o “novo comunismo” de Zizek; afinal, acreditar em um caminho de transformações guiadas pela racionalidade, não seria uma espécie de atualização do velho, e já um tanto desgastado, projeto iluminista?
Contudo, como mencionado no início, mais do que aprofundarmos um escrutínio sobre as abordagens opostas feitas por estes dois filósofos, interessa-nos extrapolar este caso e debater a disjuntiva política entre uma perspectiva otimista e a pessimista diante das consequências da crise. Não pretendo aqui de forma alguma esgotar este tema ou propor uma “solução definitiva” capaz de mediar a oposição entre os extremos de um triunfalismo cândido com a de um catastrofismo melancólico, esforço de mediação que seria ontologicamente inviável. Pretendo, a seguir, apontar alguns pontos para buscarmos uma espécie de “dialética da pandemia”, como forma de encarar a complexidade desafiadora de nossa atual realidade.
Se, aparentemente, carece de maior materialidade a aposta otimista de que a crise abriria possibilidades históricas pós-capitalistas, por outro lado, negar de antemão quaisquer possibilidades de movimentos de mudanças é um equívoco ainda maior. A pandemia do Covid-19, em boa medida, aprofunda e talvez até gere uma dimensão desconhecida dentro de um cenário geral já conturbado, que se insinua como crise civilizacional do capitalismo. Diversos elementos indicam essa instabilidade estrutural da sociedade capitalista. A predatória destruição ambiental e o avanço do aquecimento global são uma das faces mais evidentes deste processo, colocando em risco a própria continuidade da vida humana. Mas, outros aspectos menos evidentes e igualmente decisivos, contribuíram para esta crise inconclusa, anterior ao vírus Covid-19.
Confirmando algumas das previsões de Marx, o próprio processo de acumulação e reprodução do capital está em um declínio prolongad e talvez fatal. O aprofundamento das contradições inerentes ao próprio capital, foram até aqui contornadas ou adiadas através de inúmeros artifícios, sendo o principal deles a financeirização da economia, com a ampliação de uma riqueza gerada em bases puramente especulativas e imateriais. Antecipa-se, continuamente, os lucros projetados no futuro, gastando estas riquezas estimadas no presente, tentando-se assim adiar uma crise de acumulação que se mostra incontornável. Para o capital existir, a base de exploração sobre o “trabalho vivo” é indispensável, ainda que o peso e papel relativo sofram mutações ao longo de seu processo histórico. Assim, uma outra forma de buscar adiar a crise do capital, muito popular em governos neoliberais, é a precarização geral do trabalho, que busca reduzir salários e maximizar lucros através de renovados mecanismos de espoliação.
Apesar da crise de 2008, até aqui esta fórmula vinha, em alguma medida, dando certo. O trabalho, cada vez mais composto por um precariado mal-remunerado e com baixíssima capacidade de associativismo e sindicalização, indicava um processo de irrefreável perda de força na luta de classes. A pandemia do coronavírus, contudo, irrompe como evento capaz de forçar a disputa por uma nova racionalidade. A interrupção das atividades laborais em diversos setores pelo mundo, devido às medidas de quarentena e distanciamento social para conter a propagação do vírus, paralisou a economia global. Como que em um passe de mágica, muitos dos apologistas neoliberais perceberam que, para uma economia existir, é fundamental que existam… pessoas vivas!
A rápida volta do Estado como centro organizador das economias nacionais colocou em suspenso o discurso neoliberal. A renovação de uma agenda estatal de promoção do bem-estar social da população surge como medida de urgência contra os efeitos econômicos da crise. O dogma da austeridade perde espaço para alternativas de renda emergencial ou mesmo de uma renda básica universal para todas as pessoas, ideia pontualmente já aplicada em muitos países após o início das medidas de quarentena. O papel dos sistemas públicos de saúde é um outro exemplo, mostrando-se infinitamente superior no combate à pandemia que países com sistemas de saúde privatizados. O Covid-19 colocou em crise o neoliberalismo, uma condição que até poucos meses atrás parecia impensável. Este é um aspecto político importante nesta conjuntura e amplia as possibilidades de mudanças paradigmáticas no próximo período. Uma “abertura na história”, cuja passagem e desdobramentos, não estão pré-determinados.
Se a história não está “fechada”, havendo as mudanças sociais como possibilidade sempre em movimento, tampouco esta “abertura” assegura qualquer “final feliz”. O fim do capitalismo não necessariamente será seguido pelo comunismo; poderíamos, pelo contrário, viver alguma forma de regressão à barbárie, como nos mostra a ficção científica com fartos exemplos destes futuros distópicos e pós-apocalípticos. A extensão da pandemia do Covid-19 ainda não é possível prever de forma conclusiva. Com relação à mencionada crise geral do capitalismo, essa seguramente se estenderá por mais alguns anos, talvez décadas. Portanto, o “estado de crise” não se dissipará, apenas mudará de intensidade e objeto. Neste século XXI, talvez ainda mais que nos períodos anteriores, não existe horizonte de estabilidade possível para o sistema capitalista. Com esta condição de instabilidade inerente, as possibilidades se abrem, tanto para perspectivas regressistas quanto progressistas.
Na atual emergência do coronavírus, já temos exemplos nestas duas direções: por um lado, vemos ganhar força o discurso da solidariedade, com práticas de associativismo espontâneas, assim como um reforço ao papel do bem público e comum. Noutra direção, a crise surgiu como oportunidade para surgirem os Coronagolpes – como no caso da Hungria e de Israel –, onde a “guerra médica” é utilizada como pretexto para suprimir a democracia e estabelecer um fechamento do regime político. Longe ainda de ser uma tendência generalizante, nos “afortunados” países de democracia estável, estas práticas autoritárias ainda não se colocaram. Em síntese, frente a tendências tão díspares, as condições para que os sujeitos construam alternativas se colocam com sensíveis mudanças nas correlações de força e nas dinâmicas sociais, renovando para a esquerda a importância de uma leitura com a maior precisão possível sobre a conjuntura aberta.
Assim, voltando aos arquétipos do otimismo e do pessimismo frente à atual crise, apoiar-se em algum destes extremos seria fatal. Uma confiança demasiada pode levar a decisões irrefletidas e desastrosas; um pessimismo exacerbado pode levar a um derrotismo paralisante. Nesta direção, pode ser útil recorrer a Stuart Hall, teórico cultural e sociólogo britânico-jamaicano, que certa vez afirmou que “quando uma conjuntura se desenrola, não há como voltar atrás. A história muda de marcha. O terreno muda. Você está em um novo momento. Você tem que participar ‘violentamente’, com todo o ‘pessimismo do intelecto’ sob seu comando e com a ‘disciplina da conjuntura’”. Nesta complexa e instável dialética em tempos de pandemia, o desafio é buscarmos alguma forma de “esperança realista”, ou ainda, como nos versos da canção de Aldir Blanc e João Bosco, uma “esperança equilibrista”, que nos permita a ação e o esforço de renovação de nossa imaginação política em meio à crise.