17 Setembro 2019
Marta Peirano é o que podemos definir como uma especialista no assunto, que não é outro que a “soberania tecnológica”. Ler seu último ensaio, El enemigo conoce el sistema (Debate, 2019), é tão arrepiante como necessário. A distopia, a respeito da qual já lemos muito aqui, é invisível a nossos olhos, mas nos acompanha em cada detalhe do cotidiano. É a particular catástrofe nuclear de nossos dias, cujas consequências desconhecemos.
A entrevista é de Adolfo Moreno, publicada por La Marea, 16-09-2019. A tradução é do Cepat.
Em um evento TED, que ocorreu em 2015, repassou, de maneira muito “orvelliana”, toda a informação que possuem a nosso respeito por meio de nossos celulares, para apresentar o seguinte paradoxo: “Não nos comportamos da mesma forma quando sabemos que somos vigiados”. O primeiro passo é tomar consciência de que somos vigiados constantemente? Ou é melhor olhar para outro lado, para tentar evitar viver em um estado de paranoia constante?
É como a teoria sob o panóptico: a ideia de que a melhor maneira de educar a população é que esta nunca saiba quando está sendo vigiada, nem onde estão as câmeras. Vivemos esse momento, mas, ao mesmo tempo, as mesmas plataformas que facilitam esse tipo de vigilância se esforçam muito para que pareça banal. Ou seja, que aparente ser algo que se fica entre o Facebook e você, entre a Amazon e você, e que, no melhor dos casos, “utilizamos os dados de forma anônima para nossas estatísticas e para lhe oferecer melhores serviços”. As pessoas estão satisfeitas com isso, entre outras coisas, porque são viciadas nos serviços que lhes são oferecidos.
As redes sociais são delineadas para nos gerar um vício orientado, para que produzamos dados para alimentar um algoritmo que está em contínuo aperfeiçoamento?
Não diria tanto que são delineadas para ser viciantes, também isso, mas estas plataformas são delineadas para extrair dados. O vício é só uma ferramenta para esse propósito, e para isso precisam que estejamos grudados à tela o maior tempo possível.
O inimigo conhece o sistema, mas nós não. O que de básico o cidadão precisa conhecer a respeito do sistema?
Que o sistema de telecomunicações, do qual depende praticamente tudo o que fazemos na era da informação, não é “a metáfora do sistema”. Discutimos sobre a Internet e sobre os serviços usando os termos que as agências de marketing delinearam para eles, não com os termos que os engenheiros e os programadores que os criaram empregam. Trabalhamos com alguns conceitos não só fictícios e metafóricos, mas que, além disso, nos últimos quinze anos, foram evoluindo para um lugar no qual, literalmente, representam uma camada de opacidade absoluta entre o sistema e nós. E é deliberado.
Quando algo se chama “a nuvem”, é preciso começar a suspeitar porque muita gente imagina uma espécie de éter que flutua cheio de partículas de dados, alguns dos quais são os nossos... Você pergunta a alguém como chegam os e-mails e imagina um processo no qual alguns dados vão de um lugar para o outro e que procuram percorrer o menor percurso possível. A realidade é completamente diferente: é uma infraestrutura que não está traçada para a eficiência, mas para o controle e o registro de dados.
É a ‘economia da vigilância’, conforme a define no livro, o setor econômico mais poderoso?
Sim, se você olha a lista de empresas mais valiosas do mercado, todas se dedicam ao mesmo negócio: a vigilância ou a extração de dados.
Se amanhã, você fosse nomeada comissária europeia da Indústria, qual seria sua primeira medida?
Reforçar as empresas europeias para que desenvolvam fibra nos lugares onde não chegou. Ou facilitar para as cooperativas que estão surgindo nas zonas rurais, para que a coloquem.
Donald Trump foi apoiado por duas personalidades fundamentais para a sua eleição: Robert Mercer, dono da Cambridge Analytica e abonador de Steve Bannon, e Peter Thiel, dono da Palantir. Na criação desta última empresa, em 2004, participou a CIA com a finalidade de vigiar “inimigos do mundo livre” no Iraque e no Afeganistão. Hoje, dedica-se a monitorar à distância qualquer sujeito, organização e sistema, registrando dados de todo tipo (consultas médicas, compras com cartão, viagens...) e a vendê-los para outras agências de inteligência. O que Trump pode fazer com a ajuda desta empresa?
Pode encontrar mais Julian Assanges, por exemplo. Trump está assentando um precedente importante: está seguindo um processo de desumanização de determinados coletivos diante da sociedade americana, o que conduz ao despojo de seus direitos humanos. Nesse processo, retirou a nacionalidade de pessoas que a tinham há vinte anos, pois graças a Peter Thiel consegue encontrar essas pessoas onde quer que estejam e colocá-las em um centro de detenção de imigrantes. É muito perigoso.
El enemigo conoce el sistema é um livro sobre a mudança climática porque todo este aparato de vigilância não está acontecendo de costas para a mudança climática. Está acontecendo em antecipação à mudança climática. Para suas corporações, é uma oportunidade. Há um grupo de pessoas que está operando em grande escala, sem se importar com os Estados-nação porque, de fato, no contexto da crise climática, as fronteiras serão muito fluidas. Esse é o contexto no qual estão operando: grandes massas de pessoas se movimentado de forma desesperada pelo planeta (já é assim) e eles as vigiando. Ao grande e ao pequeno, às massas de pessoas e às pessoas individualmente. E, além disso, poderão gerir os recursos finitos do planeta como, por exemplo, a água.
Estas grandes companhias também contribuem para a mudança climática com, por exemplo, a nuvem, que polui muitíssimo. E falar da nuvem é falar da Amazon, o “monstro discreto”, no sentido, como indica em seu livro, de que pensamos que Jeff Bezos se tornou rico vendendo livros.
Bom, “discreto”, não. Mas, sim, [risos] a Amazon.com é um disfarce para o seu verdadeiro negócio. A Amazon Web Services [AWS, a nuvem da Amazon] tem como verdadeiro negócio hospedar Internet. A última vez que a verifiquei, havia hospedado 46% do mundo ocidental. A Microsoft está muito atrás. E é muito difícil saber qual a porcentagem da Alibaba [a nuvem chinesa], que é a sua principal competidora. Isto é crucial porque o princípio da “economia da vigilância” na rede foi o Google nos oferecendo, com o Blogger, uma plataforma para que tivéssemos um blog.
Agora, o que a Amazon faz é dizer a você: “Se possui uma garagem com um carro dentro, e quer colocar uma câmera e que essa câmera esteja conectada a um sistema de reconhecimento facial para o vigiar bem, você tem duas opções: contrata a Securitas Direct ou utiliza a câmera que realmente lhe custa quatro dólares. E mais, será gratuito para você nos 80 primeiros meses”. E, então, o que a Amazon possui são centenas de milhares de milhões de olhos trabalhando para ela gratuitamente, em todos os cantos, da mesma maneira que nós, “bloggers”, passamos trabalhando gratuitamente para o Google.
Falando de olhos, que diferenças há entre a Inglaterra ‘orwelliana’ de ‘1984’ e a China real de 2020 e seu sistema de crédito social?
As duas sociedades são autoritárias porque as punições na China são reais. O que cola muito bem com 1984 é a burocratização do crime. O sistema de crédito social chinês - que nos escandaliza, mas que não utiliza qualquer tecnologia que não estejamos implementando, aqui, em grande velocidade -, me interessa porque não é só um sistema de vigilância, mas também de reeducação da cidadania. Diz ao cidadão quando agiu mal e quando agiu bem.
Sempre digo que a China é 1984 [George Orwell, 1948]; e o Ocidente Admirável mundo novo [Aldous Huxley, 1932]. Contudo, ambos têm o mesmo objetivo: o férreo controle da população com fins variáveis, neste caso, para mim, ficar com todos os recursos, durante o maior tempo possível. Imagino que estas pessoas já estão pensando no salto quântico de: “vamos nos livrar de toda esta ralé e viver verdadeiramente bem, começar do zero”. Esta ideia das colônias em Marte, que na realidade é uma ideia que flutua a todo tempo no ambiente, mas a piada é que a Terra será Marte.
Soa como eugenia...
É totalmente eugênico. Se você olha anúncios ou documentários sobre, por exemplo, a sede do Google na Califórnia, encontra um tipo muito concreto de pessoas. No Google e Facebook há protestos constantemente, porque só há pessoas afro-americanas e mulheres. É uma comunidade fechada, de pessoas que ganham uma quantidade estúpida [morde a palavra] de dinheiro, cujos problemas não têm nada a ver com os da maioria e que aspira ter sua própria divisa.
Para terminar com algo de otimismo, por onde deveriam vir as soluções para sair deste Grande Irmão? O que o cidadão normal pode fazer para contribuir com seu grãozinho de areia?
Estamos em um ponto em que parece que todas as cidades precisam ser smart cities e que o 5G é imprescindível. O melhor que o cidadão pode fazer, independentemente dos aplicativos que utilize, é exigir que os governos assegurem a soberania das infraestruturas, que as leis de proteção de dados sejam cumpridas, sobretudo em relação às redes de vigilância tão sutis e incontestáveis e invisíveis como as câmeras conectadas a sistemas de reconhecimento facial.
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“Com a crise climática, as fronteiras serão muito fluidas e poderão vigiar grandes massas de pessoas”. Entrevista com Marta Peirano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU