15 Julho 2019
Um filósofo alemão que em termos acadêmicos é jovem, que defende a televisão e ao mesmo tempo ataca as empresas donas das plataformas sociais, que postula uma corrente denominada “novo realismo”, que se descola do naturalismo e do construtivismo, e que tem uma visão crítica do fundamentalismo neurocientífico e das ideias mais ingênuas ou cínicas sobre inteligência artificial. Esse é Markus Gabriel, professor da Universidade de Bonn e autor de livros como Não sou meu cérebro, Por que o mundo não existe e O sentido da existência. Seu “novo realismo” sustenta que o mundo não é nem a totalidade das coisas, nem a totalidade dos fatos, mas, sim, aquela esfera no qual acontecem todas as esferas que existem”.
Em recente visita a Buenos Aires, convidado pela Embaixada da Alemanha, Fundação Medifé e Universidade Nacional de San Martín (UNSAM), participou da Noite da Filosofia, com conferências sobre neurociências e inteligência artificial. E em meio a todas essas atividades, conversou, em um hotel central, com quem, além dos tópicos anteriores, abordou, em um castelhano fluente, as relações entre as diferentes disciplinas científicas, a opacidade das ideias de certos pensadores renomados e até o boom da divulgação da filosofia.
A entrevista é de Alejandro Cánepa, publicada por Clarín-Revista Ñ, 05-07-2019. A tradução é do Cepat.
Um de seus eixos de interesse é a crítica à ideia de inteligência artificial. Em que consiste seu ponto de vista?
Na realidade, a chamada inteligência artificial não existe, é uma ilusão. De fato, por trás desse discurso acerca da inteligência artificial há toda uma indústria de propaganda, de origem californiana. É a religião do Vale do Silício. É vendida como um grande avanço da humanidade, mas as máquinas que produzimos não pensam, não sentem e nem sabem nada.
Por que essa ideia tem tanta difusão?
Há uma fantasia muito humana de estar em contato com uma inteligência transcendente, um Deus. Essa fantasia é um substituto de Deus. Empresas como o Facebook são projetos profundamente religiosos no sentido de que ocupam o lugar de Deus e esboçam uma metafísica.
Os defensores mais entusiastas da inteligência artificial, quando falam das pessoas cujos trabalhos serão destruídos por ela, alegam que ao mesmo tempo serão criadas novas fontes de trabalho. A grande dúvida é se isso compensará o que efetivamente se destrói e se é tão simples deixar de ter um trabalho, em certa função, e obter outro em uma área totalmente diferente do que se sabe...
Não sabemos o que irá acontecer, não temos ideia para onde vamos com esses novos processos de autonomização, ninguém sabe. É outro exemplo de pura ideologia afirmar que tudo será substituído. Quem sabe? É pura especulação.
Você qualificou as empresas donas de redes sociais como “criminosas”...
Exato, o papel delas é destruir o rule of law (império da lei) dos estados. Foram os russos que utilizaram o Facebook para interferir nas eleições nos Estados Unidos ou é a lógica da plataforma que facilita essas interferências em processos democráticos? Estamos falando de empresas monopolistas. A Rússia age assim, em todo caso, mas é uma política global, são as plataformas que permitem as ciberguerras, que as criam e as desejam. Fora do contexto digital, estes monopólios não seriam legais, mas aí não há lei.
De todos os aspectos que pode considerar como negativos do mundo digital, qual lhe parece o pior?
Que temos a cada dia menos espaços neutros na rede. Há uma nova forma de totalitarismo, onde não há uma esfera privada, esse é o lado mais perigoso. Nossos pensamentos têm a forma de consequências políticas, o que pensamos já publicamos on-line, já não há distância entre a esfera pública moderna e a esfera privada. E, agora, a esfera pública é controlada por algoritmos.
Você destacou como os mitos benéficos sobre as redes tiveram uma eclosão durante as “primaveras árabes”, em 2011. Hoje, exceto na Tunísia, em quase todos esses países há guerra civis, as mesmas ditaduras que já estavam ou outras novas, iguais ou piores.
É um exemplo muito bom, que pode acontecer fora desse contexto. Também recordemos as eleições de Trump e de Bolsonaro. As plataformas controlam a forma de pensar, não o conteúdo. Controlam a maneira como pensamos, por isso temos a ilusão de ser livres ao expressar os sentimentos nas redes. Mas, se a forma de pensar já está vendida para alguém, por meio dos algoritmos, não temos verdadeira liberdade de expressão. O Facebook não tem conteúdos. Se não é pelo que nós produzimos, o Facebook é o puro vazio. Aparece como pura plataforma, mas é uma estratégia totalitária muito mais forte do que controlar o conteúdo. A manipulação é mais inteligente.
Vão acusá-lo de apocalíptico...
Sim, claro (risos). Mas, há espaços de resistência, a revolução digital não se deu, depende de nós. Para o digital falta uma revolução como a francesa, que trouxe a democracia moderna. Precisamos de uma revolução dessa nova esfera pública.
Em que sentido defende a televisão?
A televisão ainda permite a capacidade de emancipação porque é arte, porque na arte podemos ver como nós somos, porque o ser humano é um ser que fundamentalmente imagina um futuro. Somos seres ficcionais. Todos temos uma visão do que se é e do que se quer ser, e a arte é uma expressão dessas possibilidades, a televisão é a forma de fazer uma filosofia simplificada, massiva.
Retomando esse ponto, você tem sido crítico dos sistemas filosóficos que utilizam uma linguagem opaca para explicar seus conceitos. Seria possível pensar em Martín Heidegger, como um exemplo do que destaca, ou em Jacques Derrida...
Sim, no caso de Heidegger e outros filósofos, é uma filosofia política feita contra as pessoas, anti-humanista. Heidegger é propaganda nazista, nada mais que isso, está em seus Cadernos Negros. Depois da Segunda Guerra Mundial, para os filósofos alemães foi um choque que intelectuais franceses de esquerda retomassem Heidegger. Por que retomar Heidegger? É absurdo. Parte da filosofia francesa do Século XX esteve fascinada por formas totalitárias, é uma maneira de pensar muito perigosa.
Na Argentina, em certos ambientes vinculados às ciências sociais, os dois autores gozam de uma boa reputação...
Sim, são quase deuses. A filosofia é a ciência universal dos conceitos que todos temos em comum. Hegel disse: “O que é meu em minha filosofia é falso”. Não há uma filosofia privada. As filosofias de Heidegger e (Jacques) Derrida são expressões de pensamentos completamente privados, incomunicáveis. Em Michel Foucault, existe o mito de que o universalismo é a origem do imperialismo, mas isso é absurdo. O universalismo diz que não se deve colonizar a outros seres humanos, é absurdo pensar isso, como é absurdo pensar que o imperativo categórico de Immanuel Kant é uma maneira de colonizar.
Essas ideias se conectam com as do relativismo cultural, também em voga...
É o grande problema de nosso tempo, isto de que há uma diferença profunda em cada humano que se explica pelas culturas. Isto se origina em certa tradição filosófica do século XVIII, representada por Johann Gottfried Herder, entre outros, que fala das diferenças entre os seres. Aí, sim, está essa justificativa do colonialismo. Esse relativismo serve aos Putin e aos Xi Jinping, isto de que “aqui tudo é diferente”. Não, isso é um mito, aqui há pessoas. Como seres humanos, temos muitíssimo em comum.
Considera que faz sentido falar em “valores universais”? Quais seriam?
Há regras universais para a existência de qualquer sociedade, caso contrário, não seriam sociedades. Por exemplo, a violência é uma exceção. Uma sociedade que não é nada mais do que a violência, não pode existir, por isso todos temos o valor da paz, exceto os que se beneficiam com a guerra.
Em “Não sou meu cérebro”, você critica a identificação da pessoa com esse órgão, e aponta contra a atitude das neurociências, que afirma essa identidade. Reconhece algum valor nos avanços científicos mais recentes sobre os processos neurológicos?
Só ataco essa interpretação das neurociências. A neurologia não é uma ideologia, é uma ciência que estuda a fisiologia de certos tipos de células, isso não tem implicações éticas, é a observação de processos fisiológicos, nada mais, nem nada menos. Contudo, há interpretações que são incoerentes. O maior erro é a identificação da pessoa com o cérebro, ou a consciência como um processo neuronal. A consciência em um ato de percepção, e a percepção não pode ser algo só de meu cérebro, a percepção não pode se reduzir a isso.
Sua postura filosófica parece se distanciar do naturalismo e também do construtivismo...
O construtivismo afirma que a realidade é uma ilusão, mas se isso fosse verdadeiro, como seria possível fazer essa afirmação? Não é uma tese. Se a tese é que não podemos saber, nunca podemos saber o que é verdadeiro. Isto é filosoficamente incoerente.
Existe certo boom da divulgação filosófica, na Argentina e em outros países, com filósofos que ocupam espaços nos meios de comunicação. Considera esse fenômeno positivo?
Pode ser, tudo depende da reflexão e da ética dos meios de comunicação em que se expressem. Em geral, vejo isso como um fenômeno positivo, que permite à filosofia desempenhar um papel na esfera pública, apresentando resultados científicos e acadêmicos. O problema é quando existe uma maioria de filósofos nos meios de comunicação que são charlatões sem teoria, ou que se dedicam a falar do amor, que sempre é um grande tema. A filosofia de Heidegger é obscura, com problemas, mas é uma teoria, não deixa de ser, ao contrário, nestes casos não. Na Alemanha, também existem filósofos midiáticos, que em geral possuem um discurso vazio.
Por um lado, subsiste em diferentes setores um desprezo às ciências sociais, consideradas “inúteis”, mas, ao mesmo tempo, crescem correntes que rejeitam a evidência científica, como aquelas que se opõem às vacinas ou negam a responsabilidade humana na mudança climática. Em termos epistemológicos, que postura assume a respeito deste duplo desprezo?
As ciências “exatas” (Markus faz o gesto de entre aspas quando diz essa palavra) não têm como se defender sem as humanidades. Por que estudar as células ou o cérebro? A justificativa do papel das ciências “exatas” deriva das humanidades, então, as superstições anticientíficas são uma consequência do naturalismo. Aqueles que atacam as humanidades por meio das ciências “exatas”, nesse ataque, destroem a si mesmos. São as humanidades que são capazes de justificar a ordem do saber. A filosofia não substitui a física, mas sem filosofia a física não pode continuar.
Também há desconfiança e preconceitos entre representantes dos dois campos científicos. Qual acredita que deve ser a relação entre esses dois ramos do saber?
O modelo da relação entre ciências deve ser o da cooperação. A universidade é a cooperação de todas as ciências para conhecer melhor o ser humano. Em geral, os fenômenos na vida humana são híbridos, nem puramente espirituais, nem puramente físicos... o mais frequente é o híbrido.
Para qual tema considera que a filosofia contemporânea esteja dando pouco espaço?
O ser humano. Meu novo tema é o ser humano, que continua sendo o centro do saber. A filosofia precisa explicar o ser humano, em cooperação com todas as outras ciências. Contudo, ainda não conseguimos plasmar esse modelo de cooperação entre ciências nas universidades. É o momento de unificar a filosofia com as outras ciências. Outro tema que os filósofos falam pouco é das universidades, apesar de ser o sistema no qual se movem. Ninguém tem uma teoria sobre a universidade.
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"A inteligência artificial é a religião do Vale do Silício". Entrevista com Markus Gabriel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU