“O indígena nunca foi protagonista, sempre foi visto como um elemento útil à oferta de mão de obra e à defesa das fronteiras. Efetivamente, esses órgãos nunca visaram trazer o indígena como protagonista dos processos”, diz o procurador do Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul
“A relevância de uma determinada ação governamental é dada pelo orçamento que ela possui”. Foi com estas palavras que Marco Delfino de Almeida, do Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul, comentou a intenção do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, de criar um ministério para os povos indígenas.
A promessa feita por Lula aos participantes do acampamento Terra Livre em abril deste ano, durante a campanha eleitoral, e reiterada no seu pronunciamento durante a COP27, tem sido alvo de polêmica nos últimos dias, depois que o presidente eleito declarou, em entrevista coletiva, que o próximo governo terá a mesma estrutura ministerial do mandato anterior, “acrescido apenas do Ministério dos Povos Originários. Não sei se vai ser de cara um ministério ou uma secretaria especial ligada à Presidência”.
Na avaliação de Almeida, o fundamental neste processo será garantir o protagonismo das comunidades indígenas. “É importante fazer uma mudança no sentido de que o indígena, que é a razão de ser de um determinado órgão, tenha protagonismo nas ações e não seja visto como algo utilitário e, consequentemente, tenha local de fala e poder de decisão. Não basta apenas ouvi-los. A caneta tem que estar na mão dessas pessoas. Hoje, como dizem, a caneta mata muito mais do que as armas de fogo. Então, a caneta tem que estar na mão deles e aí, sim, eles terão protagonismo em um ministério”, afirma.
A criação de um possível ministério, adverte, “vai incomodar muita gente porque a Funai, por exemplo, nas administrações anteriores, foi administrada majoritariamente por antropólogos ou sertanistas. Os antropólogos e sertanistas são importantes, mas temos que entender que muito mais do que serem objeto, as pessoas têm que ser sujeitos. Este processo de transformação de objeto em sujeito com certeza gerará incômodos, com a consequente perda de protagonismo por muitas pessoas”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o procurador também comenta o desmantelamento dos órgãos ambientais e indígenas durante o governo Bolsonaro. “A junção de um reduzido quadro de funcionários, restrições orçamentárias, a edição da já mencionada IN nº 09/2020, a flexibilização do processo de regularização fundiária, acarretaram um efeito sinérgico negativo que levou ao incremento do desmatamento e ao avanço da grilagem, especialmente em áreas indígenas. Ao lado deste grave avanço temos outros efeitos nefastos, como assassinatos e intimidação de lideranças”, resume.
Marcos Antonio Delfino de Almeida (Foto: Racismo Ambiental)
Marco Antonio Delfino de Almeida é procurador do Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul. É graduado em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Campo Grande – Unaes e mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD.
IHU – Que balanço faz do tratamento e condução da questão indígena no governo Bolsonaro, a partir da sua experiência no Ministério Público, especialmente no atendimento de casos de conflito entre indígenas e não indígenas?
Marco Delfino de Almeida – Houve um retrocesso de cerca de 40/50 anos, ou seja, várias questões que já vinham sendo superadas retrocederam, como a militarização da Fundação Nacional do Índio – Funai e a associação de ONGs com o comunismo, termo genérico usado no Brasil para rotular as posições contrárias ao governo. Nos anos 1970, houve uma visibilização muito expressiva do movimento indígena americano, que acabou recebendo um tratamento muito parecido, à época, com o que o governo Bolsonaro realizou praticamente 50 anos depois. Digo isso para mencionar que é complicado usar abordagens e conceitos que obviamente não se aplicam, como é o caso do comunismo. Nos EUA, por exemplo, ninguém vincula – ao menos não de forma acadêmica – as conquistas indígenas e do movimento negro ao comunismo. De forma muito pragmática, no governo Bolsonaro houve retrocessos e a adoção de práticas dos anos 1970. O tratamento que Mário Juruna recebeu dos militares na década de 1970 foi o mesmo que os indígenas brasileiros receberam no governo Bolsonaro, inclusive de forma mais aguda, por conta da própria defesa presidencial da atividade de garimpo.
Todos conhecemos a atuação do governo federal durante a pandemia: uma atuação muito aquém das atuações realizadas pelos municípios e estados, e que teve um impacto maior em relação aos povos indígenas em face da atribuição federal. Então, a partir do momento em que houve uma série de restrições governamentais em relação às medidas a serem adotadas, diversos problemas foram gerados e não há como não vincular as ações equivocadas e demoradas do governo federal às mortes nas comunidades indígenas. Para dar um exemplo, em Dourados, no Mato Grosso do Sul, tivemos que expedir várias recomendações em relação à vacinação de idosos e grupos em geral, ações que já estavam sendo implementadas pelo Estado, mas ainda não tinham sido implementadas na saúde indígena. Então, há esse legado negativo do governo por causa da pandemia.
Também é importante destacar a expedição de atos normativos que tiveram a mesma perspectiva da Funai do regime militar. Um exemplo é a Resolução nº 04/2021 da Funai, que estabelecia “critérios de heteroidentificação” para avaliar a autodeclaração de identidade dos povos indígenas. Ela é similar à comissão constituída em 1981, pelo Coronel Ivan Zanoni, para criar, no prazo de dez dias, critérios de indianidade. Da mesma forma, não há como dissociar a Instrução Normativa – IN nº 09/2020, bem como diversos atos normativos que restringiam a proteção territorial, e o próprio atendimento da Funai às terras homologadas das famigeradas “Certidões Negativas de Aldeamentos Indígena” emitidas na década de 1970.
Outra questão polêmica é o suposto desenvolvimento das comunidades indígenas, tal como foi tratado no presente governo. Nesse sentido, o exemplo dos EUA tem que ser minimamente considerado porque o desenvolvimento das comunidades indígenas americanas proporcionou a elas autonomia na gestão dos recursos, algo que não aconteceu no Brasil. No Brasil, o que há é um colonialismo com outro nome. Tanto que as atividades estimuladas nas comunidades são aquelas que visam muito mais atender aos interesses externos de produtores rurais do que uma efetiva verificação das potencialidades econômicas de determinadas comunidades, condicionadas, obviamente, ao processo de consulta.
Todas essas questões foram muito malconduzidas, principalmente porque foram realizadas à revelia das comunidades indígenas e com um tratamento muito complicado do ponto de vista midiático porque o discurso em relação a esses povos é muito homogeneizador. Ainda que determinadas soluções, respeitadas a consulta e a deliberação interna das comunidades, sejam aceitas por determinadas comunidades, isso não significa que essas soluções específicas possam ser empregadas para outros povos indígenas que vivem em outros contextos, com outros processos decisórios, outras realidades. Essa visão homogeneizadora, diga-se de passagem, não é um privilégio do governo Bolsonaro, infelizmente. Como dizia Darcy Ribeiro, precisamos ter um ministério das relações interiores. Espera-se que o novo ministério indígena seja o ministério das relações interiores, um ministério que reconheça a diversidade dos povos indígenas e a necessidade de políticas públicas que conservem essa diversidade, especialmente no processo de consulta diferenciado e associado às comunidades.
IHU – Nas últimas semanas, foram publicadas notícias sobre o desmantelamento do governo Bolsonaro em várias áreas e uma delas diz respeito à área ambiental: o governo não tem dinheiro para pagar funcionários do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama. Quais foram as desestruturações feitas em órgãos públicos e qual é o impacto disso no acompanhamento das questões indígenas?
Marco Delfino de Almeida – É muito comum, especialmente entre apoiadores do atual governo, a utilização de termos como deep state, Estado profundo. Esse é um termo importado do movimento conservador americano, segundo o qual as estruturas do Estado visariam atender interesses de uma estrutura global de poder. Esta suposta defesa de interesses diversos do governo eleito foi utilizado como justificativa para o desmantelamento especialmente dos órgãos fiscalizatórios. A primeira vez que ouvi este termo foi ainda em 2017, como uma reação a uma operação de fiscalização de empresas de pulverização aérea.
Nesse sentido, é importante relatar o desmantelamento das universidades porque isso tem um impacto expressivo nos povos indígenas. O processo educacional é um meio facilitador para que as comunidades tenham participação relevante na sociedade. A partir do momento em que há um desmantelamento das universidades, com redução de recursos, impacta-se igualmente a participação dos povos indígenas nos processos decisórios. É preciso reconhecer o conhecimento dos povos indígenas, mas, enquanto isso não ocorre, as universidades acabam exercendo um papel fundamental nesse processo. Em Dourados, nós vivenciamos esta situação, até por conta da não escolha de reitores, que acabou impactando a atividade da universidade como um todo, especialmente aquelas voltadas ao atendimento das comunidades indígenas.
O segundo grande desmantelamento foi na área ambiental com a redução do processo fiscalizatório. Na Amazônia, a diminuição da fiscalização, em atendimento ao mote “de retirar o estado do cangote do produtor rural”, teve impactos severos. Comprovação deste fato é a prolação de diversas decisões judiciais determinando a realização de atividades de fiscalização bem como cautelares do Sistema Interamericano de Direitos Humanos no mesmo sentido. A junção de um reduzido quadro de funcionários, restrições orçamentárias, a edição da já mencionada IN nº 09/2020 e a flexibilização do processo de regularização fundiária acarretaram um efeito sinérgico negativo que levou ao incremento do desmatamento e ao avanço da grilagem, especialmente em áreas indígenas. Ao lado deste grave avanço, temos outros efeitos nefastos, como assassinatos e a intimidação de lideranças.
IHU – Como avalia a proposta de criação de um ministério dos povos indígenas? O que isso significa neste momento? O ministério pode burocratizar ou desburocratizar as questões indígenas no país? De que modo um ministério poderia contribuir para atender as reivindicações indígenas?
Marco Delfino de Almeida – Vamos do mais simples para o mais complexo. O mais simples diz respeito ao seguinte: a relevância de uma determinada ação governamental é dada pelo orçamento que ela possui. Então, a primeira questão a ser debatida é o orçamento que esse ministério terá – e não só o orçamento, mas a estrutura que esse ministério terá, porque, muitas vezes, é dado um orçamento razoável, mas não há uma estrutura governamental compatível para que o orçamento seja utilizado. Tem que haver a observância do princípio da eficiência administrativa, ou seja, um orçamento compatível e uma estrutura governamental que permita a execução orçamentária. O primeiro aspecto que deve ser verificado é se isso vai ocorrer. A partir do momento em que não há orçamento ou não há estrutura, há apenas uma estrutura que visa ter um aspecto simbólico, um token, como disse Martin Luther King, mas que terá pouco efeito na vida dos povos indígenas.
É relevante destacar que este momento está sendo capitaneado por lideranças indígenas importantes e, nesse sentido, temos a construção de políticas públicas direcionadas aos povos indígenas, com a participação dos povos indígenas, nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. A participação das lideranças indígenas nesse processo representa uma construção coletiva. Ou seja, o processo de consulta está sendo observado e esse é um avanço expressivo, um efetivo cumprimento dos compromissos internacionais referendados pelo Brasil.
Mas como disse, é apenas uma iniciativa que depende de concretização. Mas não há como negar que o processo está sendo muito bem conduzido porque tem a participação orgânica dos indígenas. Lideranças que sequer eram recebidas no atual governo, porque havia a sua rotulação genérica como antigoverno e “comunistas”, simbolicamente protagonizem o processo de transição.
A resistência que vai haver para a implementação do ministério será tanto externa quanto interna porque colocar os indígenas em um ministério, para que eles tenham protagonismo, afeta uma série de interesses externos e internos. Como toda experiência nova, ela vai encontrar resistência para sua implantação. Há um desejo de autonomia indígena e, nesse ponto, é importante trazer o exemplo dos EUA, que tem que ser visto com muita parcimônia, da mesma forma que as experiências locais do nosso território têm que ser vistas com suas especificidades culturais. Não se pode usar o termo homogeneizador “povos indígenas” para buscar soluções para todos. Os indígenas dizem algo interessante nesse sentido, a saber, que eles têm o direito de errar na condução do seu processo de autonomia. É exatamente isso. Temos um sistema federativo com mais de cinco mil municípios e muitos deles com reduzida capacidade de gestão. Da mesma forma que os municípios, ao serem autônomos, erraram e erram, e aprenderam neste processo, não há como negar aos povos indígenas o mesmo direito.
IHU – O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, justificou a criação do ministério dos povos indígenas “para que eles sejam protagonistas de sua própria salvação”. O que essa declaração sugere? Como a interpreta? Que tipo de visão está por trás desse entendimento?
Marco Delfino de Almeida – A rigor, quem precisa ser salvo é a nossa civilização. Somos protagonistas de nossa própria destruição. A ocorrência, cada vez mais frequente, de eventos climáticos extremos é a comprovação fática desta assertiva. O que podemos, na verdade, devemos é impedir que os povos indígenas sejam os primeiros a serem afetados. Os impactos dos grandes empreendimentos e da exploração predatória afetam de forma desproporcional povos indígenas isolados e de recente contato. De qualquer sorte, é uma frase ambígua, que deve ser devidamente contextualizada.
Neste sentido, penso que a ênfase deve ser colocada no protagonismo e não na salvação. Salvação é um termo muito complicado, com múltiplos significados, inclusive religiosos. O protagonismo, por sua vez, infelizmente, ainda não ocorreu. Pouquíssimas pessoas que aturam na Funai eram indígenas. O mesmo ocorreu no Serviço de Proteção aos Índios – SPI, que era vinculado ao Ministério da Agricultura e, posteriormente, passou para o Ministério do Interior de forma militarizada com a justificativa de segurança nacional. O indígena nunca foi protagonista, sempre foi visto como um elemento útil à oferta de mão de obra e à defesa das fronteiras. Efetivamente, esses órgãos nunca visaram trazer o indígena como protagonista dos processos.
Processos mais contemporâneos trazidos à Funai são diferentes dos anteriores, onde as pessoas não tinham uma formação educacional. Isso foi alterado com os concursos recentes, mas, ainda que tenha havido mudanças estruturais no órgão, nunca houve protagonismo dos indígenas. A cena dos indígenas na porta da Funai para serem recebidos pelo presidente de plantão, inclusive nos governos anteriores do PT, é a realidade. Eles, que são a razão de ser da Funai, têm que acampar e pedir audiências para serem atendidos. É importante fazer uma mudança no sentido de que o indígena, que é a razão de ser de um determinado órgão, tenha protagonismo nas ações e não seja visto como algo utilitário e, consequentemente, tenha local de fala e poder de decisão. Não basta apenas ouvi-los. A caneta tem que estar na mão dessas pessoas. Hoje, como dizem, a caneta mata muito mais do que as armas de fogo. Então, a caneta tem que estar na mão deles e aí, sim, eles terão protagonismo em um ministério.
IHU – Alguns ambientalistas declararam que antes de criar um ministério para os povos indígenas, o presidente eleito e o novo governo deveriam respeitar a Convenção 169 da OIT. Quais os desafios do novo governo nesse sentido, tendo visto o histórico passado em relação às grandes obras em regiões que afetaram as comunidades indígenas?
Marco Delfino de Almeida – Nós avançamos muito nos protocolos de consulta nos últimos anos porque sequer havia uma forma, um procedimento para a realização das consultas. Hoje, temos protocolos de consulta que estabelecem critérios específicos de acordo com cada comunidade. Mas a grande polêmica que vai haver é a possibilidade de veto, que entendo que deve ocorrer em situações em que a sobrevivência do povo enquanto povo está ameaçada. Nesse sentido, a comunidade tem o direito de vetar determinados empreendimentos. Mas o direito do veto me parece que não será utilizado em todas as situações. O veto é algo absolutamente possível, apesar de não expresso na Convenção 169, mas não será exercido em todas as situações. Ou seja, em determinadas situações, as obras serão realizadas. Então, temos que garantir que a consulta seja bem realizada, observando os protocolos.
Não vejo uma oposição entre o ministério dos povos originários e obras que venham a ser realizadas porque, no momento decisório, em várias situações, está colocada a defesa dos povos originários. O problema é que diversas obras acabam não recebendo o processo de consulta da Funai. Ou seja, o empreendedor encaminha o pedido de licenciamento para que a Funai seja ouvida, mas a Funai não tem a capacidade sequer de realizar o estudo. O empreendedor acaba judicializando o processo, mostrando que o processo de consulta foi encaminhado, mas que a obra está paralisada porque não recebeu a resposta da Funai e, em função disso, muitas vezes, o poder judiciário acaba autorizando. Por isso é importante que o ministério dos povos originários venha junto com estrutura e recursos porque não há como se falar em protagonismo e proteção sem que a estrutura e os recursos estejam presentes.
As questões relacionadas às hidrelétricas e grandes obras têm uma série de erros, mas muitos deles estão associados à incapacidade da Funai em atender as demandas. Tanto que diversos instrumentos normativos são dependentes de recursos e estrutura. Mas, no fim, o empreendedor alega que está com um pedido de consulta à Funai aberto há dois anos e ainda não obteve resposta. Então, essas questões obviamente também têm que ser muito bem pensadas na organização desse ministério. Temos que entender que esse ministério vai ser uma obra em construção, que vai ter erros e não tem que dar certo no primeiro dia.
Por fim, me parece que esse ministério vai incomodar muita gente porque a Funai, por exemplo, nas administrações anteriores, foi administrada majoritariamente por antropólogos ou sertanistas. Os antropólogos e sertanistas são importantes, mas temos que entender que muito mais do que serem objeto, as pessoas têm que ser sujeitos. Este processo de transformação de objeto em sujeito com certeza gerará incômodos, com a consequente perda de protagonismo por muitas pessoas.
IHU – Além dessas questões, o que é mais urgente na pauta indígena no país e quais os desafios do novo governo de frente ampla nesse sentido?
Marco Delfino de Almeida – A pauta de demarcação das terras indígenas precisa ser retomada, assim como iniciativas que já existiram em governos anteriores, com relação à indenização de detentores de títulos da União que agiram de boa-fé. O governo realizou vários empreendimentos e titulou várias áreas e, posteriormente, as reconheceu como terras indígenas. Esses são casos insuperáveis que têm que ser resolvidos com a indenização das pessoas.
Outra questão que precisa avançar é o atendimento às cautelares do Sistema Interamericano de Direitos Humanos porque a vida e os territórios destas pessoas estão em grande risco. É o caso dos yanomami e de várias comunidades na Amazônia que demandam proteção territorial de terras indígenas. Isso é extremamente urgente porque há uma ameaça intensa de grileiros e ocupantes que se sentiram, de alguma forma, autorizados pelo atual governo e pela atuação deficiente em face do desmantelamento dos órgãos, a invadir os territórios amazônicos. Mas é importante mencionar que isso é necessário não só nos territórios amazônicos porque a expansão territorial pode ocorrer tanto por garimpo, madeira, grilagem, como por processo de arrendamento de terras indígenas, que está presente em outras áreas. Quer dizer, a partir do momento em que não há políticas públicas endereçadas aos povos indígenas, ocorrem esses processos.
A proteção territorial pode ser pensada de uma forma ampla, mas também é fundamental o estabelecimento de mecanismos econômicos que impeçam o assédio desses territórios, especialmente para a extração de recursos como madeira, diamante, ouro e arrendamento de terras. Essas comunidades são assediadas e, muitas vezes, acabam cedendo porque não têm políticas públicas endereçadas para o plantio de alimentos, para a comercialização desses alimentos e aí, muitas vezes, as comunidades acabam arrendando essas áreas para o plantio de soja ou para outras atividades. Essas são as questões urgentes. Então, a demarcação das terras é importante porque o bem-viver das comunidades está associado ao território. A partir do momento em que não há território, não há bem-viver. Essa agenda tem que avançar, especialmente nas áreas mais conflagradas, com mecanismos que permitam a resolução de conflitos. Há casos em que o próprio governo federal acabou gerando o problema e, portanto, é fundamental partir para soluções que reconheçam os erros do governo federal e, consequentemente, se indenizem as pessoas de boa-fé que detêm títulos, especialmente os do governo federal.
Igualmente, é importante olhar para a saúde indígena, para que seja pensada especialmente em locais onde determinadas doenças são endêmicas, como alcoolismo, drogas e suicídios. Muitas vezes o tratamento dessas doenças é evocado a partir de uma saúde ocidental que desconsidera os saberes indígenas. É preciso uma saúde que valorize os conhecimentos dos povos indígenas e que dialogue efetivamente com os conhecimentos deles. A mesma afirmativa vale para a educação indígena: não pode ser ocidentalizada; tem que ter conteúdo produzido pelos povos indígenas. Eles precisam se ver representados nos livros escolares, que é algo que ainda não existe. São muitas as demandas, todas relacionadas ao protagonismo indígena.