Segundo o procurador, diversos governos foram negligentes com os povos originários, mas atualmente o Estado não só negligencia como vai contra os direitos já assegurados aos índios
Desde que o primeiro europeu, o dito homem branco, pisou nas terras brasileiras, os povos indígenas começaram a ser atacados. De lutas físicas, massacres até a contaminação em massa por vírus aos quais não se tinha resistência, a verdade é que a morte esteve sempre presente nessa relação entre índios e não índios no Brasil. Veio a Independência e depois pelo menos duas grandes fases de República, e nada parece ter mudado. Ou, o que é mais horrível ainda, piorou. Para o procurador do Ministério Público Federal Marco Antonio Delfino, não restam dúvidas: essa é a pior fase para os indígenas na história recente. “As políticas territoriais, por exemplo, nunca foram cumpridas, sempre tivemos deficiências estatais muito claras no cumprimento dos mandamentos constitucionais. Governos Collor, Fernando Henrique, Lula, Dilma falharam no cumprimento da Constituição no que diz respeito aos povos indígenas. Mas o que estamos vendo no governo atual é muito mais do que uma omissão nesse dever constitucional”, aponta, em entrevista concedida via Zoom ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Nessa conversa, o procurador recupera sua experiência na luta pela defesa dos Direitos de povos originários e analisa outros casos que trazem em comum a perpetuação de lógicas coloniais. “O que efetivamente se tem, há muito tempo, é uma política absolutamente colonial. Tratam-se os povos indígenas como se eles fossem colônias, como se houvesse algum tipo de insurreição colonial”, observa. E completa: “desde o início do século passado, o Estado trata os povos indígenas dentro dessa dimensão colonial, de modo que todo e qualquer questionamento por parte dos indígenas deve ser reprimido, pois a reclamação estaria vindo de um ‘súdito’ que deve obediência ao colonizador ou à ‘metrópole’”.
Sobre o atual momento, Delfino destaca as ações de destruição do governo Bolsonaro e sua visão distorcida sobre o que são Direitos Constitucionais. “O que me parece é que o governo federal acha que a Constituição é um livrinho em que você vai e marca as páginas que lhe parecem interessantes. Vários apoiadores do governo gostam muito do artigo 142, que fala da intervenção militar. A Constituição não pode ser lida aos pedaços, ela tem que ser cumprida do artigo 1º ao 250º”, dispara.
Felizmente, ele destaca que há um horizonte, uma transformação que passa pelos próprios indígenas que têm assumido, seja nos tribunais, no parlamento, diante do Executivo ou em atos nas ruas, o protagonismo de suas lutas. “Até do ponto de vista dos parâmetros ocidentais, as lideranças indígenas possuem títulos que a sociedade envolvente valoriza, como doutorado ou mestrado”, completa.
Marcos Antonio (Foto: Racismo Ambiental)
Marco Antonio Delfino de Almeida é procurador do Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul. É graduado em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Campo Grande – Unaes e mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Grande Dourados - UFGD.
IHU – O senhor trabalha há muito na luta pelos direitos de povos indígenas, passando por muitas situações difíceis. Pela sua experiência, esse é o pior momento pelo qual estamos passando ou já houve períodos piores, de mais ataques aos povos originários?
Marco Antonio Delfino – O pior momento, com certeza, é o atual. A vida nas comunidades indígenas nunca foi tranquila, sempre foi algo extremamente complicado, nunca tivemos uma política que contemplasse plenamente os direitos dos povos indígenas. As políticas territoriais, por exemplo, nunca foram cumpridas, sempre tivemos deficiências estatais muito claras no cumprimento dos mandamentos constitucionais. Governos Collor, Fernando Henrique, Lula, Dilma falharam no cumprimento da Constituição no que diz respeito aos povos indígenas. Mas o que estamos vendo no governo atual é muito mais do que uma omissão nesse dever constitucional: o art. 65 do Estatuto do Índio determinava o prazo de cinco anos para a demarcação de todas as terras indígenas.
Logo, em 1978 esta meta do Estado deveria estar cumprida. Não o foi. Este mesmo dispositivo foi colocado no art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT da Constituição. Em 1993, deveríamos ter todas as terras indígenas demarcadas. No entanto, como sabido, ocorreu novo descumprimento que perdura até os dias de hoje. Os governos anteriores atribuíram esta grave omissão a uma grande série de fatores. No entanto, buscavam, ainda que sem o empenho necessário, a sua implementação. A gravidade se altera a partir do momento em que se manifesta a intenção de não cumprimento de uma determinação constitucional expressa. Isso muda o patamar do descumprimento, o qual vira comissivo, que é muito mais grave que omissivo.
O segundo aspecto é a utilização de uma série de políticas que falharam nos Estados Unidos. Por exemplo, essa política de utilização “produtiva” de terras indígenas foi implementada no final do século XIX nos Estados Unidos, pelo Dawes Act. Esta legislação determinou uma política de loteamento das terras indígenas que foi um fracasso. O denominado relatório Meriam (Meriam Report), em 1928, apontou o fracasso da política porque os almejados “ganhos econômicos” para os povos indígenas não aconteceram. Apenas os produtores rurais que arrendavam as terras indígenas obtiveram vantagens econômicas significativas. Uma experiência fracassada há mais de cem anos é novamente tentada, agora no Brasil. Ou seja, se tenta reproduzir mecanismos de desenvolvimento de uma forma não dialogada com os povos indígenas.
O desenvolvimento está lá na convenção da Organização Internacional do Trabalho - OIT, artigo 7, Direito ao Desenvolvimento. Agora, como a própria convenção estabelece, deve ser um desenvolvimento feito de forma dialogada e não imposta aos povos indígenas. O que estamos fazendo não é cumprir a convenção 169, estamos repetindo uma política colonial. A aplicação do famoso brocardo “eu sei o que é bom para você”.
Paralelamente a este quadro, a discussão no Congresso sobre demarcação de terras indígenas mostra efetivamente que este talvez seja o pior momento pelo qual os povos indígenas já passaram. Com a promulgação da Constituição, em 1988, se esperava um avanço de direitos, o rompimento com uma política assimilacionista e tutelar. O momento atual caminha em sentido inverso, em um quadro de evidente retrocesso. O Estado que se omite em demarcar é o mesmo em que somente terras indígenas homologadas serão consideradas nos processos de licenciamento. Isso é um desastre, com gigantescas possibilidades de condenação nas instâncias internacionais pelo descumprimento de convenções internacionais de proteção de povos indígenas.
Hoje, vários bancos brasileiros têm que observar, para o financiamento de médios e grandes projetos, os chamados Princípios do Equador. É um comprometimento pelo cumprimento das normas do Grupo do Banco Mundial (World Bank Group) sobre investimentos e nessas normas está muito claro que se deve respeitar direitos de povos indígenas. Os princípios estabelecem, expressamente, a observância do Padrão de Desempenho - PS 7 para Povos Indígenas. Ele estabelece que o “(...) cliente identificará, por meio de um processo de avaliação de riscos e impactos socioambientais, todas as comunidades de Povos Indígenas localizadas dentro da área de influência do projeto que possam por este ser afetadas (...)”. O Congresso caminha, ao regrar o atual processo de licenciamento, no sentido de incrementar o ônus dos bancos, visto que terão de efetivar um papel que deveria ser do Estado: de identificar os efetivos riscos socioambientais do empreendimento, uma vez que se comprometeram com um standard mais garantidor. Isso mostra o nível de loucura que se está, se gera uma insegurança enorme para o financiador. Relembrando que, de forma contrária ao atual cenário, os Princípios do Equador foram recentemente revisados (julho de 2020) para uma maior observância dos Direitos Humanos e dos impactos das mudanças climáticas. É importante ressaltar ainda que esta alteração legislativa é igualmente contrária à Resolução 4327/2014 do Banco Central, que estabelece diretrizes que os bancos devem observar na implementação das suas políticas de responsabilidade socioambiental.
O curioso é que a origem dos parâmetros de desempenho pode ser atribuída à tentativa de minoração de impactos negativos de projetos de desenvolvimento como os derivados do Polonoroeste [Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil]. Este projeto de desenvolvimento, realizado em Rondônia na década de 1980, se provou um desastre. Muito do atual caos fundiário existente em Rondônia deriva dos estímulos econômicos deste projeto financiado pelo Banco Mundial. O Banco mensurou os gigantescos impactos negativos e mudou os parâmetros. E hoje, por aqui, se promove exatamente o contrário, como se não tivéssemos a capacidade de aprender com a história.
Outro ponto a ser observado é a desproteção territorial promovida pela Fundação Nacional do Índio - Funai. Houve um tempo em que o problema eram as certidões negativas de terras indígenas fornecidas pela Funai. O interessante é que este diagnóstico consta de um documento da própria Fundação: o documento base da 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista de 2015 [“Dois períodos foram particularmente importantes: a desestruturação do SPI, a partir de 1955, que culminou com a extinção do órgão e a criação da Funai, em 1967, e o período da ditadura civil-militar (1964-1985). O primeiro foi marcado tanto pela inação do Estado (que deu margem para que a força se tornasse o principal meio de resolução dos conflitos fundiários envolvendo povos indígenas), quanto por sua cumplicidade ativa com o esbulho territorial (pela via da emissão de certidões negativas fraudulentas, do arrendamento de terras indígenas e da exploração de recursos para a geração da renda indígena)"]. De forma contrária ao diagnóstico, a Funai, por meio da edição da IN 09/2020, incrementou a desproteção ao normatizar a Declaração de Reconhecimento de Limites. O referido documento “(...) se destina a fornecer aos proprietários ou possuidores privados a certificação de que os limites do seu imóvel respeitam os limites das terras indígenas homologadas, reservas indígenas e terras dominiais indígenas plenamente regularizadas”. Logo, a proteção repousa apenas em terras indígenas plenamente regularizadas. As terras que estão em estudo e em processo não são consideradas terras indígenas. Isso gera uma inédita possibilidade de uma gigantesca grilagem de terras indígenas.
Por tudo isso, este é um momento muito, muito, muito mais complicado. Realmente talvez um dos momentos mais difíceis que já se teve em relação aos povos indígenas, porque são ataques de todos os lados. O interessante é que em uma decisão da Suprema Corte Americana proferida no Caso Kagama, os inimigos mais mortais dos povos indígenas são apontados como sendo os governos estaduais. Sempre houve uma tensão muito grande, especialmente no século XIX, entre os estados americanos que queriam se apossar das terras indígenas e o governo federal. E no papel de tutor/guardião, o governo federal sempre atuou contra os interesses dos estados.
[Cândido] Rondon declarou há muito tempo que, para que os órgãos indígenas funcionassem, era preciso três fatores: um corpo técnico qualificado, recursos econômicos e apoio político, justamente para se contrapor aos arranjos locais, porque, via de regra, a atuação da Funai sempre foi contrária aos interesses locais. Veja que esse era um diagnóstico que Rondon – sobre o qual tenho minhas reservas, pois entendo que sua política protetiva era mais uma figura de linguagem – apontava esses três fatores como essenciais para uma eficiente política indigenista e, hoje, não temos nenhum deles. Não temos mais um corpo técnico, notadamente na direção do órgão indigenista. Também não há recursos e o apoio político é contrário aos interesses indígenas. Pegando essa lógica do Caso Kagama, hoje, no Brasil, talvez o maior inimigo dos povos indígenas seja o governo federal.
IHU – A Polícia Federal abriu inquérito, a pedido da Funai, para investigação de lideranças indígenas Waimiri Atroari que, supostamente, estariam atrapalhando a implementação das linhas de transmissão de energia elétrica no Norte do país. O que esse episódio pode revelar sobre os tempos que temos vivido?
Marco Antonio Delfino – É importante, em primeiro lugar, colocar que eu não conheço o caso de forma específica. Se pegarmos do ponto de vista histórico, há um episódio muito interessante que é a participação do Mario Juruna, que depois foi deputado e liderança indígena, no Tribunal Russell, nos anos 1970. Como ele gravava todas as conversas, há uma conversa dele com o então presidente da Funai, o general Ismarth Araújo de Oliveira. A gravação revela que as preocupações da Funai nos anos 1970 e hoje são as mesmas. Entende-se que o fato de um indígena denunciar o governo em um tribunal internacional caracteriza algum tipo de ameaça à segurança nacional.
JURUNA - (...)o senhor vai conseguir o passaporte, o recurso vem de lá, então ninguém tem a responsabilidade(...)
PRESIDENTE – Eu só espero que você se lembre disto, que você é um homem brasileiro, e que o governo brasileiro lhe defende sob todos os aspectos e que você deve fazer lá um trabalho para o Brasil e não contra o Brasil; (…) o que você tem é que defender o Brasil (...)
JURUNA - Eu posso defender o Brasil, posso defender a terra, mas não defendo o povo.
PRESIDENTE - Então você não é brasileiro, (...)não quer defender o Brasil, vá para a Bolívia(...)
JURUNA – Por quê? Então eu tenho que defender os pistoleiros, aquelas pessoas que já mataram índios/
PRESIDENTE – Um momento, Mário. Você está sendo contrário a um Governo que está lhe defendendo (…) Você não pode fazer isso lá fora, caso contrário você vai ver o que vai acontecer a você quando voltar. (…) Eu estou te aconselhando como tutor de você que sou(...)
(JURUNA, HOHFFELDT & HOFFMANN. O gravador do Juruna Apud LACERDA, Rosane Freire. Diferença não é incapacidade: Gêneses e Trajetória Histórica da Concepção da Incapacidade Indígena e sua Insustentabilidade nos Marcos do Protagonismo dos Povos Indígenas e do Texto Constitucional de 1988. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília. UnB. Faculdade de Direito. 2007, p. 101-102).
Isso é algo especialmente contraditório em relação ao atual governo, pois nos governos militares havia um quadro de censura e nesse aspecto uma limitação da liberdade de expressão era algo coerente com o quadro de violação sistemática de direitos. O atual governo, porém, utiliza e defende uma interpretação extremada da liberdade de expressão.
Já as lideranças indígenas não poderiam se manifestar e fazer uso da mesma liberdade de expressão, que conforme o artigo 13 da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos tem relação com o direito que a pessoa tem de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, de maneira livre. A liberdade de expressão não inclui qualquer apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência. Estes parâmetros são violados rotineiramente em declarações do governo federal. Recentemente, o governo foi condenado em São Paulo, na primeira instância, no que se refere às declarações discriminatórias em relação a mulheres e meninas por seus representantes. Há uma ação, igualmente em curso, por palavras proferidas por membros do governo federal em face dos povos indígenas. É neste contexto que eu vejo estes inquéritos como algo absolutamente datado: a mesma mentalidade de mais de 40 anos atrás.
É preciso entender primeiro que a tutela – que também havia nos anos 1970 – não significa que as pessoas tuteladas sejam incapazes de pensar e de falar por si próprias e que, portanto, estariam sendo usadas por ONGs internacionais. Há todo um discurso preconceituoso que já conhecemos. Ou seja, é uma ladainha de quatro décadas, que não se sustenta. Até do ponto de vista dos parâmetros ocidentais, as lideranças indígenas possuem títulos que a sociedade envolvente valoriza, como doutorado ou mestrado, mas continuariam marionetes das malfadadas ONGs.
O que efetivamente se tem, há muito tempo, é uma política absolutamente colonial. Tratam-se os povos indígenas como se eles fossem colônias, como se houvesse algum tipo de insurreição colonial. Alguns pontos bem claros, na relação colonial, é que o colono não tem os mesmos direitos que o “cidadão”, pois o primeiro tem um plexo de direitos muito limitado e o segundo tem um conjunto mais amplo. Parece-me que desde o início do século passado o Estado trata os povos indígenas dentro dessa dimensão colonial, de modo que todo e qualquer questionamento por parte dos indígenas deve ser reprimido, pois a reclamação estaria vindo de um “súdito” que deve obediência ao colonizador ou à “metrópole”. É importante recordar, neste sentido, a redação da alínea do art. 5º do Decreto nº 17.684, de 26 de janeiro de 1945:
e) propor ao diretor, mediante requisição do Chefe de Inspetoria competente, o recolhimento à colônia disciplinar, ou na sua falta ao posto Indígena designado pelo diretor, e pelo tempo que este determinar nunca excedente a 5 anos, de Índio que por infração ou mau procedimento, agindo com discernimento, for considerado prejudicial à comunidade indígena a que pertencer, ou, mesmo, às populações vizinhas, indígenas ou civilizadas.
A repressão manifestada nestes inquéritos, como o citado na pergunta, segue essa lógica colonial, como se fossem “motins” em face das ordens da metrópole, como se a “colônia” estivesse se insurgindo contra as ordens da metrópole. Nesta lógica, toda e qualquer insurreição deve ser sufocada desde o início. Felizmente não é sufocada mais com a força militar, mas a tentativa de sufocamento vem por meio do aparelho repressor do Estado. A rigor, em termos conceituais, é algo semelhante, pois a partir do momento que eu uso as forças do Estado para sufocar essas manifestações, está se usando o mesmo instrumento e a mesma linha de raciocínio que foi usada durante todo o período imperial para repressão das denominadas “revoltas”.
IHU – Há toda uma postura que tem origem no Brasil colônia e depois, nos anos 1960/1970, numa outra perspectiva de repressão, mas a Constituição de 1988 e uma série de outros dispositivos visam, justamente, mudar isso. No caso dos Waimiri-Atroari, o Código Penal foi acionado na tentativa de resolver uma questão que é, em última medida, social. O que isso significa?
Marco Antonio Delfino – É uma questão que precisa ser resolvida, e eu costumo dizer que não podemos ter partes preferidas na Constituição. O que me parece é que o governo federal acha que a Constituição é um livrinho em que você vai e marca as páginas que lhe parecem interessantes. Vários apoiadores do governo gostam muito do artigo 142, que fala da intervenção militar. A Constituição não pode ser lida aos pedaços, ela tem que ser cumprida do artigo 1º ao 250º.
Há uma nova relação que foi estabelecida pela Constituição entre os povos indígenas e a sociedade envolvente. Não temos mais uma relação assimilacionista, mas uma relação que visa respeitar a diversidade cultural desses povos e que estabelece uma série de garantias, o que toca, inclusive, projetos de desenvolvimento. Isso se refere não somente à Constituição, mas também aos tratados internacionais que o Brasil assinou.
O que o país tem que fazer é respeitar essas leis, levando em conta o velho ditado: “eu posso discordar do que você fala, mas vou defender o seu direito de dizê-lo”. Então, da mesma forma, eu posso até considerar que há uma tensão entre o projeto de desenvolvimento e o direito dos povos indígenas, mas vou defender sempre a estrita observância dos parâmetros constitucionais e convencionais de defesa dos direitos dos povos indígenas.
IHU – Como o senhor tem acompanhado o debate sobre a tese do “marco temporal”?
Marco Antonio Delfino – Tem um livro americano chamado Partial Justice [SHATTUCK, Petra T. Partial Justice: Federal Indian Law in a Liberal Constitutional System. Bloomsbury UK Academic, 1992], que mostra como determinadas decisões da Suprema Corte dos EUA expressam uma visão, não diria racista, mas parcial em relação aos povos indígenas. Por exemplo, nos EUA há, ainda hoje, uma coisa chamada plenary power, que se refere ao poder que o Congresso tem de extinguir povos indígenas. Isso foi um poder que a Suprema Corte estabeleceu e que vai contra tratados internacionais no que se refere às garantias dos povos tradicionais. A crítica do livro é um posicionamento que questiona o tratamento diferenciado fornecido em relação aos Povos Indígenas americanos. Ainda que exista uma legislação bastante interessante de autogoverno, essa decisão permanece.
No caso do Marco Temporal há algo muito semelhante. Trata-se da utilização do Judiciário, que é reflexo desse quadro de racismo estrutural que temos no país. Quando falamos de racismo estrutural, estamos falando das estruturas de Estado. Obviamente o Poder Judiciário acaba, consciente ou inconscientemente, reproduzindo-o. Quando examinamos decisões do Judiciário em relação a crimes contra a humanidade há um posicionamento muito claro de que esses crimes são imprescritíveis.
Há um caso de tortura em que houve a demanda por compensação financeira (não que elas não mereçam), que inicialmente foi rejeitada, pois teria ocorrido há mais de cinco anos à época. O [ministro Luiz] Fux defendeu a tese de que crimes contra a humanidade são imprescritíveis, bem como há um dever de reparação por parte do Estado para estas pessoas. [As ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de tortura ocorridos durante o Regime Militar de exceção são imprescritíveis. Inaplicabilidade do prazo prescricional do art. 1º do Decreto 20.910/1932. (REsp nº 816.209/RJ, Relatora Ministra Eliana Calmon, Primeira Seção, in DJe 10/11/2009). Isso porque as referidas ações referem-se a período em que a ordem jurídica foi desconsiderada, com legislação de exceção, havendo, sem dúvida, incontáveis abusos e violações dos direitos fundamentais, mormente do direito à dignidade da pessoa humana. Precedentes: REsp 959.904/PR, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, Dje 29/9/2009; AgRg no Ag 970.753/MG, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, DJe 12/11/2008; REsp 449.000/PE, Rel. Ministro Franciulli Netto, Segunda Turma, DJ 30/6/2003.] O mesmo posicionamento é apresentado no STF, como podemos verificar do voto da [ministra] Cármen Lúcia, em decisão monocrática [RE 667534 / DF - DISTRITO FEDERAL Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA].
O que ocorre em relação aos povos indígenas? Em primeiro lugar, também mostra que a tese do Marco Temporal é um absurdo, mesmo nos EUA não seria bem vista. Isso porque, segundo a interpretação jurídica da Suprema Corte, é possível a demanda jurídica em face do governo federal se houver uma falha no “dever de cuidado” presente na relação tutor e tutelado. Obviamente que com o autogoverno das comunidades indígenas, cada vez menos se pode demandar essas falhas, pois como vou demandar uma falha na relação tutor e tutelado se estou me autogovernando?
Entretanto, esse fundamento sempre foi utilizado, tanto que houve, recentemente, uma indenização – o Acordo Cobel – que é, justamente, uma demonstração de que houve uma falha no gerenciamento dos recursos das comunidades indígenas pelo tutor. Isso fez com que houvesse um acordo gigante que durante muito tempo foi o maior acordo tramitando nos EUA, na casa dos bilhões de dólares.
Ora, no Brasil, até 1988 essas comunidades eram tuteladas pelo Estado brasileiro. Desde o período colonial há uma legislação muito clara de que as terras indígenas devem ser asseguradas pelo Estado. Desde 1910, com o Serviço de Proteção ao Índio - SPI, há um dispositivo estatal que estabelece critérios e normas para proteger os povos indígenas; depois, desde 1967, tem a Funai, que se presta aos mesmos objetivos. Então, resumidamente, qual o principal direito que essas comunidades têm? O direito ao território. Quem era o responsável por assegurar esse território? O Estado brasileiro, claro. Por quê? Porque ele tinha um dever de tutela em relação aos povos originários; isso está lá, explicitamente, desde o Decreto nº 5484/1928.
Vejamos, o Estado falha no processo de defender os territórios, mas ao mesmo tempo argumenta que os povos indígenas poderiam demandar judicialmente a demarcação. Ora, a demanda só poderia ser proposta através da mediação de seu tutor, o Estado. Desde o código civil de 1916 era reconhecida aos indígenas a denominada “capacidade relativa”, com a consequente necessidade de representante legal para a prática de determinados atos, como a postulação em juízo. Se o meu “guardião” (o Estado) falhou, eu poderia, em tese, demandar a reparação da falha, mas o Marco Temporal visa impedir esta correção. Em suma, do ponto de vista legal e moral é um absurdo.
Vamos, por outro lado, usar o mesmo fundamento em relação aos crimes contra a humanidade. Remoção forçada é um crime contra a comunidade, e as comunidades indígenas foram forçadas a sair de seus territórios. Nos votos que os ministros do Supremo estabelecem, eles colocam que está caracterizado nos autos que houve a remoção das comunidades. Ora, se houve a remoção forçada e eu, enquanto juiz, considero a remoção como forçada, por que não atribuo a essa remoção a mesma decisão ou entendimento sobre a tortura como crime imprescritível?
A própria Resolução 60/157 da ONU, que versa sobre as formas de reparação, estabelece como a primeira delas a “reparação integral”, isto é, neste caso, a reparação do território. Os instrumentos jurídicos existentes são muito claros em colocar o marco temporal com um absurdo completo. Seja do ponto de vista dessa relação absolutamente monstruosa, essa relação tutelar, em que se pretende responsabilizar o tutelado pela falha do tutor; seja do ponto de vista internacional, trata-se de um crime contra a humanidade, com imprescritibilidade da necessidade de reparação integral, que é a reparação do território.
A comprovação de uma decisão contrária a isso vai mostrar claramente, como nos EUA, que estamos diante de uma justiça parcial, uma justiça que reflete um quadro de racismo estrutural, pois diferencia, discrimina, casos que têm o mesmo fundamento jurídico. Uma decisão para não indígenas e outra para indígenas.
IHU – Como o senhor avalia a legislação brasileira no que tange à proteção de povos originários?
Marco Antonio Delfino – Nós temos um resquício da ditadura, que é a Lei 6.001 de 1973. Esse resquício permanece e o mais complicado é que temos uma deficiência no sistema de ensino. Os direitos humanos foram inseridos muito recentemente na grade curricular das escolas de Direito e, com isso, temos, especialmente para pessoas que têm formação jurídica mais antiga, uma deficiência de base. Essas pessoas entendem que o que vale é a lei. Não fazem uma leitura constitucional da legislação.
Parece coisa antiga, mas quando me formei em Direito, isso em 2004, era considerado uma novidade você falar em Direito Civil Constitucional, Direito Penal Constitucional etc. Ou seja, a leitura do Direito Penal, do Direito Civil à luz da Constituição era visto como uma novidade. Hoje, tranquilamente já se faz a leitura do Direito Civil, Penal, à luz da Constituição e não o contrário. Mas em relação aos povos indígenas as pessoas continuam fazendo isso. Continuam lendo o Estatuto do Índio como se fosse algo dissociado da Constituição, não o lendo à luz da Constituição. Portanto, ainda temos muitas dificuldades.
É importante mostrarmos os avanços e esses avanços vêm igualmente por parte do Judiciário, é importante ser honesto em relação a isso. É elogiável a edição, pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ, da Resolução 287. Igualmente importante é a Resolução 13 do Departamento Penitenciário Nacional - Depen. Ambas são resoluções que fazem uma leitura constitucional, à luz das normas internacionais, com relação à legislação penal.
Mas vocês podem me questionar: você não disse que o sistema de Justiça é um sistema que reproduz essa visão da sociedade? Sim, são as contradições inerentes a qualquer sociedade.
IHU – O senhor está dizendo que há duas coisas: o avanço da lei e a interpretação, a cabeça das pessoas, que ainda opera de outra forma no uso e acionamento das leis?
Marco Antonio Delfino – Sim, é isso. É um processo em que esperamos que avance e obviamente vai avançar com os próprios indígenas participando desse processo. Tal como nos Estados Unidos e em outros locais, a intenção é que cada vez mais os indígenas participem dessas batalhas para que essas não sejam batalhas das ONGs ou do Ministério Público, mas dos próprios indígenas.
Eu me recordo que na década de 1960, 1970, se tinha algo em torno de 40 advogados indígenas nos Estados Unidos e hoje são mais de três mil. Hoje, efetivamente, nos Estados Unidos os indígenas levam as suas batalhas e, muito provavelmente, a gente deve ter esse quadro também no Brasil. Nós já tivemos esse exemplo na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 709, que é um marco porque temos a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil - Apib indo ao Supremo, tendo reconhecido o seu Direito que também está previsto no art. 232 da Constituição. Esse artigo trata da representação dos povos indígenas em juízo, mesmo sem a devida formalização. Este reconhecimento e a conseguinte sustentação extremamente fundamentada são eventos históricos.
Tem um livro do professor Marés, Renascer dos Povos Indígenas para o Direito (Juruá Editora, 1998), e, para mim, o renascer dos povos indígenas para o Direito aconteceu com a ADPF 709, porque não foi um renascimento teórico, mas sim um renascimento prático com os povos indígenas em juízo efetivamente demandando seus direitos. Há outro livro, Garabombo, o invisível, de Manuel Scorza (Civilização Brasileira, 1977), que mostra a luta dos povos indígenas no Peru. O interessante desse Garabombo, ao lado das pitadas de realismo fantástico que o descrevem como uma pessoa invisível, é a crítica social. Ele se sente invisível porque “eu fico na porta da administração e as pessoas passam e não me veem. Realmente nós somos invisíveis porque eu falo com o administrador e ele não me vê, não fala comigo”.
Durante muito tempo, as comunidades indígenas foram tratadas pelo Estado brasileiro dessa forma, como pessoas totalmente invisíveis, que ficavam lá e não tinham qualquer tipo de atenção por parte do Estado. E a ADPF 709 é um marco para mostrar que os povos indígenas estão ali e que efetivamente não são invisíveis e que, consequentemente, podem e devem defender seus direitos.
IHU – Várias situações que os povos indígenas têm vivido no Brasil de hoje estão sendo levadas a cortes internacionais. Quais são as chances de o Estado brasileiro sofrer sanções e penalidades por essas situações?
Marco Antonio Delfino – É importante, mais uma vez, colocarmos os aspectos históricos. No início da década de 1970, tivemos no Brasil uma missão da Cruz Vermelha Internacional. Nessa época, se teve por parte de inúmeros antropólogos denúncias relacionadas a práticas de genocídio. Isso teve repercussão internacional e o governo federal na época, o governo militar, aceitou que houvesse a visita de uma comitiva da Cruz Vermelha, obviamente monitorada pelo governo. Mas, de qualquer forma, a Cruz Vermelha caminhou na mesma direção das declarações anteriores ao apontar que o projeto de governo que estava em curso, um projeto desenvolvimentista, iria impactar de forma extremamente grave os povos indígenas, e foi o que ocorreu. Se pegarmos o livro Os Fuzis e as Flechas, de Rubens Valente (Companhia das Letras, 2017), vamos ver toda uma série de práticas genocidas que ocorreram.
Efetivamente muitas dessas práticas que ocorreram lá atrás foram hoje alvo de responsabilização. São os casos do Reformatório Krenak, dos Waimiri-Atroari (que é uma ação judicial), dos Xavante de Marãiwatsédé. O caso dos Panarás, que é uma remoção que as pessoas acham linda e maravilhosa, uma vez que foi retratada no filme Xingu como uma medida heroica de proteção, é, efetivamente, uma remoção forçada. Posteriormente representou a primeira condenação brasileira ainda pelo Instituto Socioambiental - ISA, na década de 1990, por remoção forçada. Então, foram condenações que poderiam ter sido levadas às cortes internacionais se não houvesse tido por parte do sistema de Justiça brasileiro o seu atendimento.
A ideia do sistema internacional é de uma relação complementar, só é acionado se efetivamente eu não tenho uma resposta no plano interno. Assim, se não tivermos do ponto de vista do sistema de justiça nacional uma resposta interna em relação a essas violações, é totalmente possível e viável que nós tenhamos responsabilizações internacionais. O caso que vejo com mais possibilidade é o dos Yanomami. Recentemente houve relatos de que o Exército brasileiro não estaria colaborando, as notícias de jornais apontam que toda uma estratégia de apoio logístico para a retirada de garimpeiros não teria sido fornecida e isso é algo extremamente grave. No caso dos Yanomami já se tem uma cautelar da década de 1980 estabelecendo a retirada de garimpeiros, tem outra cautelar de agora, praticamente 30 anos depois, no mesmo sentido e se tem uma decisão da Suprema Corte brasileira.
E aí tem uma questão preocupante, porque quando isso foi levado à ADPF 709, foi referido que a resposta, embora eu não tenha visto, era de que o Supremo não teria ingerência sobre o Exército, que não poderia determinar que o Exército executasse o apoio. Isso representa o quê? Que as instâncias locais se esgotaram e aí se abre a via internacional. E a via internacional que teríamos é da busca pelo julgamento de uma série de graves violações sendo praticadas e órgãos estatais, que deveriam promover essa repressão, se omitindo.
A partir do momento que tenho uma quantidade gigantesca de garimpeiros dentro da terra indígena Yanomami, se há uma decisão judicial determinando sua retirada e esses garimpeiros vierem de alguma forma promover qualquer tipo de ataque – apesar de a própria permanência deles já ser um absurdo –, o Estado pode ser responsabilizado. Veja, eu posso ter a minha atividade legitimada por ação ou por omissão do Estado, e se ele se omite pode estar referendando a atividade desses garimpeiros nessas terras. Com isso, se abre essa via internacional de forma muito clara, com a possibilidade de responsabilização.
Se formos olhar Ruanda ou Sérvia, veremos que ali há jurisprudência de forma muito clara, inclusive com a responsabilização de militares pelas ações. Por isso disse que nesse caso dos Yanomami há elementos muito caracterizados. A Organização das Nações Unidas - ONU tem uma regulação acerca de possibilidades de risco de crimes de atrocidades. Essa ferramenta fala que a presença dos fatores de risco não indica que haverá uma prática de crime de atrocidade, mas nunca houve esse tipo de crime sem que esses fatores de risco estivessem presentes.
Assim, essa ferramenta é um instrumento extremamente relevante para que possamos colocar como argumento. E um desses fatores de risco é a deficiência das estruturas de Estado, que afetam as circunstâncias do Estado em prevenir ou paralisar o crime de atrocidade. E um fator é a falta de controle civil sobre as forças de segurança. Então, a partir do momento em que as forças armadas passam a ter entendimentos próprios, conforme as notícias relatam, me parece que está claramente colocado aqui como fator de risco.
Outro ponto fala em recursos insuficientes para implementar medidas destinadas a proteger a população. E aí nem se precisa entrar no aspecto se há ou não intenção do Exército ou das Forças Armadas de colaborar ou de cumprir a decisão. Vamos para o resultado. As medidas que o Estado realizou foram suficientes para proteger o povo Yanomami? Não foram, pois os garimpeiros continuam lá. Isso mostra uma deficiência da estrutura estatal e é um fator de risco especificado para cometimento de crimes de atrocidade. Ou seja, o fator está ali. Se vai acontecer um crime, não sabemos. Esperamos que não. Mas o fator está ali presente. Por isso, penso que exista, seja no caso do Tribunal de Haia ou Tribunal Penal Internacional - TPI, a possibilidade de responsabilização.
Temos, inclusive, um caso bem interessante. Tivemos em 2000 a condenação de [Augusto] Pinochet e, posteriormente agora, um tribunal italiano acaba de condenar uruguaios e argentinos pela morte de cidadãos italianos na época da repressão. Há até mesmo um brasileiro e cuja decisão deve sair em outubro. Hoje, o mundo virou um espaço pequeno para violadores de Direitos Humanos.