22 Setembro 2022
Em entrevista exclusiva ao ((o))eco, a candidata a deputada federal pelo PSOL de São Paulo, diz que não aceitaria o ministério indígena, mas sim o do meio ambiente.
A entrevista é de Débora Pinto, publicada por ((o))eco, 20-09-2022.
A ativista indígena Sônia Bone Guajajara se transformou em um fenômeno internacional. Escolhida pela revista Time como uma das cem pessoas mais influentes do mundo em 2022, a ex-coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), e co-fundadora da Articulação das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), foi reconhecida na categoria Pioneiros pelo seu trabalho em defesa dos povos indígenas e de seus territórios.
Embora reconheça a importância de seu feito, a líder nascida em uma comunidade na Terra Indígena Araribóia, no interior do Maranhão, acredita ser fruto dos esforços de toda a sua comunidade e daqueles que, como ela, estão diariamente comprometidos com a luta pela causa indígena.
Em sua trajetória, além de amadurecer seu ativismo, Sônia formou-se em Letras e Enfermagem pela Universidade Estadual do Maranhão (Uema) e concluiu uma pós-graduação em Educação Especial. Em 2003, passou a estar à frente da Coordenação das Organizações E Articulações Dos Povos Indígenas do Maranhão (Coapima) e, em 2009, foi eleita vice-coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Em 2013, assumiu o seu lugar de liderança na Apib.
Sônia Guajajara detalha as motivações para ser candidata a deputada federal pelo PSOL por São Paulo e conta de que modo pretende exercer o seu poder caso eleita para o Congresso Nacional.
Sônia, como foi para você, após ter transitado por tantos lugares em sua formação e dentro da estrutura patriarcal indígena, perceber-se como uma liderança?
Para ser sincera, eu não me percebo dessa forma. Para mim, eu sou mais uma pessoa que está nessa luta, assim como muitas outras que estão nos territórios, diariamente, sendo violentadas e agredidas de várias maneiras. Eu via meu povo tendo que lutar muito, mendigando por um pedaço de terra e foi contra isso que eu comecei a levantar a minha voz. O meu reconhecimento veio de forma natural, mas acho que é também porque eu tenho a habilidade de falar com todo mundo, de dialogar, de furar bolhas. Mas não é porque eu consegui ter mais visibilidade que eu sou melhor ou diferente dos outros. É claro que às vezes eu penso, como é que eu pude sair de Araribóia, no interior do Maranhão, e alcançar uma repercussão internacional. Até os 15 anos de idade eu não tinha sequer ido a uma cidade grande, uma capital. Mas os povos indígenas lutam constantemente por direito e por justiça e eu sou parte dessa luta, que é coletiva.
Você foi considerada pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. Qual a utilidade desse reconhecimento para a defesa dos territórios e dos povos indígenas?
Nesse caso, o reconhecimento ganha um papel importante. Em um momento em que nós vivenciamos tantos retrocessos por causa do governo (do Presidente Jair) Bolsonaro, esse título leva a nossa luta para um novo lugar de visibilidade internacional. Eu só cheguei a esse lugar graças a muita participação, muita coletividade. O que eu busco é trazer o máximo possível de pessoas para se engajarem e entenderem o papel dos povos e dos territórios indígenas, para compreender a luta indígena como uma causa mundial, humanitária e civilizatória. E que essas pessoas nos ajudem nessa luta por direito ao território, a uma saúde de qualidade, a uma educação pública diferenciada. Além do respeito ao nosso modo de produzir, de plantar, de viver. O momento em que eu estava em Nova Iorque para receber essa homenagem da Time, foi exatamente o dia do desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, no Vale do Javari, no Amazonas. Então eu aproveitei aquela oportunidade, que era em princípio para falar de mim e da minha luta, para fazer essa denúncia, já que o ocorrido ainda não tinha se tornado público. Isso ajudou muito para o caso ganhar repercussão internacional.
Reprodução Redes Sociais
Existem dados e estudos reiterados comprovando que quem de fato defende as florestas em todo o mundo são os povos indígenas e tradicionais- já em 2017 a ONU (Organização das Nações Unidas) apontava que vocês são os guardiões de 82% da biodiversidade do planeta. Porque é tão importante continuar deixando esse papel em evidência?
Eu acho que está longe ainda das pessoas não-indígenas entenderem o real papel dos povos e dos territórios indígenas. Principalmente quem está nas grandes cidades não consegue entender o que significa o fato de nós sermos 5% da população do planeta e protegermos 82% da biodiversidade. É sempre importante falar isso para as pessoas perceberem a importância dessa conexão e a urgência dessa reconexão, porque a vida na cidade não é auto sustentável, ela precisa de nós que estamos lá na ponta, todos os dias lutando tanto para proteger e manter os territórios quando em confronto ao poder Legislativo, buscando evitar medidas que visam destruir esses mesmos territórios. Por isso, nunca é demais falar que as Terras Indígenas funcionam como barreiras contra o agronegócio, as monoculturas e o desmatamento. As pessoas precisam saber, porque se não sabem disso, vão continuar olhando as TIs como improdutivas, porque é esse o discurso da bancada ruralista. É preciso entender que a qualidade do ar que a cidade respira depende dessas chamadas áreas improdutivas (como alguns consideram as Terras Indígenas). Que a água que chega em São Paulo vem dessa floresta em pé, que eles chamam de improdutiva, mas que traz a chuva por meio dos rios voadores até a Cantareira, abastecendo o sistema de água da maior capital do país. Tem horas em que é preciso falar o óbvio para que as pessoas entendam que se não apoiarem os direitos dos povos indígenas e a demarcação de terras a vida delas está em risco.
Qual foi a sua principal motivação para passar a atuar na política, primeiro como candidata a vice-presidenta de Guilherme Boulos pelo PSOL em 2018 e agora concorrendo a deputada federal por São Paulo?
Eu estou entrando nessa luta de outro lugar, que é o da institucionalidade, porque o Bolsonaro chamou a gente para a briga. Ele disse em campanha que em seu mandato não haveria um centímetro de terras demarcadas para indígenas e assumiu isso transformando a não demarcação em política pública. Então, para nós ficou o recado de que era preciso partir para cima dentro da institucionalidade. A gente ficar batendo pé aqui fora não está sendo suficiente para evitar tantos retrocessos. Os territórios já demarcados estão sendo totalmente invadidos, com exploração ilegal de garimpo, de madeira, de caça, e o avanço da grilagem. Tudo isso levou a gente a tomar a decisão de ter mais representantes indígenas ocupando espaços no Legislativo. A deputada federal Joênia Wapichana (Rede/RR) foi um grande exemplo disso, chegando lá depois de 36 anos sem a presença de um indígena no Congresso, e já como resultado da nossa mobilização. Para nós, os quase quatro anos da Joênia ali foram um exemplo de que precisamos de um reforço nesse enfrentamento direto à bancada ruralista. Inicialmente eu não sairia candidata, mas estaria como coordenadora da Apib (Associação dos Povos Indígenas do Brasil) fortalecendo outras candidaturas. Só que toda a minha trajetória, como eu disse antes, se deve à luta dessa coletividade. E chega uma hora em que o movimento chama, e você precisa atender. Eu sairei por São Paulo, pela visibilidade e importância econômica, encabeçando a candidatura em prol de uma bancada indígena e, também, a bancada do cocar, que é um recorte exclusivo para mulheres indígenas. Outra coisa que me motiva muito é a articulação que estamos fazendo para construirmos uma bancada da terra, com movimentos como o MST, os líderes quilombolas e outros. Dessa forma, coletivamente, vamos provocando uma mudança na composição do Congresso Nacional e na estrutura do Estado. Eu considero que essa também é uma contribuição nossa ao fortalecimento da democracia, porque não é possível mais pensar uma democracia brasileira sem a representatividade política da diversidade étnica e territorial do país. Chegou a hora das gravatas abrirem espaço para os cocares e turbantes.
O candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem anunciado publicamente que, se eleito, criará um Ministério dos Povos Originários. Como você enxerga essa proposta?
Para mim, isso não é uma promessa, já é uma realidade. Se ele prometeu, nós já estamos com essa ideia dada como certa. É um ponto importante sim, um modo de aglutinar a articulação da política indigenista, mas não é suficiente. Nós queremos discutir com um provável governo Lula a participação indígena em todas as áreas. Desejamos estar presentes na construção da política cultural, de educação, de saúde, no Ministério da Justiça e, é claro, no Ministério do Meio Ambiente. Esse Ministério Indígena certamente será chefiado por um indígena. Mas se o Lula me convidar para ser essa pessoa, eu vou dizer “agradeço muito, mas eu quero ser ministra do Meio Ambiente”, porque é o espaço que nos interessa e é onde precisamos dar a nossa contribuição para o país. Se está tão comprovado que nós cuidamos da biodiversidade do planeta, isso prova que nós sabemos fazer gestão ambiental. É um modo de mostrarmos esse conhecimento, dialogando com outros setores. Não é possível, por exemplo, pensar um futuro para a economia que não esteja atrelado a uma agenda ambiental. Por isso, embora um Ministério Indígena seja importante, por si só ele não é suficiente.
Em um sistema político com poderes historicamente arraigados e com tantos interesses econômicos nocivos ao meio ambiente, como você acredita que uma bancada indígena irá atuar se for eleita? É possível fazer diferença para além da representatividade?
Nós estaremos lá, primeiro, para atrapalhar a bancada ruralista. Se nós estivermos com Lula, nossa intenção será a de construir junto com ele, a partir das pautas que nos são caras. Se for Bolsonaro – que é uma hipótese com a qual eu preferia nem contar – nós estaremos lá para afrontar. Nesse sentido, não tem nem meio termo. Eles podem até ter o poder, mas não são doidos e quando a gente chega mesmo com o constrangimento, a coisa muda de figura. Nós contamos com o apoio de entidades internacionais e também de empresas, que não querem se ver associadas com o genocídio dos povos indígenas. E quando pega no bolso, ninguém quer se comprometer. Se nós conseguimos isso estando aqui fora, imagine em maior quantidade dentro do Congresso. Nós sabemos as armas que eles têm, mas nós também temos as nossas.
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“Precisamos mais do que um Ministério Indígena”, diz Sônia Guajajara - Instituto Humanitas Unisinos - IHU