A catástrofe climática é, também, resultado de uma sociedade eticamente passiva e egoísta. Entrevista especial com Clóvis Borges

Precarização e afrouxamento da legislação de proteção ambiental são as consequências políticas mais imediatas de um paradigma social que desconsidera completamente a proteção ambiental

Enchente em Porto Alegre chegou aos prédios do Centro Administrativo Fernando Ferrari, onde funcionam órgãos da administração pública estadual | Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini | Arte: Marcelo Zanotti / IHU

Por: IHU e Baleia Comunicação | 13 Mai 2024

Depois de um começo de século promissor com redução das áreas desmatadas em biomas como Amazônia e Mata Atlântica, o Brasil há praticamente duas décadas vem acelerando as ações de grande impacto ambiental e negligenciando relatórios que apontam as transformações climáticas. Somam-se a isso um grande déficit de cumprimento do Código Florestal e as inúmeras iniciativas de parlamentares de todos os níveis em precarizar ainda mais legislações que buscam proteger áreas naturais.

“Sem uma política séria que envolva toda a sociedade, para que ao longo dos próximos anos sejam realizadas ações concretas e em grande escala para reverter o déficit abismal de áreas naturais protegidas como é o caso do Rio Grande do Sul, estaremos enxugando gelo e colecionando prejuízos inimagináveis, além da absurda e inaceitável perda de vidas, em especial para as frações mais vulneráveis da população”, avalia o professor e pesquisador Clóvis Borges, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas UnisinosIHU.

“Assumir, de forma honesta e com a necessária condição de humildade, o reconhecimento do ‘custo da natureza’ de cada atividade econômica ainda representa um enorme desafio para uma sociedade que até aqui viveu e prosperou vilipendiando o patrimônio natural de forma incompatível com uma condição de manutenção da qualidade de vida a longo prazo”, pondera Borges. “A falta de conhecimento e percepção de risco pode realmente ajudar a explicar, pelo menos em parte, o porque não estamos nem sequer buscando selecionar agentes públicos minimamente comprometidos com a agenda ambiental. Ao contrário, reiteradamente elegemos aqueles que estão lutando com todas as forças numa direção contrária”, complementa.

Um agravante diante desse quadro é o contínuo e histórico favorecimento de interesses setoriais, quando não pessoais, em detrimento do interesse coletivo. “Somos uma sociedade que se mostra bastante egoísta que busca prioritariamente garantir vantagens para si. Assimilamos eticamente com bastante passividade o fato de que ganhos econômicos, mesmo que causem mal ao restante da sociedade, são admissíveis e justificáveis”, critica o entrevistado.

Clóvis Borges (Foto: Divulgação)

Clóvis Borges é formado em Medicina Veterinária e possui mestrado em Zoologia. Dirige a Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental – SPVS com o desafio de garantir seu fortalecimento institucional e promover ações consistentes e articuladas com atores públicos e privados, no campo da conservação da natureza. É fellow da Ashoka, afiliado à Fundação Avina, membro do Conselho Consultivo do FUNBIO e vice-presidente do Conselho Deliberativo do Instituto LIFE.

Confira a entrevista.

IHU – Por que o Rio Grande do Sul perdeu a resiliência para enfrentar eventos climáticos mais severos, como os que ocorreram nos últimos meses?

Clóvis Borges – Considerando que eventos extremos como o que ocorre neste momento no Rio Grande do Sul são parte de um processo incontrolável e que se abaterá em praticamente todo o planeta, de formas variadas, o que deve ser ressaltado é que a mitigação dos efeitos destas catástrofes depende de uma série de elementos que devem ou deveriam ser considerados com mais pragmatismo e seriedade pela sociedade como um todo. Além das medidas de adaptação, que não vêm sendo implementadas a contento, não apenas no Rio Grande do Sul, um dos fatores críticos que incrementam substancialmente os impactos decorrentes de eventos extremos é a existência de suficiente infraestrutura verde, na forma de áreas naturais bem conservadas nos territórios. É notório o déficit de cumprimento do código florestal em todo o Brasil e também no Rio Grande do Sul.

A falta de respeito ao cumprimento mínimo da legislação vigente, mesmo com o grave enfraquecimento da legislação proporcionada pelo Congresso Nacional em 2012, é uma das causas do incremento substancial da gravidade que assola o sul do Brasil neste momento. Seja com a ocupação de áreas irregulares em Áreas de Preservação Permanente - APPs seja pela simples ausência de vegetação natural nestas áreas frágeis e que cumprem um papel fundamental contra enxurradas e contra períodos de seca mais prolongados. Ao mesmo tempo, há um descumprimento crônico em relação à existência da Reserva Legal (RL) num número incontável de propriedades em todo o país.

IHU – O quanto a devastação de áreas naturais no Estado tem concorrido para agravar as questões climáticas?

Clóvis Borges – É justamente a ausência de um arcabouço suficiente de áreas naturais bem conservadas que geram o incremento dos impactos sociais e econômicos dos eventos extremos. Não se tratam de medidas de curto prazo e também não são alternativas para evitar os eventos extremos, que continuarão ocorrendo numa graduação cada vez mais frequente e intensa. Mas sem uma política séria que envolva toda a sociedade, para que ao longo dos próximos anos sejam realizadas ações concretas e em grande escala para reverter o déficit abismal de áreas naturais protegidas como é o caso do Rio Grande do Sul, estaremos enxugando gelo e colecionando prejuízos inimagináveis, além da absurda e inaceitável perda de vidas, em especial para as frações mais vulneráveis da população.

IHU – Qual a correlação entre o descumprimento e afrouxamento da legislação de proteção ambiental com as consequências da atual enchente no RS?

Clóvis Borges – Há uma relação direta entre o afrouxamento crônico e histórico da legislação ambiental e a severidade dos impactos que estamos presenciando. O descumprimento da legislação, seja em áreas rurais seja em áreas urbanas, tem um forte componente político, onde o interesse imediato e de solução aparentemente mais fácil, privilegia a ocupação indevida e criminosa de áreas que nunca poderiam estar sendo destruídas para atender a ações de correntes de urbanização ou uso agrícola. É evidente que estamos vivendo numa sociedade em que os grupos setoriais dominantes criaram uma condição de falar mais alto do que o que se entende por interesse público, controlando governos e impondo seus interesses próprios, o que inclui a adequação da legislação para enfraquecer os princípios básicos e criticamente necessários para um equilíbrio mínimo entre o desenvolvimento socioeconômico e o meio ambiente. Almejam vantagens para si, abrindo mão do próprio cumprimento da lei, em detrimento do restante da sociedade e, ao mesmo tempo, gerando cenários em que estes mesmos grupos acabam sendo atingidos, direta ou indiretamente, mais cedo ou mais tarde.

IHU – Em abril, menos de um mês antes da maior tragédia do RS, o senhor escreveu um artigo no site ((o)) eco em que comenta sobre a necessidade de aliar aos negócios a preservação ambiental. Em que sentido essa estratégia é incontornável?

Clóvis Borges – Aprendemos, de forma arrogante e inconsequente, a desconsiderar o valor das áreas naturais e os serviços prestados pelas mesmas. A cultura do desenvolvimento a qualquer custo e da falsa percepção de que a natureza é um bem interminável nos levou a um cenário em que a nossa própria existência está ameaçada. Trata-se de uma lógica muito coerente que ao mesmo tempo que muitas atividades econômicas sejam consideradas danosas demais para serem mantidas na forma com a qual exploram a natureza e causam externalidade negativas, exista uma métrica que calcule o impacto não mitigável dos negócios em geral – não importando qual seja e qual seu porte, para que estas atividades econômicas reconheçam e realizem esforços voluntários e adicionais na forma de ações de proteção do patrimônio natural. Ferramentas para que isso seja efetivado já existem. Mas assumir, de forma honesta e com a necessária condição de humildade, o reconhecimento do “custo da natureza” de cada atividade econômica ainda representa um enorme desafio para uma sociedade que até aqui viveu e prosperou vilipendiando o patrimônio natural de forma incompatível com uma condição de manutenção da qualidade de vida a longo prazo.

Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia, algumas áreas do Rio Grande do Sul cuja média de precipitação para maio fica entre 150 e 180 mm receberam mais de 400 mm de chuva somente nos primeiros cinco dias deste mês (Infográfico: Rodolfo Almeida / Ambiental Media. Fonte: Landsat2)

IHU – Agora a enxurrada é a preocupação, mas em 2023 o RS passou por uma grande estiagem, impactando, claro, nas atividades agrossilvopastoris. Até que ponto essa crescente de situações de quebras de produção decorre do desequilíbrio climático? O que explica?

Clóvis Borges – Assim como a catástrofe que se apresenta no Sul do Brasil, decorrente de um excesso concentrado de pluviosidade fora das curvas normais, outros exemplos de eventos extremos se avolumam ao longo dos últimos anos, não apenas no Brasil. Negar o que está explicitamente demonstrado é um dos problemas que continuam gerando impasses e imobilidade. A estiagem prolongada, também fora das médias normais, já é um fator de risco de enorme impacto para o agronegócio, mas também para os centros urbanos e para comunidades isoladas na Amazônia, dentre tantas outras situações em que as condições de reação da sociedade se mostram totalmente insuficientes para um enfrentamento adequado. É necessário observar que as mudanças climáticas já estão fora de controle e não dependem apenas de nossas ações locais. Mas a conservação do patrimônio natural, com o cumprimento da lei e a valorização destes espaços como áreas de produção de natureza, depende de uma mudança de chave que a sociedade está desafiada a implementar.

IHU – Existem dados que atestem, no caso gaúcho, o déficit de áreas que deveriam estar protegidas pelo Código Florestal? Quais sanções as pessoas que descumpriram a legislação têm sofrido?

Clóvis Borges – Atualmente há enorme facilidade em identificar esses inúmeros casos de descumprimento da legislação, em especial no que se refere ao Código Florestal. Um dado colocado nas mídias recentemente reporta um déficit de aproximadamente 17 milhões de hectares de Reserva Legal no país, sendo que uma fração representativa está localizada nos estados do sul do país. Mas não está na disponibilidade destas informações o problema. Ainda temos uma pressão inversa aos avanços para reverter essa lacuna legal. Ao contrário, os políticos estão avançando de forma ainda mais agressiva no enfraquecimento da legislação ambiental, de maneira constante a agressiva, sem haver um necessário crivo de uma sociedade que segue votando em atores cooptados por grupos setoriais que não desistem de apostar numa agenda de terra arrasada.

IHU – Por que, mesmo diante de toda devastação material, mas sobretudo de vidas humanas, animais e vegetais, continuamos indiferentes à guinada urgente na proteção ambiental?

Clóvis Borges – Um dos argumentos mais utilizados para justificar nossa indolência histórica, frente a temas ambientais em geral, tem sido a ignorância. A falta de conhecimento e percepção de risco pode realmente ajudar a explicar, pelo menos em parte, o porque não estamos nem sequer buscando selecionar agentes públicos minimamente comprometidos com a agenda ambiental. Ao contrário, reiteradamente elegemos aqueles que estão lutando com todas as forças numa direção contrária. No entanto, parece evidente que a “falta de informações” já representa um fator de menor expressividade, uma vez que é notório o fato de que mesmo com acesso amplo à informação e dados que comprovam cientificamente que estamos seguindo diretamente a um precipício sem fundo, não tem sido suficiente para modificar o nosso comportamento. Um fator adicional está também ligado a uma dose demasiada de interesses setoriais e pessoas em detrimento do interesse público. Somos uma sociedade que se mostra bastante egoísta que busca prioritariamente garantir vantagens para si. Assimilamos eticamente com bastante passividade o fato de que ganhos econômicos, mesmo que causem mal ao restante da sociedade, são admissíveis e justificáveis.

IHU – Em que sentido um território com mais áreas naturais protegidas pode garantir maior segurança às pessoas e menos perdas?

Clóvis Borges – Mesmo considerando que territórios que tenham um arcabouço suficiente e bem gerido de áreas naturais possam sofrer as consequências incontroláveis de eventos extremos, as consequências são certamente menores do que espaços do território sem um arcabouço protetivo formado por áreas naturais estrategicamente distribuídas. Não existem mais soluções suficientemente seguras para evitar catástrofes como a que ocorre hoje no Rio Grande do Sul. Mas, sem nenhuma dúvida, podemos e sabemos como mitigá-las a partir de uma condição adequada de manutenção de áreas naturais.

IHU – De que ordem é o desafio de sensibilizar as pessoas em favor de uma verdadeira mudança política que torne prioridade a preservação ambiental?

Clóvis Borges – Uma aposta com maior potencial de sucesso talvez seja a de termos um entendimento de que mudanças de comportamento que permitam um maior reconhecimento do valor intrínseco da natureza e sua função como provedora de serviços ecossistêmicos dos quais não podemos prescindir seja posicionada como um desafio de longo prazo, incompatível com mudanças mais efetivas, se considerarmos o perfil da sociedade contemporânea. Ações de mais curto prazo podem avançar com maior velocidade se pudermos realizar articulações com os diversos atores da sociedade que busquem um atrelamento das atividades econômicas com o reconhecimento tácito do valor da natureza como parte dos negócios. Trata-se ainda de um desafio de grandes proporções, pois é confortável não mudar o posicionamento atual. Mas o que ocorre hoje no Rio Grande do Sul é um argumento importante para que toda a sociedade entenda que amanhã, poderá estar sendo atingida por situações similares e ainda mais graves.

IHU – Uma alternativa é garantir àqueles que mantêm e protegem áreas naturais alguma remuneração pelos serviços ecossistêmicos que essas áreas produzem. Mas de onde viriam recursos para este trabalho?

Clóvis Borges – É evidente que esse reconhecimento já deveria fazer parte de nossas práticas há muito tempo. A contabilização de ganhos econômicos para quem protege áreas naturais e garante a provisão de serviços ecossistêmicos para toda a sociedade é uma ferramenta potente para mudanças em menor prazo. É sumamente necessário inserir no mercado esse tipo de ativo econômico, que até hoje vem sendo reconhecido como algo gratuito e que, inclusive, é vinculado na mídia, de forma perversa, como a causa de impedimentos para o “desenvolvimento”. Essa remuneração, como já exposto acima, deve vir justamente do conjunto das atividades econômicas que não podem prescindir dos serviços da natureza para poderem existir. Ao mesmo tempo, o comportamento de pouca efetividade dos governos em geral para impor o cumprimento da legislação e não estarem submissos à pressão de grupos setoriais que insistem em seguir pelo caminho da degradação da natureza para aumentar seus resultados, é um câncer que precisa ser exposto e extirpado.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Clóvis Borges – Não existem soluções simples ou isoladas para equacionar o desafio que estamos enfrentando a partir do cenário atual. Globalmente ultrapassamos em muito os limites da natureza e o Brasil não é uma exceção à regra. Embora exista um potencial valioso para sermos uma referência em busca arranjos que estabeleçam um maior equilíbrio de nossas expectativas de ordem social e econômica com a manutenção adequada e suficiente do patrimônio natural, colocar essa expectativa em prática ainda conta com uma resistência truculenta e de grandes proporções de parte influente da sociedade. O que estamos presenciando no dia a dia são inúmeras iniciativas demonstrativas e pontuais de excepcional potencial para se tornarem políticas públicas inovadoras que permitam a reversão, pelo menos parcial, de nossa condição de risco até há pouco inimaginável por grande parte da sociedade – a despeito das sinalizações que são realizadas há décadas. A quebra de resistências precisa ocorrer rapidamente. Para isso, as forças antagônicas que ainda não assumiram o fato de que estão num caminho que está acarretando enormes retrocessos precisam ser mais expostos e cobrados de sua intransigência e falta de princípios fundamentais que buscam o bem comum e a prosperidade de todos.

Leia mais