09 Abril 2020
O frade inglês Timothy Radcliffe, ex-superior da Ordem dos Pregadores (Dominicanos) de 1992 a 2001, sugere como podemos usar estes dias de espera e de esperança para mudar o modo como estruturamos as nossas vidas. Há uma oportunidade de abrir mão do passado com os seus fardos, de se abrir ao futuro com suas promessas e de viver cada momento como ele é.
O artigo é publicado por The Tablet, 08-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ao meio-dia, cantamos “Até quando, ó Senhor?” (Salmo 13). Antes da Covid-19, quando eu cantava essas palavras, costumava pensar em meus irmãos e irmãs no Iraque: até quando durará o seu sofrimento, década após década? Agora, são as palavras que estão em todas as nossas bocas. Até quando, ó Senhor, essa pandemia continuará?
A equipe dos serviços de saúde e os médicos devem estar se perguntando até quando continuarão tendo que trabalhar por tantas horas desgastantes, arriscando suas próprias vidas. Até quando aqueles que trabalham nos supermercados, nos transportes e nos correios e em outras áreas essenciais terão que ficar tão perto de outras pessoas? Até quando os pais fechados com filhos pequenos permanecerão pacientes e amorosos? Até quando os avós não poderão desfrutar da convivência dos seus netos? Até quando terei que esperar para receber o resultado do meu teste para o vírus? Até quando vou viver?
Mesmo em meu espaçoso priorado em Oxford, eu pergunto: “Até quando, ó Senhor”, não poderemos ver novamente os rostos daqueles a quem eu amo? Skype e Zoom não são a mesma coisa. Quanto tempo levará antes de eu abraçar aqueles que são mais queridos para mim – se é que isso vai acontecer?
Uma curta ausência aguça a antecipação, mas, quando prolongada, atormenta a nossa humanidade. No romance de Amélie Nothomb, “Soif”, Jesus se deleita com a sede. “Tendo ofegado com sede por um tempo, não beba o cálice de água de uma vez só. Tome um gole, segure-o na boca antes de engolir. Meça como isso é maravilhoso”. Mas, na cruz, essa sede se torna horrível e englobante.
Geralmente, estimamos “até quando” usando como referência os calendários que estruturam o nosso tempo: os encontros familiares, as estações da fé, o período escolar e universitário, os eventos esportivos. Mas o que estrutura o nosso tempo agora? Ele não tem forma, o que torna difícil de suportá-lo. “O tempo está fora dos eixos”, como observou o problemático Hamlet. Parece que vivemos com o vírus há anos e não há semanas.
Um amigo me escreveu: “As notícias me fazem sentir pior, mas, sem elas, há uma sensação de que eu posso estar perdendo alguma coisa. O confinamento me deixa nervoso com o mundo lá fora, mas também claustrofóbico”. Eu tenho uma pilha de livros que há muito tempo gostaria de ler. Agora eu tenho tempo, mas não posso me acostumar com isso. A tentação é apenas continuar enviando e respondendo e-mails e acompanhando as notícias.
A resposta para esse clamor: “Até quando, ó Senhor?” não é uma data em um diário, mas sim um modo de viver no tempo. Perguntou-se a Martin Luther King até quando seu povo seria oprimido. “Por mais difícil que seja o momento, por mais frustrante que seja a hora, não demorará muito, porque a verdade esmagada até o chão ressurgirá (...) Até quando? Não muito, porque o arco do universo moral é longo, mas se inclina para a justiça (...) Ele tocou as trombetas que nunca chamarão à retirada. Ele está elevando o coração dos homens diante do Seu tribunal. Ó, seja rápida, minha alma, para responder a Ele. Que meus pés sejam jubilosos. Nosso Deus está marchando”.
“Não muito” – mas não porque haja uma data em que o preconceito acabará, mas porque King aprendeu a viver cada dia com esperança. São John Henry Newman disse que um cristão é alguém que espera por Cristo e, portanto, já está tocado pela sua vinda. No Segundo Domingo da Páscoa de 1945 (09-04-1945), quando a Gestapo veio levar Dietrich Bonhoeffer para ser executado, ele teve o tempo suficiente para sussurrar uma mensagem final a um companheiro de prisão a ser transmitida a seu amigo, o bispo Bell, de Chichester: “Este é o fim, mas, para mim, é o começo (...) Nossa vitória é certa”.
Portanto, quando nossos calendários habituais estão esfarrapados e não temos nem ideia de quando essa peste passará, o segredo é viver nossos dias moldados pela esperança. O teólogo batista Ian Stackhouse faz uma afirmação surpreendente: “Parece-me que a batalha pela civilização girará em torno do desafio ultrajantemente simples de viver bem um dia”. Ele acredita que esse é o dom da Liturgia das Horas.
Meus pais descobriram o ritmo vivificante do breviário. Um membro dos leigos dominicanos, preso pela sua carreira como mercenário da máfia, me disse que havia se tornado como uma freira, recitando seu ofício de manhã, ao meio-dia e à noite. As pessoas podem achar outros ritmos mais frutíferos. Uma amiga minha, uma médica prestes a se aposentar, estrutura seu dia em torno da família, correndo, cuidando do jardim, com música e poesia. Estamos redescobrindo a alegria da “vida normal”. Eu não vivo uma vida tão regular desde quando era noviço!
Como é um dia bem vivido? A Liturgia das Horas está moldada para que possamos abrir mão do passado com os seus fardos, estar abertos ao futuro com suas promessas e viver o agora. Ela nos dá dicas de como todos nós que estamos fechados em casa podemos estruturar nossos dias para viver na esperança.
A liturgia de cada hora, com exceção do meio-dia e do Ofício das Leituras, tem um cântico que nos convida a viver aquele momento do dia. Em Gênesis 1, o dia começa à noite, como ainda ocorre em todas as grandes festas. John Donne chama a escuridão de “irmã mais velha da luz”. O amanhecer chega como um presente esperado. Para nos prepararmos para o novo dia, ao entardecer e à noite, devemos abrir mão do passado, com os seus fardos e ressentimentos.
Trancados com outras pessoas, em família, ou em um apartamento compartilhado, ou mesmo em uma comunidade religiosa, os fardos tendem a se acumular, e as tensões se intensificam. Em uma Grã-Bretanha confinada, depois de algumas semanas juntos, pensamentos homicidas virão à tona. Em Wuhan, quando as restrições foram levantadas, a taxa de divórcios disparou. O Magnificat das Vésperas é o canto de uma jovem que se lembra com gratidão das grandes coisas que o Senhor fez por ela. De que outra forma ela poderia enfrentar o futuro?
Como podemos marcar cada dia com gratidão pelas graças dadas e até pelas pessoas que podem estar nos deixando loucos naquele preciso momento? Precisamos encontrar tempo para agradecer, mesmo quando não podemos ir ao sacramento da Ação de Graças, a Eucaristia. Agora, mais pessoas do que nunca estão participando da missa online em Blackfriars.
Como última coisa à noite, nas Completas, somos convidados a abrir mão do dia e até mesmo das nossas vidas. Como o velho Simeão, nós cantamos: “Deixai, agora, vosso servo ir em paz, conforme prometestes, ó Senhor” (Lucas 2,29). São Paulo nos diz: “Não se ponha o sol sobre a vossa ira” (Efésios 4,26).
É o momento de limpar as nossas mentes das mágoas do dia, para que possamos ficar em paz uns com os outros. De um jeito ou de outro, precisamos de um ato diário de perdão mútuo, uma cura das feridas. Caso contrário, não dormiremos.
A manhã é a hora de novos começos. É de manhã que o Cristo ressuscitado aparece no jardim. Cada Laudes é um convite para estar aberto à promessa do Senhor. O cântico é o Benedictus, no qual Zacarias canta sobre o seu filho, o futuro João Batista:
Serás profeta do Altíssimo, ó menino,
pois irás andando à frente do Senhor
para aplainar e preparar os seus caminhos,
anunciando ao seu povo a salvação,
que está na remissão de seus pecados (Lucas 1,76-77).
As crianças são a promessa do futuro. Durante o genocídio em Ruanda, uma pessoa que perdeu seus irmãos chorou comigo porque tudo o que ele amava estava sendo destruído. No Natal seguinte, ele me enviou uma fotografia dele com dois bebês gordinhos. No verso, ele escreveu: “Ruanda tem futuro”.
O ofício do meio-dia não tem nenhum cântico. Ele nos convida a enfrentar o desafio mais difícil: a viver o agora, em vez de ficar preso no passado ou a se lançar atrás do futuro. Jesus foi um homem que viveu cada dia como ele era. Ele estava caminhando por um vilarejo quando viu o pequeno Zaqueu em cima de árvore. “Zaqueu”, disse ele, “desça depressa, Zaqueu, porque hoje preciso ficar em sua casa” (Lucas 19,5). Ele vive o momento. “Hoje a salvação entrou nesta casa, porque também este homem é um filho de Abraão.”
Esperar que o confinamento acabe pode ser a coisa mais difícil que devemos fazer. Eu já anseio por sair do isolamento e por dar uma caminhada nos jardins de Oxford. Mas ouço a voz do Abbá Moisés, o Padre do deserto, que me lembra: “Sente-se na sua cela, e a sua cela lhe ensinará tudo”.
O Senhor está vindo. Até quando temos que esperar? Não muito!
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Até quando, ó Senhor? Artigo de Timothy Radcliffe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU