01 Abril 2020
“Não acredito que a maior ameaça representada pelo coronavírus seja uma regressão à simples barbárie, violência brutal pela sobrevivência, com seus distúrbios públicos, seus linchamentos derivados do pânico, etc. (embora, com o possível colapso dos serviços de saúde e outros serviços públicos, isso também seja bem possível). Mais do que mera barbárie, temo a barbárie com um rosto humano: medidas impiedosas de sobrevivência impostas com arrependimento e inclusive compaixão, mas legitimadas pelas opiniões dos especialistas”, escreve Slavoj Zizek, escritor e filósofo esloveno, em artigo publicado por Ctxt, 31-03-2020. A tradução é do Cepat.
O impossível aconteceu e o mundo que conhecíamos parou de girar. Mas que ordem mundial surgirá após a pandemia do coronavírus? Socialismo para os ricos, capitalismo de desastre ou algo inteiramente novo?
Hoje em dia, às vezes, me pego querendo me contaminar com o vírus, desta maneira, ao menos terminaria a exaustiva incerteza. Um sintoma claro da evolução da minha ansiedade é minha relação com o sono. Até há mais ou menos uma semana, esperava o amanhecer com impaciência. Finalmente, pude me entregar ao sono e me esquecer dos medos da minha vida cotidiana. Agora, é praticamente o oposto: tenho medo de adormecer e cair nas garras dos pesadelos que me atormentam à noite e me fazem acordar aterrorizado. São os pesadelos da realidade que me espera.
Que realidade? Alenka Zupancic formulou perfeitamente, e eu gostaria de resumir sua linha de pensamento. Hoje em dia, é comum ouvir que, se queremos lidar com a epidemia atual, precisamos de mudanças sociais radicais (eu mesmo sou uma das vozes que defendem isso), mas mudanças radicais já estão ocorrendo.
A epidemia de coronavírus nos confronta com o que considerávamos impossível, não poderíamos imaginar que algo assim pudesse acontecer em nosso tempo: o mundo que conhecíamos parou de girar, países inteiros foram fechados e muitos de nós estão confinados em nossos apartamentos (existem aqueles que não podem se permitir sequer essa mínima precaução), diante de um futuro incerto no qual, mesmo que a maioria de nós consiga sobreviver, nos espera uma gigantesca crise econômica.
Isso significa que nossa reação também deve ser fazer o impossível: o que parece impossível dentro das coordenadas da ordem mundial existente.
O impossível aconteceu, nosso mundo parou e agora devemos fazer o impossível para evitar o pior. Mas o que é o impossível?
Não acredito que a maior ameaça representada pelo coronavírus seja uma regressão à simples barbárie, violência brutal pela sobrevivência, com seus distúrbios públicos, seus linchamentos derivados do pânico, etc. (embora, com o possível colapso dos serviços de saúde e outros serviços públicos, isso também seja bem possível). Mais do que mera barbárie, temo a barbárie com um rosto humano: medidas impiedosas de sobrevivência impostas com arrependimento e inclusive compaixão, mas legitimadas pelas opiniões dos especialistas.
Um observador atento deve ter se dado conta da mudança de tom na forma como aqueles que estão no poder precisam se dirigir a nós. Não estão simplesmente tratando de mostrar calma e confiança, também costumam lançar previsões diretas: é provável que a pandemia dure uns dois anos, que infecte 60-70% da população mundial e que leve pela frente milhões.
Em resumo, sua verdadeira mensagem é que precisamos restringir a premissa básica de nossa ética social: a preocupação com os frágeis e os idosos. Na Itália, por exemplo, já foi proposto que, se a crise do vírus piorar, os pacientes com mais de 80 anos ou aqueles com outras doenças graves serão abandonados a sua sorte para que morram.
Deveria se observar que aceitar esta lógica da “sobrevivência do mais apto” viola até o princípio mais básico da ética militar, que nos diz que após a batalha devem ser tratados primeiro os feridos graves, mesmo quando as chances de os salvar são mínimas. De qualquer forma, quando se olha de perto, nada disso deve nos surpreender, pois os hospitais já estão fazendo basicamente a mesma coisa com pacientes com câncer.
Para evitar mal-entendidos, aqui estou sendo completamente materialista: é necessário planejar até a medicação que permita uma morte indolor em caso de doença terminal. Porém, nossa principal prioridade deveria ser, no entanto, não economizar, mas ajudar incondicional e independentemente dos custos aqueles que necessitam para permitir sua sobrevivência.
Por isso, discordo respeitosamente do filósofo italiano Giorgio Agamben, que vê na crise atual um sintoma de que “nossa sociedade não acredita mais em nada, mas na vida nua. É óbvio que os italianos estão dispostos a sacrificar praticamente tudo (as condições normais de vida, as relações sociais, o trabalho e mesmo as amizades, o afeto e as convicções religiosas e políticas) pelo risco de adoecer. A vida nua, e o perigo de perdê-la, não é algo que nos une, mas algo que nos cega e nos separa”.
As coisas são muito mais ambíguas, porque isso TAMBÉM une as pessoas: manter uma distância do corpo é um sinal de respeito pelos outros, enquanto eu também poderia ser um portador do vírus. Meus filhos me evitam porque temem que possam me contaminar, pois para eles é uma doença passageira e poderia ser fatal para mim.
Atualmente, ouvimos uma e outra vez que cada um de nós é pessoalmente responsável e deve seguir as novas regras. Os meios de comunicação estão cheios de notícias sobre pessoas que não respeitam as normas e que colocam a si e a outras pessoas em perigo (alguém entra em uma loja e começa a tossir, etc.), que é a mesma maneira problemática de gerenciar a questão ecológica (reciclou os jornais usados?, etc.).
Semelhante ênfase na responsabilidade individual, sem dúvida necessária, funciona como uma ideologia no momento em que serve para enterrar a grande questão de como mudar completamente nosso sistema social e econômico. A batalha contra o coronavírus só pode ser travada em conjunto com a batalha contra mistificações ideológicas, uma vez que faz parte do conflito ecológico geral. Como disse Kate Jones, professora de ecologia e biodiversidade da University College London, a transmissão de uma doença da natureza para os seres humanos “tem um custo oculto de desenvolvimento econômico humano”.
“Simplesmente há muitos de nós em todos os ambientes naturais. Estamos indo a lugares inóspitos, nos expondo cada vez mais, criando habitats onde as doenças são mais facilmente transmitidas, em seguida, nos surpreendemos quando pegamos novos vírus”, disse Jones.
Portanto, não é suficiente criar algum tipo de rede global de saúde para os seres humanos, a natureza deveria ser incluída, pois, por exemplo, os vírus também atacam as plantas, que são a principal fonte de nossa alimentação (batatas, trigo, azeitonas, etc.). Devemos sempre ter em mente a imagem global do mundo em que vivemos, com todos os paradoxos que isso implica.
Por exemplo, é bom saber que, ao menos se acreditarmos nas estatísticas oficiais, o fechamento da China devido ao coronavírus salvou mais vidas do que aquelas que a doença levou. O economista de recursos ambientais Marshall Burke disse que existe uma relação comprovada entre baixa qualidade do ar e mortes prematuras associadas a respirar tal ar. “Com isso em mente”, disse que “uma pergunta natural, embora estranha, é se as vidas salvas pela redução da poluição devido à desaceleração econômica provocada pela Covid-19 excedem a taxa de mortalidade provocada pelo próprio vírus. Até mesmo partindo de suposições muito conservadoras, acredito que a resposta é um claro sim”. Em apenas dois meses, comenta Burke, a redução nos níveis de poluição salvou a vida de 4.000 crianças com menos de cinco anos e 73.000 com mais de 70 anos, e isso apenas na China.
Estamos presos a uma crise tripla: médica (a epidemia em si mesma), econômica (que será grave, independentemente de como acabe a epidemia) e (algo a não ser subestimado) de saúde mental. As coordenadas básicas da vida de milhões e milhões de pessoas estão se desintegrando, e a mudança minará tudo, desde voar de férias até o contato físico diário. Devemos aprender a pensar além das coordenadas do mercado de ações e do lucro, e simplesmente encontrar outra maneira de produzir e distribuir os recursos necessários. Por exemplo, quando as autoridades descobrem que uma empresa armazena milhões de máscaras, aguardando o momento certo para vendê-las, não deveria haver negociações com a empresa, as máscaras deveriam ser confiscadas.
Os meios de comunicação informaram que Trump ofereceu um bilhão de dólares à empresa biofarmacêutica CureVac, com sede em Tübingen, para garantir a vacina “apenas para os Estados Unidos”. Por sorte, o ministro da Saúde alemão, Jens Spahn, disse que a proposta do governo Trump foi “completamente descartada”. A CureVac somente desenvolveria uma vacina “para o mundo inteiro, não para países individuais”. Aqui, temos um caso exemplar do conflito entre barbárie e civilização, mas foi o próprio Trump quem teve que invocar a Lei de Produção de Defesa para permitir que o governo assegurasse que o setor privado aumentasse a produção de suprimentos médicos de emergência.
Alguns dias atrás, Trump anunciou a proposta de nacionalizar o setor privado. Disse que apelaria às leis federais que permitem ao governo administrar o setor privado em resposta à pandemia, acrescentando que assinaria um ato para conceder autoridade direta à produção industrial nacional, “se por acaso necessitarmos”.
E isso é apenas o começo, seguirão muitas outras medidas como essas. Fora isso, a auto-organização local das comunidades será completamente necessária, se o sistema de saúde do estado estiver à beira do colapso. Não é suficiente apenas se isolar e sobreviver. Para que alguns de nós consigam fazer isso, devem funcionar os serviços públicos básicos: eletricidade, comida, medicamentos ... (Em breve, precisaremos de uma lista daqueles que se recuperaram e estão imunes, pelo menos por algum tempo, para que possam ser mobilizados para realizar serviços sociais de emergência).
Isto não é uma visão comunista utópica, é um comunismo imposto pelas necessidades da mera sobrevivência, uma versão, infelizmente, do que foi chamado na União Soviética, em 1918, de “comunismo de guerra”.
Como diz o ditado, em uma crise somos todos socialistas, até mesmo o governo Trump está concebendo uma forma de renda básica universal: um cheque de mil dólares para cada cidadão adulto. Trilhões serão investidos violando todas as leis do mercado (mas como?, onde?, para quem?). Será essa forma de socialismo forçado um socialismo para os ricos? (Lembre-se do resgate bancário em 2008, enquanto milhões de pessoas perdiam suas escassas economias.) Será a epidemia meramente um capítulo a mais do que a autora e ativista canadense Naomi Klein chama de “capitalismo de desastre”? Ou um mundo novo (mais modesto, talvez, mas também mais justo) emergirá dela?
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A barbárie com rosto humano. Artigo de Slavoj Zizek - Instituto Humanitas Unisinos - IHU