13 Setembro 2019
Ao final do século XX, pelo Grupo ETC advertimos sobre a iminência de um tsunami de potentes tecnologias convergentes, que afetaria muitos aspectos da vida econômica, social, cultural e política, com grandes impactos para o meio-ambiente e a saúde. Tudo no contexto da maior concentração corporativa da era industrial, com oligopólios extremamente poderosos, que controlam imensos setores de produção e tecnologia. A realidade superou nossas mais atrevidas fantasias. As organizações e os movimentos lidam agora com essa complexa realidade. O desafio é construir coletivamente plataformas de avaliação social da tecnologia, para avançar na compreensão crítica do todo tecnológico e fortalecer a capacidade de ação coletiva.
Artigo introdutório da Revista América Latina em Movimiento - ALAI, Nº 543 -Tecnologías: manipulando la vida, el clima y el planeta, de Silvia Ribeiro e Jim Thomas, diretores do Grupo ETC (Erosão Tecnologia e Concentração), publicado por ALAI, 11-09-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
No ano de 2000, no Grupo ETC batizamos de BANG a convergência de tecnologias (Bits, Átomas, Neurociências, Genes), referindo-nos a tecnologias digitais, nanotecnologia, tecnociências cognitivas e biotecnologia. Uma convergência que constituiu uma espécie de Big Bang tecnológico, que parafraseamos como um “Pequeno Bang”, porque as tecnologias moleculares e a nano escala – aplicadas a seres vivos, materiais, comunicação – são a plataforma de desenvolvimento das outras.
Já ninguém está fora dessa explosão tecnológica. Porém, para cada um de nós, separadamente, é difícil perceber a totalidade e dimensão de seus impactos que se complementam. Os governos, majoritariamente, controlados por interesses corporativos e assumindo o mito de que os avanços tecnológicos sempre são benéficos e de que as crises ambientais e de saúde podem ser resolvidas com mais tecnologia, deixaram que todos prossigam, usando, vendendo, disseminando no ambiente e nos nossos corpos, sem sequer qualquer avaliação dos seus possíveis impactos negativos, e majoritariamente, sem regulações, muito menos com a necessária aplicação do princípio da precaução.
Um exemplo claro disso é a indústria nanotecnológica, que com duas décadas e milhares de linhas de produtos nos mercados, muitos presentes na nossa vida cotidiana (alimentos, cosméticos, produtos de higiene, farmacêuticos, aparelhos eletrônicos, materiais de construção), não está regulada em nenhuma parte do mundo, apesar de que aumentam os estudos científicos que mostram toxicidade em ambiente e saúde de muitos desses componentes, especialmente para os trabalhadores expostos à produção e uso de materiais com nanopartículas, porém também em muitos pontos das cadeias de consumos, desperdícios e exposição ambiental.
Outro exemplo são as tecnologias digitais, especialmente as companhias de Big Data e as grandes plataformas digitais de redes sociais e de compras, que se apropriaram, sem sequer pedir permissão, de trilhões de dados pessoais, da natureza e seus organismos, de recursos do ar, mar e terra, de nossos bens comuns materiais e imateriais, e lucram com isso de uma forma nunca vista antes no capitalismo. Seus donos se tornaram os indivíduos mais ricos do planeta – com nossos dados e nosso trabalho ao usar essas plataformas. Tem um inusitado poder de influência econômica e política – inclusive ao habilitar fraudes eleitorais “invisíveis”, como nos casos de Trump, Bolsonaro ou Macri – e nem sequer pagam impostos.
O sistema de vigilância sobre cada um de nós chegou a níveis inconcebíveis devido à combinação de dados nas plataformas digitais privadas e públicas (educativas, trabalhistas, de saúde, bancárias, programas de fidelidade), a onipresença de câmaras “inteligentes” que avançam na conexão direta com bases de dados de governos, polícia, arquivos médicos, trabalhistas e outros. Seguramente deixando registro de tudo isso, as empresas que desenham e provem os artefatos e plataforma.
As corporações donas do planeta, através do Fórum Econômico Mundial (Foro de Davos), começaram em 2016 a chamar a essa convergência tecnológica de “quarta revolução industrial”. Se referem à convergência da robótica, nanorrobótica, biotecnologia, tecnologias de informação e comunicação, computação quântica, inteligência artificial, cadeias de bloco, impressão 3D, veículos autônomos e outras. A primeira revolução industrial estaria marcada pela máquina de vapor e mecanização, a segunda pela produção em linhas de montagem industrial e a eletricidade, a terceira pela computação. A quarta se baseia na convergência de sistemas ciber-físico-biológicos.
Segundo Klaus Schwab, fundador desse fórum, “há três razões pelas quais as transformações atuais não representam uma prolongação da terceira revolução industrial, mas sim a chegada de uma distinta: a velocidade, o alcance e o impacto nos sistemas. A velocidade dos avanços atuais não tem precedentes na história... E está interferindo em quase todas as indústrias de todos os países”. Aceita que isso implica impactos negativos, como que desaparecerão 5 milhões de empregos a nível global.
Em seu Relatório de Riscos Globais, afirmam que “O estabelecimento de novas capacidades fundamentais que está ocorrendo, por exemplo, com a biologia sintética e a inteligência artificial, está particularmente associado com os riscos que não se podem avaliar completamente no laboratório. Uma vez que o gênio sai da garrafa, existe a possibilidade de que se façam aplicações indesejadas ou se produzam efeitos que não podiam se antever ao momento de sua invenção. Alguns desses riscos podem ser existenciais, isto é, pôr em perigo o futuro da vida humana”.
É parte da estratégia do Foro de Davos nomear os riscos, porque as empresas necessitam conhecê-los para saber como geri-los, porém também porque dessa maneira os normalizam e selecionam quais riscos devem se dar ao conhecimento público e quais não. Em qualquer caso, se referem aos desenvolvimentos tecnológicos como inevitáveis, parte de um futuro que necessariamente virá, não como opções que as sociedades possam escolher se querem ou não. A mensagem de fundo é que os governos e setores sociais afetados devem ver como enfrentam esses “danos colaterais” de um futuro inevitável. Ademais, necessitam prevê-los para negociar com suas seguradoras – para quem os riscos são seu negócio. Em qualquer caso, não os nomeiam para abrir a possibilidade de mudar o que vem, mas sim para integrá-lo no jogo de xadrez de seus mercados e lucros.
Para tentar organizar a análise das tecnologias que estão em jogo e os impactos que elas têm ou poderiam ter - do Grupo ETC - propomos quatro grupos de tendências tecnológicas, que podem ser úteis para analisar suas características. Elas não são tendências separadas, na verdade, elas se sobrepõem e, em alguns casos, algumas não poderiam existir sem as outras. Seguem alguns exemplos de cada tendência, que chamamos de D, A, M, P.
(D) Tecnologias digitais e baseadas em dados. Exemplos: Big Data e aplicativos para mineração de dados, inteligência artificial, biologia sintética e fábricas moleculares, blockchain (blockchain) e ferramentas digitais de sistemas financeiros (fintech), comunicação molecular, modelagem digital do planeta e seus sistemas, armazenamento digital em DNA, computação quântica, sistemas de rede 5G e sem fio, internet das coisas e dos corpos.
(A) Automação, robótica e detecção. Exemplo: aplicações para a chamada “agricultura de precisão”, uso de drones, robôs, sensores e tecnologias de sensoriamento remoto como LIDAR, Big Data, comunicação molecular, tecnologia de satélite (como CubeSats e SmallSats), poeira inteligente, internet de vacas e outros Internet das coisas.
(M) Mundo molecular. Exemplos: nanomateriais, nanorrecuperações, nanopartículas, tecnologias de modificação sensorial e de paladar, biologia sintética, edição genômica, comunicação molecular, engenharia metabólica, engenharia de cultura de células (por exemplo, proteínas da carne e dos animais sem animais), biossíntese, engenharia epigenética , fatores genéticos, aerossóis RNAi, engenharia de microbiomas, engenharia de fotossíntese, nutrigenética / nutrigenômica.
(P) Manipulação do planeta, engenharia de ecossistemas. Exemplos: geoengenharia climática, engenharia de ciclo de nutrientes / nitrogênio, engenharia de ciclo hidrológico / hidrológico, engenharia de microbiomas, engenharia de fotossíntese, geoengenharia de modificação de radiação solar, tecnologias para modificar carbono do solo, biochar, biocombustíveis, metagenômica ambiental e fatores genéticos (os últimos são engenharia de populações e ecossistemas).
Três fatores cruzam essas tendências tecnológicas: convergência, gerenciamento massivo de dados e escalas extremas: aplicações de engenharia da nanometria para o planeta como um todo.
Convergência:
A convergência de áreas tecnológicas que eram vistas como separadas não é nova, mas agora é muito evidente. Várias das novas plataformas mais poderosas podem ser consideradas ao mesmo tempo que nanotecnologia, tecnologia da informação, biotecnologia e tecnologia cognitiva. Por exemplo, todas essas áreas convergem em biologia sintética.
Big Data:
Em muitos casos, a convergência é ativada pela capacidade de extrair, combinar e entender uma enorme quantidade de dados digitalizados, armazenados como Big Data. A convergência fez com que os dados digitais se fundissem com a matéria: átomos e moléculas de DNA podem ser usados para armazenar dados e, ao mesmo tempo, podem ser registrados e reordenados em modelos digitais, que através da computação podem se traduzir em estruturas no mundo físico e biológico. Como genes, processos de conhecimento, ecossistemas e matéria parecem ser reduzidos a dados digitais, a capacidade de armazenar, filtrar, calcular e manipular grandes conjuntos de dados (dados genômicos, dados de biodiversidade, dados climáticos, dados climáticos solo...) possibilita novas formas de manipular sistemas físicos e materiais.
Escalas extremas:
Uma característica das novas tecnologias é a vertiginosa gama de escalas em que os tecnólogos tentam intervir simultaneamente. Imagens de nanotecnologia e nanoescala abriram a escala molecular na tentativa de ver, manipular e aplicar engenharia a toda a natureza viva ou inerte, do menor ao maior, enquanto que os sistemas de Big Data e as capacidades de detecção global incentivaram os tecnólogos a imaginar intervenções artificiais em ecossistemas inteiros – como tentam com fatores genéticos – ou mesmo com o planeta como um todo, conforme a geoengenharia climática.
Cada uma dessas tecnologias e sua convergência tem uma série de importantes impactos na saúde, meio ambiente, biodiversidade, clima, natureza, culturas e povos, economias locais e nacionais, soberania, exacerbação da desigualdade e conflitos geopolíticos, entre outros aspectos.
No caso das tecnologias digitais, que são um elemento capacitador de muitas outras tecnologias, tendemos a pensar que elas não têm impactos "materiais". Pelo contrário, os impactos físicos, ambientais, de extração de recursos e de demanda de energia são enormes.
A imensa quantidade de dispositivos eletrônicos (existem mais telefones celulares do que pessoas no planeta), as torres, as infraestruturas e as linhas de comunicação, as instalações de armazenamento de dados e seu processamento, juntos constituem “a maior construção acidental de infraestrutura que a humanidade jamais fez”, como Benjamin H. Bratton o chamou. Uma rede gigantesca e global, na qual nunca foram tomadas decisões em conjunto para construí-la, e muito menos uma análise prévia de suas implicações e impactos. Apesar disso, há uma forte pressão por sua expansão, especialmente pelas empresas, para aumentar globalmente o mercado da "internet das coisas" (e dos corpos e muito mais).
Isso se traduz em uma enorme demanda por materiais, que inclui a mineração de muitos metais, incluindo raros e escassos, produção em massa de produtos químicos sintéticos (e resíduos tóxicos), uma enorme quantidade de energia para extração, fabricação, distribuição, armazenamento e uso, além de uma enorme rede de radiação eletromagnética, que no caso da instalação de redes 5G multiplica os impactos na saúde e no meio ambiente exponencialmente, um verdadeiro "risco existencial". Tudo isso implica desde guerras a conflitos socioambientais com comunidades e povos que sofrem diretamente os impactos da extração, poluição e desapropriação de seus recursos, espaços e territórios.
Como este exemplo, poderíamos expandir as implicações e os impactos de cada uma das tecnologias e suas interações, mas separadamente é uma tarefa titânica. Portanto, a alguns anos trabalhamos, junto com outras organizações, movimentos sociais e associações de cientistas críticos (na América Latina, com a Rede TECLA), na construção de redes de avaliação social e ação sobre novas tecnologias para buscar informar e compreender o horizonte tecnológico, suas conexões, impactos e implicações sob diversas perspectivas (meio ambiente, saúde, ciência, gênero, trabalho, consumo) e fortalecer-se para agir de acordo com elas.
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Diante do tsunami tecnológico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU