13 Agosto 2019
Uma fotografia, amassada e descolorida, mostra uma menina de 13 anos, Vallie Brown, sorrindo timidamente para a câmera enquanto faz gesto para tirar o cabelo do rosto. A garota está em pé na frente do que é identificado como a parte de trás de uma van. Ela usa um maiô branco de uma só peça e, à primeira vista, parece que acabou de voltar de um dia ensolarado na praia.
A reportagem é de Vivian Ho, publicada por El Diario, 11-08-2019. A tradução é do Cepat.
Ao observar a fotografia de Brown, poucas pessoas poderão intuir que a garota da foto morava naquela van com a mãe, e que todas as noites, quando escurecia, deitava nos bancos traseiros para dormir. Na verdade, estava usando aquele maiô embaixo das roupas porque precisava tomar banho nos postos de gasolina mais próximos.
Mais de quarenta anos depois que a fotografia foi tirada, e muito antes de os dados oficiais confirmarem suas suspeitas, Brown percebeu, pela experiência que viveu em sua infância, que a crise imobiliária na Califórnia havia passado por outra reviravolta: que as vicissitudes de sua família durante a infância são agora a dura realidade de muitas pessoas.
"Reconheço os sinais", explica Brown, que se tornou uma legisladora de São Francisco. "Quando vejo uma van ou um carro com as cortinas levantadas, uma toalha enrolada na janela que serve para ter alguma privacidade, as portas abertas, e um monte de coisas no veículo, e que estão secando as roupas [é um sinal de moram ali]".
Em toda a área da Baía de São Francisco, essa realidade se esconde em plena luz do dia. Veículos se tornaram abrigos. Alguns, como apontou Brown, são facilmente reconhecíveis: um veículo sobrecarregado de pertences e com rodas que parecem estar afundando, uma van com uma janela com fita adesiva e um trailer tão antigo que parece não funcionar.
Outros veículos, por outro lado, poderiam passar pelo carro de um vizinho: um Lexus sedan 2006 em perfeitas condições, e um modelo mais recente que seja limpo para ser usado nas viagens Uber e Lyft.
De acordo com as autoridades de São Francisco, hoje 1.794 pessoas vivem em seus veículos, o que representa um aumento de 45% em comparação ao último registro de desabrigados em 2017.
Do outro lado da baía, em Alameda, no condado onde a cidade de Oakland está localizada, as autoridades estimam que 2.817 pessoas vivem em veículos, mais que o dobro do número de 1.259, registrado em 2017.
Nos últimos 10 anos, a Califórnia construiu menos da metade das casas necessárias para cobrir o crescimento da população, o que criou uma escassez que fez subir o preço de compra e aluguel. O preço médio de uma casa em São Francisco já supera US $ 1,7 milhão e a renda média de um apartamento com sala e quarto é de US $ 3.700 por mês. Neste contexto, o número de pessoas sem abrigo aumentou 17% em São Francisco e 43% em Alameda. Somente Oakland registra mais da metade do total de desabrigados do condado.
Em outras partes da Califórnia, o aumento do número de desabrigados foi semelhante. O município de Los Angeles registrou um aumento de 12% em relação ao ano passado, com quase 59.000 pessoas desabrigadas em todo o município. Autoridades apontam que 9.981 carros, vans, veículos recreativos e trailers se tornaram o lar do assustador número de 16.525 pessoas. Algumas cidades como São Francisco e Berkeley optaram por proibir em certas ruas estacionar veículos grandes. Como resultado desta medida, alguns veículos que são realmente o lar de pessoas sem abrigo acabam sendo multados ou levados pelo guincho.
Cidades como São Francisco e Oakland criaram áreas de estacionamento seguras, onde pessoas com veículos que se encaixam em certos parâmetros podem deixar seus pertences sem medo de que as leis sejam aplicadas por um determinado período de tempo.
Transformar um veículo em um lar improvisado não é um fenômeno novo, especialmente nesta parte da costa oeste dos Estados Unidos, onde o clima é mais moderado do que em outras partes do país. Brown e sua irmã mais velha viviam em uma van em diferentes épocas dos anos 1970, enquanto sua mãe trabalhava para economizar dinheiro e pagar o aluguel do apartamento seguinte. "Tinha empregos esporádicos e nos mudávamos muito, e geralmente era porque não podíamos pagar o aluguel", explica Brown. "Costumávamos juntar tudo e nos mudar antes que nos expulsassem."
As organizações que defendem moradias mais acessíveis apontam que o número de desabrigados está aumentando. A população transeunte é difícil de contabilizar, e aqueles que vivem em seus veículos são ainda mais por causa de sua mobilidade. No entanto, precisamente porque lidam com essa realidade diariamente, os ativistas sabem que muitas delas recentemente se tornaram sem-teto e que, então, ficarão presos nesse tipo de vida. Algumas têm filhos. Algumas têm trabalho estável e dinheiro economizado, mas não o suficiente para permitir um aluguel na Califórnia.
"Cada vez são mais pessoas com bens e meios de subsistência que estão se tornando sem-teto, o que é muito assustador", diz Jeff Kositsky, diretor do Departamento de Pessoas Sem Abrigo e Moradia de Apoio em São Francisco. Ressalta que muitos dos veículos recreativos que hoje servem como lar, por exemplo, custam muito dinheiro. "[Seus donos] são claramente pessoas com algum tipo de patrimônio, uma situação muito diferente daquele que se enrola em um cobertor e dorme na porta de um prédio", acrescenta.
Roberto López, 44 anos, entra na nova categoria de moradores de rua. Ganha 25 dólares por hora trabalhando na construção e geralmente trabalha cerca de 40 horas por semana. Apesar de ter um emprego, mora na rua desde que há dois anos ficou sem teto. "Eu pensei que eu iria encontrar outro teto sem nenhum problema, mas não havia nada por menos de 2.000 dólares por mês", lamenta.
Amistoso e conversador, López corre para cumprimentar os estranhos que entram no acampamento. Ele esboça um grande sorriso e brinca com outros residentes do acampamento que passam ali, e se formam rugas de expressão no extremo de seus olhos. "Conseguimos criar algo especial", diz López. "E é algo incrivelmente positivo", explica.
O acampamento consiste em dezenas de vans, carros, veículos de recreio e trailers, que formam um círculo ao lado de alguns barracos e estruturas de compensado. Instalaram uma cozinha comunitária e um depósito de lixo. Na cerca em torno do local, um dos moradores pendurou roupas que, junto com outros objetos, vendem a 1 dólar a peça.
A família de López chegou à conclusão que para decidir viver nessas condições é preciso ser alcoólatra ou viciado em drogas. "A verdade é que comecei a ter esse estilo de vida porque fui obrigado", explica. López não quer viver em seu veículo pelo resto de seus dias. "Esta não é a vida que eu quero", diz. No entanto, no momento quer ficar aqui com seus novos amigos. Quer ter certeza de que alguém cuida deles, já que cuidaram dele. "É assim que se vive em comunidade", diz, "como se vive em uma família". "Enquanto as famílias necessitarem de um lugar para se abrigar e tiverem um veículo, dormir no carro é preferível a outras alternativas."
"Faz sentido que se alguém perde a casa e por ventura tem um veículo ou consiga um, prefiram dormir lá do que na rua", diz Kelley Cutler, ativista dos direitos humanos da Coalisão de pessoas sem teto, uma organização sem fins lucrativos sediada em São Francisco: "Dormir na rua tem seus riscos. Dormir em um veículo também, mas pelo menos você está um pouco protegido".
"Esqueça morar em uma barraca", diz Chris Eakin, em frente à Avenida Evans, em São Francisco.
Brown acha difícil falar sobre sua infância em uma van porque se lembra de que sua mãe se sentia muito envergonhada: "Pediu que não contássemos a ninguém”, lembra-se. “Temia que alguém pudesse pensar que não poderia cuidar de suas meninas". Sua mãe morreu quando Brown tinha 14 anos de idade. Na época de sua morte, tinha dois empregos em tempo integral. Brown sabe que muitas das famílias que atualmente vivem em seus veículos estão passando pela mesma situação.
"Sempre tive a sensação de que minha mãe fez o melhor que podia", diz: "A vida pode ser difícil quando você não tem dinheiro e não há saída". Ela acha frustrante andar pelas ruas de seu bairro e ver famílias vivendo a mesma realidade que ela e sua família viveram muitos anos atrás.
A única coisa que Brown pode fazer é trabalhar para mudar a situação. "Eu dou muitas voltas, não sabemos o que vai funcionar até tentarmos", conclui: "E estou disposta a tentar novas ideias para tirar essas pessoas da rua."
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Estados Unidos. Centenas de trabalhadores não podem ter uma casa na Califórnia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU