25 Março 2020
"A pandemia não é uma cínica pedagógica de Deus, mas uma catástrofe natural em câmera lenta. É parte da nossa realidade com suas ambiguidades, com suas muitas nuances entre luz brilhante e escuridão profunda. Em teologia, falamos de "criação caída", escreve Petra Bahr, teóloga alemã evangélica, que de 2006 a 2014 participou como Oberkirchenrättin da Evangelische Kirche in Deutschland - EKD, sendo atualmente, desde 2017, bispa regional de Hannover, em artigo publicado no caderrno Christ & Welt, do jornal Die Zeit, 20-03-2020. A tradução da versão italiana é de Luisa Rabolini.
Segundo a teóloga, "no ano litúrgico, há o tempo da Paixão. Nestas últimas semanas, cristãos e cristãs lembram o caminho da cruz de Cristo. Eles retornam todos os anos para refletir sobre a ideia sempre escandalosa de que Deus se mostra na perda e na traição do amor, na dor e angústia da morte e não no governo ditatorial do mundo. A ideia de paixão inclui em si aquela de substituição. Cada um está disposto a aceitar muito pelos outros, Jesus até tudo. A ideia antiga da vítima encontra seu desenlace na dedicação aos outros. Portanto, a ideia de garantir uns pelos outros não é uma moralização superficial do evento profundo da cruz, mas sua consequência prática. Sequela Christi não é uma expressão vazia se a Igreja se torna um lugar onde o bem dos outros é colocado no centro. Isso pode ser feito de maneiras criativas, mesmo em um momento em que se não pode trocar nem sinal de paz e não se pode ficar lado a lado nos bancos da igreja".
Os seres humanos precisam de outros seres humanos. Mas em tempos de coronavírus, o próximo se torna um perigo em potencial. Como podemos nós, como cristãos, superar o estado de emergência?
As celebrações são proibidas. Apenas alguns dias atrás, essa afirmação seria impensável na Alemanha. A interferência no direito fundamental à liberdade de religião tornou-se necessária, porque o "direito à vida" é um bem primário de nossa Constituição. A pandemia, que envolveu o mundo inteiro, perturbou toda a nossa vida em poucos dias e nos colocou diante de grandes desafios. Há aqueles que respondem ao choque fisicamente e permanecem como que paralisados olhando as telas ou se fecham em tranquilizadores mundos de ficção.
Há quem entra na "modalidade de crise" porque nada mais pode ser feito. São aqueles que, 24 horas por dia, tomam decisões difíceis, organizam planos de emergência, mantêm funcionando hospitais, clínicas, segurança interna e externa, aqueles que recolhem o lixo diante de nossas portas, que tentam dar coragem aos idosos que não podem mais receber a visita dos netos.
Quem conhece médicos e enfermeiros, quem fala com bombeiros ou policiais, quem conhece aqueles que têm responsabilidades em política e economia, em escolas ou órgãos sociais, sabe o que quero dizer. Unidades de crise precisam ser montadas e convocadas, e minuto após minuto devem sem enfrentados cenários que a maioria dos alemães conhece apenas dos filmes. Enquanto isso, as crianças gatinham sob a mesa que agora se tornou o escritório em casa.
Mas o "trabalho livre" cercados crianças chorosas, entediadas e assustadas tem pouco a ver com o que é cantado em livretos brilhantes. Músicos, artistas, intérpretes, treinadores e todas as pessoas que são profissionais liberais se perguntam como poderão pagar o aluguel de abril. Aqueles que abastecem diariamente grandes quantidades de suprimentos nas prateleiras dos supermercados também devem agora suportar o nervosismo dos clientes.
Nesta situação de emergência, tomam a palavra "teólogos" salvadores do mundo, bancando profetas que parecem saber exatamente como a situação está. "Flagelo de Deus", me escrevem, resposta à excessiva liberalização e globalização, uma punição que chama à conversão. Mulheres, judeus, chineses, o espírito da época - voltam à moda todos os bodes expiatórios de sempre.
Todos aqueles que se submeteram ao espírito do tempo morreram, escreve-me um desses sabichões e completa a frase com três pontos de exclamação. Anexa a imagem de uma pintura de Pieter Bruegel, uma barafunda de corpos em sofrimento esfolados pela peste com os olhos bem abertos e vidrados pelo medo. Essa carta representa uma fantasia herética que é uma variante cristã da teoria da conspiração.
Os artistas da Idade Média tornaram visíveis com suas imagens apocalípticas as ânsias coletivas, chamando a atenção para as misérias visíveis e invisíveis. Eles pintaram o inferno na terra com cenas que nos lembram a situação atual das pessoas nos campos da ilha de Lesbos. Os autoproclamados profetas do século XXI também se divertem em abusar, como forma de evangelização, de cenários de pânico e horror ligados a uma hipócrita superioridade religiosa e à presunção de serem escolhidos.
Há também uma variante secular dessas tentativas político-religiosas de encontrar um sentido na pandemia. Nessa variante, a pandemia é um aviso para os idosos que não fizeram o suficiente para impedir as mudanças climáticas. A indignação moral se transforma em discursos apocalípticos de expiação.
Não, a Covid-19 não é o "flagelo de Deus". Que Deus seria esse que ordenasse uma punição em série nos quartos dos idosos e dos doentes?
A pandemia não é uma cínica pedagógica de Deus, mas uma catástrofe natural em câmera lenta. É parte da nossa realidade com suas ambiguidades, com suas muitas nuances entre luz brilhante e escuridão profunda. Em teologia, falamos de "criação caída". Nesse sentido, o mundo sempre esteve em dificuldade, às vezes mais, às vezes menos. Nos primeiros séculos, os humanos percebiam uma experiência maior dos perigos de doenças que despovoavam regiões inteiras. Isso é testemunhado por antigos hinos religiosos que talvez agora voltem à nossa mente, porque ousam expressar com palavras de fé a profunda experiência de impotência e de eclipse de Deus.
Agora estamos vivendo uma situação tão excepcional, porém acompanhada por uma gigantesca máquina de informação e imagens que nos segue permanentemente com a internet e as mídias sociais e que também podem levar à acomodação e à náusea.
Qual pode ser a resposta cristã a essa situação excepcional?
Certamente, não atribuir um significado religioso à pandemia, e em vez disso perguntar-se a partir do Deus da Paixão o que cristãos e cristãs, como comunidade ou indivíduos, podem fazer, estar presentes uns aos outros nessa realidade que está se transformando de maneira tão dramática. As celebrações comunitárias ("cultos a Deus") estão proibidas, os "encontros com Deus" não são proibidos: usando, como muitos fazem, as possibilidades do meio digital.
A necessidade ensina não apenas a rezar. As pessoas "se reúnem" com orações no twitter, transmitem em streaming pensamentos de devoção, organizam linhas diretas para diálogos e temas pastorais.
Assim, para aqueles que nunca teriam posto os pés em uma igreja, o limiar a ser superado se torna muito mais simples. Além disso, a "comunhão dos santos" de que os cristãos falam na profissão da fé sempre foi uma fita invisível que inclui e envolve o mundo inteiro. Nestes nossos dias, a distância física é uma expressão de amor ao próximo. Assim, a Igreja tem um novo paradoxo de amor que deve ser aceito não com os dentes cerrados e contra a vontade, mas pelo amor dos mais fracos.
Talvez este seja o momento em que as experiências religiosas e as trocas espirituais, e também as discussões teológicas e a pastoral não devem ser entendidas na forma de "eventos externos", mas como energia espiritual que surge onde "dois ou três" se ajudam, uns aos outros. A dimensão da diaconia da fé torna-se, se possível, parte da consciência do próprio papel, mesmo que as grandes instituições da diaconia tenham tido por muito tempo uma vida própria.
No ano litúrgico, há o tempo da Paixão. Nestas últimas semanas, cristãos e cristãs lembram o caminho da cruz de Cristo. Eles retornam todos os anos para refletir sobre a ideia sempre escandalosa de que Deus se mostra na perda e na traição do amor, na dor e angústia da morte e não no governo ditatorial do mundo.
A ideia de paixão inclui em si aquela de substituição. Cada um está disposto a aceitar muito pelos outros, Jesus até tudo. A ideia antiga da vítima encontra seu desenlace na dedicação aos outros. Portanto, a ideia de garantir uns pelos outros não é uma moralização superficial do evento profundo da cruz, mas sua consequência prática. Sequela Christi não é uma expressão vazia se a Igreja se torna um lugar onde o bem dos outros é colocado no centro. Isso pode ser feito de maneiras criativas, mesmo em um momento em que se não pode trocar nem sinal de paz e não se pode ficar lado a lado nos bancos da igreja.
O senso de comunidade não é uma palavra vazia daqueles que falam de um mundo ideal, mas o pensamento bíblico fundamental que determina a maneira como os seres humanos se relacionam. Já acontece isso na Bíblia hebraica e Jesus o refere a si mesmo. Ninguém sabe o que os próximos dias e semanas trarão, como as famílias suportarão as restrições e as preocupações dentro delas, quando os nervos estarão em frangalhos e as angústias existenciais crescerão. Ninguém sabe como as crianças vão suportar esse período de isolamento. Ninguém sabe até que ponto o vírus da solidão nos pegará.
A fé cristã não é uma defesa contra o contágio nem uma garantia de estabilidade psíquica. Nós precisamos uns dos outros. A Igreja como comunidade de memória e de narrativa, como comunidade de oração e comunidade de ajuda por um certo período de tempo, não precisa se ocupar de si mesma. Em vez disso, pode se concentrar naquela que é sua tarefa: anunciar a proximidade de Deus, com a atenção e o amor, com a oração e com pacotes diante da porta de casa, com telefonemas e canções nas varandas, com o apoio para as pessoas em situações de dificuldade psicológica ou prática. E se, no meio tempo, a força faltar e a exaustão se espalhar, com a profunda e antiga profissão de fé: "Deus acredita em nós".
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O vírus da solidão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU