26 Fevereiro 2019
Em artigo inédito, integrantes do Ministério Público Federal alertam contra retrocessos nos direitos territoriais e risco de genocídio.
O texto é de Helena Plaquimist, assessora de comunicação do MPF/PA, publicado por CIMI, 25-02-2019.
“Reminiscências tutelares: a MP 870 e seu projeto inconstitucional para os povos indígenas” é o título do documento assinado por quatro procuradores da República e dois assessores do Ministério Público Federal (MPF), em que analisam as mudanças feitas pelo governo federal na política indigenista, na organização da Fundação Nacional do Índio (Funai) e na demarcação de terras indígenas. O texto é uma contribuição ao debate jurídico, político e antropológico que precisa ser feito pela sociedade brasileira e, sobretudo, pelos povos indígenas, sobre a guinada profunda apontada pelo novo governo do país no que diz respeito aos direitos indígenas.
O exame apresentado no texto aponta que as medidas violam a Constituição brasileira, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e promovem o retorno a práticas da ditadura militar e do período colonial que provocaram genocídio de povos em todo o território nacional. Para os autores, em vez de mera reorganização administrativa, a MP nº 870/2019, que foi o primeiro ato do governo após a posse, apresenta indicações claras de revisitação do projeto tutelar para os povos indígenas, um retorno à política indigenista que foi encerrada pela Constituição de 1988, com o objetivo de esvaziar e enfraquecer direitos que são assegurados pelo ordenamento jurídico em vigor.
A noção jurídica de tutela se liga a ideias de proteção ou assistência, partindo no entanto de uma premissa central: a incapacidade de quem se pretende proteger. O paradigma tutelar para os povos indígenas é, portanto, indissociável de um projeto de assimilação que objetiva o desaparecimento desses povos pela sua “inserção” na sociedade nacional. É um entendimento que deriva das discussões coloniais sobre a animalidade ou humanidade dos indígenas, atravessa as doutrinas positivistas de que os povos estariam em um estado primitivo, atrasado em relação à sociedade brasileira e que, portanto, precisariam evoluir e se integrar – o que resultou em violências extremas e o extermínio de incontáveis comunidades. A esse paradigma, sustentam os autores, a política indigenista corre o risco de retornar se forem admitidas as mudanças recentes.
O trabalho de análise explica que o artigo 231 da Constituição de 1988, sobre os direitos indígenas, ressignificou o papel da Funai, por assegurar aos povos indígenas o direito a suas terras tradicionalmente ocupadas e também o direito de viver seus modos de vida como quiserem, sem interferência. A partir disso, a autarquia deixou de exercer o poder de tutela sobre os índios, que vigorava durante a colonização e até a ditadura militar, passando a ser responsável por assegurar o exercício da autonomia e por efetivar os direitos territoriais. A Constituição é o marco da superação definitiva das pretensões de superioridade da sociedade envolvente e do poder tutelar do Estado brasileiro para assimilação e desaparecimento dos povos originários.
Portanto, diz o artigo, transformações da natureza e alcance na política indigenista como as promovidas pela MP 870/2019 não apenas fogem à competência do executivo; violam diretamente o núcleo central dos direitos indígenas previstos pelo texto constitucional. Desta forma, mesmo se aprovadas pelo legislativo, o que não ocorreu nesse caso, as mudanças seriam obrigatoriamente nulas. O rearranjo promovido pelo novo governo já está sendo questionado no Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6062, apresentada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). O relator será o ministro Roberto Barroso.
As normas estabelecidas pelo governo, sustentam, desrespeitaram também o direito que os povos indígenas têm à consulta prévia, livre e informada, conforme prevista na Convenção 169 da OIT. A Convenção é um instrumento crucial para garantia dos direitos indígenas, vale como lei no Brasil desde 2003 e prevê a inclusão dos povos no processo de tomada de decisões, sendo aplicada para qualquer medida administrativa ou legislativa que os afete.
Qualquer medida que importe em redução radical da proteção aos povos indígenas, segundo a análise apresentada, tem evidente potencial de acarretar prejuízos irreversíveis a essas comunidades. Para os procuradores da República e assessores do MPF que se debruçaram sobre as mudanças na política indigenista, elas representam também uma ameaça a obrigações internacionais do Brasil, como a prevenção do genocídio, prevista em Convenção da Organização das Nações Unidas de 1948 e em lei federal desde 1952.
No campo dos estudos de genocídio, alerta o texto, já está estabelecido que não se trata de um conceito que possa ser confundido com extermínio em massa. Trata-se na verdade de um processo de violências e violações com a intenção de destruir grupos étnicos, o que também pode ser alcançado pela via da assimilação. As violências podem se dar tanto no plano material quanto no imaterial e, no caso dos povos indígenas brasileiros, isso sempre inclui a desterritorialização, a negação de direitos territoriais e invasões de territórios. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, da qual o Brasil é signatário, reconhece o direito dos indígenas de não sofrer assimilação forçada nem a destruição de sua cultura.
O artigo coleciona uma série de declarações públicas das autoridades do governo brasileiro que demonstram a intenção de esvaziar os direitos constitucionais alcançados pelos povos indígenas na carta de 1988, para exemplificar o substrato tutelar e integracionista de onde partiram as mudanças operadas pela MP 870/2019.
No dia 5 de novembro de 2018, já como presidente eleito, Jair Bolsonaro declarou, em entrevista ao Programa Brasil Urgente: “No que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena”.
No dia 14 de novembro de 2018, o presidente eleito declarou: “Se não tivesse problemas ambientais e indigenistas, tinha tudo para ser Estado mais rico do Brasil [Roraima]. Esse é um problema que temos que resolver. O índio quer ser o que nós somos, o índio quer o que nós queremos. Se temos na Bolívia um presidente índio, por que aqui o índio tem que ficar confinado numa reserva?”.
No dia 2 de janeiro de 2019, o presidente Jair Bolsonaro publicou em sua conta do twitter: “Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas (sic). Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares, isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs. Vamos juntos integrar a estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros”.
No dia 2 de janeiro de 2019, o General Augusto Heleno, Ministro do Gabinete de Segurança Institucional do atual governo, em entrevista à Globo News, afirmou: “Se esses índios tiverem protegidos pela Funai. Isso é uma mentira, porque a Funai não faz com que esse índio se sinta um cidadão brasileiro. E a demarcação de terras que aconteceu no Brasil, muitas dela, foram em cima de laudos fraudulentos (sic). A maior parte demarcada em cima de terra da fronteira, riquíssimas em minério (sic)”.
Em 4 de janeiro de 2019, Luiz Nabhan Garcia, Secretário Especial de Assuntos Fundiários – órgão do Ministério da Agricultura incumbido da demarcação de terras indígenas pelo Decreto nº. 9.667/2019 – afirmou ao jornal O Globo que o governo pretende rever terras indígenas demarcadas: “O departamento jurídico que vai determinar, a própria AGU, se houver uma falha grave, uma fraude processual, um laudo que foi falsificado. Com constatação de falsificação, pode-se anular qualquer processo. Tem centenas de processos em andamento. É uma coisa muito grande. As decisões judiciais precisam ser respeitadas, mas é preciso convencer os juízes, seja na primeira instância ou na Corte Suprema, a rever uma decisão que foi equivocada. Se não houve decisão judicial, a demarcação pode ser revista de cara pelo próprio Executivo, não precisa nem passar pelo crivo judicial, caso se constate um erro inadmissível”.
A Medida Provisória 870/2019, publicada em edição especial do Diário Oficial da União no primeiro dia do novo governo, transferiu do Ministério da Justiça para o Ministério da Agricultura a competência para identificar, delimitar, demarcar e registrar as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas e transferiu a Funai para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Outros dois decretos complementares à MP, o 9.667/2019 e o 9.673/2019, publicados no dia 2 de janeiro, criaram uma divisão de identificação, demarcação e licenciamento, ligada à Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, onde, por esse modelo, passarão a tramitar as demarcações de terras e as manifestações sobre obras com impactos em povos indígenas; e transferiram a Funai para o Ministério da Mulher.
Para os signatários do artigo, as medidas do novo governo: retiraram a competência de identificação e delimitação da Funai, ente que detém capacidade institucional e técnica para tanto; indicam a atribuição a um Conselho Interministerial a competência para decidir sobre demarcação de terras indígenas, ressuscitando o malsucedido “Grupão” instituído durante a ditadura militar, que provocou uma politização indevida e resultou na paralisação das demarcações; conferem a um órgão colegiado (Conselho Interministerial) a competência para expedir ato administrativo de natureza essencialmente vinculada, politizando indevidamente a demarcação de terras indígenas; foram gestadas unilateralmente pelo governo, notadamente pelo setor agropecuário, à revelia da participação dos servidores da Funai e do Ministério da Justiça; foram implementadas, sem que tenham sido objeto de consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas do Brasil, nos termos da Convenção nº 169 da OIT.
Clique aqui para conferir a íntegra do artigo.
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Terras indígenas: mudanças do novo governo esvaziam direitos constitucionais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU