14 Abril 2020
"A crise atual reinventará o modo como celebramos a liturgia dominical, pois as pessoas ou querem mais comunidade, porque a perderam, ou exigem mais missas transmitidas ao vivo por causa do distanciamento social", escreve J. P. Grayland, padre neozelandês da Diocese de Palmerston North, na Nova Zelândia, há quase 30 anos, em artigo publicado por La Croix International, 11-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Covid-19 provocou muitas respostas litúrgicas e rituais diferentes.
Ela revelou o dilema da liturgia moderna, a saber, o lugar dos batizados no culto. Mostrou que o cenário padrão de muitos membros da Igreja (clérigos e leigos) é o ritual de rezar missa, não tanto a experiência de fazer a liturgia.
Muitos correspondentes identificaram a natureza da oração em casa, a tarefa da Igreja doméstica e o impacto do clericalismo em nossa resposta geral a essa enorme crise litúrgica.
Nesta reflexão, quero me concentrar em três áreas: as orações em casa ou na bolha, as missas online e a Igreja doméstica do clero, e o local litúrgico dos fiéis leigos batizados no culto público.
Como pároco de três paróquias de uma pequena diocese rural de um país pequeno e secular, minha experiência principal tem sido a constatação de que a Igreja é considerada um “serviço não essencial” em termos da nossa economia, política e estrutura social.
Assim, o contexto da minha contribuição é tão importante quanto a própria contribuição.
Nossa situação atual nos apresenta a oportunidade de desenvolver orações pelas pessoas em sua casa, em suas bolhas. Onde quer que os paroquianos estejam reunidos em suas bolhas, Cristo está presente, no meio deles.
As novas “orações-bolha” se focam na brevidade. Elas estão cientes de uma variedade de coisas ao redor, enquanto outras são mais longas e mais formais. Ambas confiam na tradição do culto e remontam à tradição mais antiga da oração familiar cristã.
O propósito das orações-bolha é fazer com que a Igreja doméstica reze como parte da Igreja universal.
Alguns colegas defendem bem a brevidade nessas orações, com base na distinção entre os frequentadores da igreja que estão acostumados com a linguagem e o ritual da Igreja, e uma maioria que não está.
Um colega me lembrou: “Eu sei que muitos católicos vão achar muito difícil rezar em voz alta em casa, e muitos só farão isso quando as crianças NÃO estiverem lá”.
No contexto dele, assim como no meu, “quase todas as famílias são casamentos mistos, e os católicos têm a reputação de terem ritos longos e complexos ‘dizendo a mesma coisa todas as semanas’”.
No meu contexto, as culturas Pasifika “perdem” tempo com o culto.
A evolução do culto indígena tem um número crescente de pessoas que desejam passar seus domingos rezando e não principalmente comprando.
Essas famílias podem ter origens religiosas mistas, mas todas compartilham a centralidade do culto como parte do seu contexto cultural e social.
Embora concordemos que a oração em casa deve ser envolvente, minha própria preocupação com a mentalidade “seja breve, padre” (um remanescente da Igreja “irlandesa” do século XIX e início do século XX) é que podemos estar subestimando a capacidade da Igreja doméstica leiga de rezar de maneiras novas e inovadoras.
Muitas das minhas próprias contribuições para as orações em casa vieram dos livros litúrgicos, baseadas na ideia de que qualquer pessoa pode rezá-las. Talvez a intuição dos meus colegas de uma forma totalmente diferente de oração, baseada na simplicidade da experiência de Deus da própria família, seja mais desafiadora e duradoura.
A crise atual reinventará o modo como celebramos a liturgia dominical, pois as pessoas ou querem mais comunidade, porque a perderam, ou exigem mais missas transmitidas ao vivo por causa do distanciamento social.
Talvez as famílias que realmente rezaram em casa tenham experimentado aquilo de que precisam para viver uma vida litúrgica mais plena. Por outro lado, aqueles que foram com prazer à missa online vão querer voltar à participação na missa dominical, sem compreender a diferença entre a missa online ou a missa na igreja.
A Igreja doméstica não é apenas a Igreja da família em torno da mesa. Também é do padre solitário à sua mesa e dos grupos de padres em alguns presbitérios em torno da mesa deles. A missa online está nos dando uma visão da Igreja doméstica clerical.
As missas online estão sendo usadas por uma variedade de razões bem-intencionadas, e muitas delas se baseiam na necessidade do clero de fazer alguma coisa.
Assim como o encanador conserta os canos, os padres oferecem missas porque é para isso que eles foram treinados. A diferença hoje é que o papel do encanador é um serviço essencial; o do padre, não.
As diretrizes vaticanas e episcopais incentivaram os padres a celebrarem a missa sozinhos aos domingos, assim como na Quinta-Feira Santa, na Vigília Pascal e no Domingo de Páscoa. O padrão é o padre-clérigo, não o presbítero.
Eu acho que alguns padres estão tornando a missa-por-conta-própria o padrão, porque esse é o seu mundo doméstico, enquanto outros não estão celebrando a missa por conta própria, porque, como um padre disse, “é estranho responder para mim mesmo: é apenas ritualismo”.
Aqueles que estão dizendo missa por conta própria, com ou sem transmissão ao vivo, sentem-se conectados à sua razão de ser. Onde os padres estão juntos nas casas paroquiais, a lógica pode ser diferente, mas o que fica claro em todos os casos é a ausência da assembleia de batizados.
O problema teológico significativo com a missa transmitida ao vivo é que assistir online não é participar da Eucaristia. As pessoas simplesmente estão vendo a missa ser dita. No entanto, muitos fiéis leigos dizem estar satisfeitos por poderem “ir à missa” online.
Mais profunda ainda é a questão de por que um padre celebraria a missa por conta própria, mesmo em situações extraordinárias, se a presença da comunidade fosse entendida como um elemento constitutivo da liturgia católica.
Se os padres podem celebrar tão facilmente a missa sem a presença dos leigos, isso significa que nossa configuração padrão é anterior ao Concílio Vaticano II e nunca foi abandonada por nós? Trata-se de uma preferência pelas cebolas do Egito à luta do Êxodo?
A outra opção para os párocos é sofrer a perda da Páscoa e da missa dominical juntamente com o povo a quem eles servem. Um pároco deveria sofrer a perda da comunhão litúrgica e da participação eucarística junto com a sua comunidade?
Essa é a decisão que eu tomei (como pároco) porque acho que devo compartilhar o jejum eucarístico com a comunidade a que pertenço.
Como pároco e presbítero, eu acredito que meu ministério presbiteral não se define pelo poder ou pela necessidade de celebrar a missa. A Liturgia Sagrada pertence à Igreja, e eu, sozinho, não constituo a Igreja.
Quando a comunidade a que pertenço não pode se reunir para a liturgia, eu compartilho a nossa privação. Muitos não concordarão comigo.
Ao tomar essa decisão, eu não vejo que a minha identidade sacerdotal tenha sido posta em risco. Pelo contrário, vejo meu papel como alguém que serve à vida da comunidade liderando o culto da comunidade sendo definido pelo ministério, e não pelo cargo.
A liturgia é uma atividade de toda a comunidade. Quando a comunidade não pode se reunir, a liturgia não pode ser celebrada.
Não vejo nenhum endosso a essa decisão ou pensamento vindo do Vaticano. Eu acharia incrível se o papa tivesse dito: “O povo não pode se reunir para o culto, então eu jejuarei com ele”.
Em vez disso, o gesto da bênção Urbi et Orbi com adoração e bênção eucarística não levou a Igreja à experiência do problema litúrgico criado pelo confinamento, mas foi o evento que esclareceu para mim como opera a Igreja doméstica clericalizada.
A lembrança mais marcante do lugar mínimo concedido aos leigos batizados na oração litúrgica deve ser o decreto que o Vaticano emitiu no dia 19 de março – “Em tempos de Covid-19”.
No contexto do Tríduo Pascal – talvez sem saber ou sequer sem pensar nisso – as pessoas que escreveram o decreto reduziram a participação dos fiéis leigos batizados em uma frase: “Os fiéis devem ser informados sobre a hora do início das celebrações, para poder unir-se à oração em casa”.
Se essa frase resume o entendimento e a abordagem do Vaticano à liturgia, não deveríamos nos surpreender ao ver a encenação de rituais locais, populares e exóticos nos degraus vazios de uma igreja vazia.
E, se essa frase ilustra que somos uma empresa clerical que diz palavras vãs sobre o lugar litúrgico e teológico dos leigos, então deveríamos saber que a renovação do Concílio Vaticano II é apenas superficial. Espero estar errado em ambas as suposições.
Não obstante, o decreto ilustra o problema litúrgico-teológico central trazido à tona por esta crise, que é a validade do lugar litúrgico e o propósito teológico dos leigos batizados como participantes do culto, na Igreja pós-Vaticano II.
O entendimento do Concílio Vaticano II sobre a missão e a natureza da Igreja se reflete na sua eclesiologia de comunhão, em que, repetidas vezes, em documentos-chave, o Povo de Deus é expressado como uma eclesiologia dos fiéis, não como uma hierarquia de clérigos, da qual o quarto capítulo da Lumen gentium é um exemplo.
A Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum concilium ensina que a Igreja é todo o Povo de Deus chamado a proclamar o Evangelho na palavra e no sacramento, por meio da participação ativa e de sinais inteligíveis.
O documento enfatiza que a liturgia é aquela “pela qual, especialmente no sacrifício eucarístico, se opera o fruto da nossa Redenção” (SC 2) e salienta que Cristo está presente nas celebrações litúrgicas em pelo menos quatro formas (SC 7):
“... no sacrifício da Missa, quer na pessoa do ministro (...) quer e sobretudo sob as espécies eucarísticas. (...) Está presente na sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura. Está presente, enfim, quando a Igreja reza e canta, Ele que prometeu: ‘Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles’ (Mt. 18,20).”
Se esses são elementos constitutivos que tornam a liturgia “um exercício da função sacerdotal de Jesus Cristo”, então a liturgia é o lugar onde “os sinais sensíveis significam e, cada um à sua maneira, realizam a santificação dos homens e mulheres”.
Se a liturgia é um ato público prestado pelo “Corpo Místico de Jesus Cristo, cabeça e membros”, e o batismo constitui essa participação, então a liturgia pode ser celebrada na ausência dos fiéis leigos batizados?
Dependendo de como você interpreta essas passagens, isso determina como você responde liturgicamente à presença ou à ausência dos fiéis leigos batizados na liturgia.
O Concílio nos leva a concluir que a assembleia litúrgica é constituída por todos os batizados (leigos e clérigos)? Ou o padre sozinho, na sua sala de estar, ou um bispo em uma catedral vazia, constitui o corpo místico de Cristo, cabeça e membros, sem a presença dos leigos batizados?
Por fim, o Vaticano II nos lembra que “louvar a Deus no meio da Igreja, participar no Sacrifício e comer a Ceia do Senhor” é o ápice da atividade da Igreja (SC 10).
Ele também nos lembra que essa não é a única atividade litúrgica da Igreja. O importante é que rezemos sem cessar (cf. SC 12).
A oportunidade de nos levar a novas formas de pensar e rezar tem sido perdida em alguns lugares e descoberta em outros, e a Igreja leiga doméstica em suas bolhas, está se beneficiando disso. Meu medo é que, enquanto os leigos estão sendo ajudados a encontrar novos modos de rezar neste momento de crise, o clero esteja sendo deixado para trás.
A Covid-19 revelou a nossa distinção litúrgica mais profunda e não resolvida. O modo como respondemos agora terá algum impacto no modo como rezaremos no futuro e no tipo de Igreja que encontraremos quando sairmos do nosso confinamento litúrgico.
Continuaremos sendo uma Igreja centrada no clero, que diz palavras vãs aos fiéis leigos batizados, ou de uma Igreja que abraça os batizados no coração do culto?
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A pandemia e os dilemas da liturgia católica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU