Nessa quarta (7), lideranças indígenas de 21 povos que estão em Brasília protocolaram documentos no gabinete dos ministros e realizaram audiência com a Ministra Cármen Lúcia.
A reportagem é de Adi Spezia, publicada por Cimi, 08-12-2022.
Na semana em que marca o “Dia do Judiciário” – 8 de dezembro –, lideranças indígenas de 21 povos, presentes em Brasília, pedem ao Supremo Tribunal Federal (STF) que retome o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que trata das demarcações de terras indígenas e teve repercussão geral reconhecida pela Corte. O caso discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina, porém a decisão desse julgamento terá consequências para todos os povos indígenas do Brasil.
Adiado pela terceira vez em junho deste ano, o julgamento envolve duas teses principais que se encontram em disputa: de um lado, a “tese do marco temporal” pretende restringir as demarcações de terras indígenas apenas àquelas áreas que estivessem sob a posse comprovada dos povos originários em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal de 1988. Do outro lado, a “tese do indigenato”, que reconhece os direitos indígenas como originários, ou seja, anteriores ao próprio Estado.
Nessa quarta-feira (7), lideranças indígenas protocolaram junto ao gabinete dos ministros do STF uma carta onde pedem à Corte que retome o julgamento e garanta seus direitos originários. No documento, os indígenas também reafirmam o posicionamento contrário ao marco temporal. Além da entrega da carta, foi realizada uma audiência com a ministra Cármen Lúcia, a quem reforçaram o pedido e relataram o aumento da violência nos territórios.
Na oportunidade, o cacique-geral Tucum Xokleng, da Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, que está no centro da disputa do Recurso Extraordinário, destacou que a tese do marco temporal quer passar uma borracha em todas as violências impostas aos povos indígenas, que resultaram na expulsão de seus territórios e os impedem, até hoje, de estarem sob a posse de suas terras tradicionais.
“Meu povo foi caçado e massacrado pelos chamados bugreiros. Quanto mais violentos, mais famosos eram os chamados bugueiros”, conta o cacique Xokleng. Que ainda destaca “o marco temporal reforça uma violência histórica, que até hoje deixa marcas. Mas, mesmo assim, o povo Xokleng segue resistindo e aguarda o resultado do julgamento que definirá o futuro de todas as terras indígenas no país”, argumenta Tucum Xokleng.
As demais lideranças indígenas, presentes na audiência, seguiram na mesma toada do cacique Xokleng.
Delegações, de 21 povos – do Acre, Goiás, Tocantins e Santa Catarina -, e representantes do Cimi são recebidos pela ministra do STF Cármen Lúcia | Foto: Adi Spezia/Cimi
“Estamos desesperados cobrando dos órgãos competentes a demarcação dos nossos territórios tradicionais, não estamos pedindo esmolas, estamos pedindo o que é nosso por direito como cidadãos brasileiros que somos”, aponta Lucila Nawa, liderança e professora indígena no Acre. Nossas vidas e territórios estão nas mãos de vocês, nossos anciões já se foram e a terra não foi demarcada. Como ficamos? Como ficam nossos filhos?”, indaga Lucila.
Sem seus territórios tradicionais demarcados, os indígenas contam que não estão tendo acesso à água tratada, saúde e educação. Além disso, Chiquinho Arara, cacique-geral do povo Apolima-Arara, aponta o temor de um genocídio dos povos originários: “se o marco temporal for aprovado, seremos exterminados. É um processo que está na Justiça, que se o Xokleng perder, todos os povos indígenas perderão seus territórios”. Para onde ir com suas famílias, qual será a situação e como ficarão, são questões que afligem os Arara. “Hoje estamos com nossos territórios sendo invadidos e destruídos por madeireiros, grileiros, garimpeiros, nossas lideranças sendo assassinadas”, denuncia o cacique Chiquinho.
O julgamento do RE 1.017.365, pelo STF, é de fundamental importância para salvaguardar os direitos territoriais dos povos indígenas no Brasil. “Hoje os kupen [os não indígenas] estão invadindo nossos territórios, os demarcados e ainda mais os não demarcados. Não queremos esse marco temporal, nossos anciões falam que esse marco temporal não é a solução. Vamos perder nossa terra, os remédios, comidas, nossa cultura e nossas vidas”, conta o cacique Alberto Hapyhi Krahô, do Tocantins.
A insegurança causada pela demora no julgamento tem gerado apreensão não apenas para com a vida dos povos, mas de toda humanidade, conta Elza Namnadi Xerente. “Sem o território não tem como criar nossos filhos, não tem o Bem-Viver. Porque a natureza sempre responde, reage. Olha o que foi Brumadinho. Nós ouvimos as ‘zueiras’ do rio, da floresta. E não é só a vida do ser humano, é de todo mundo, de toda humanidade que está em perigo”, alerta a cacique Xerente.
A delegação que está em Brasília nesta semana, é composta por mais de 80 lideranças, dos povos: Jaminawa, Apurinã, Kanamari, Nawa, Nukini, Manchineri, Kuntanawa, Sharanawa, Shanenawa, Apolima-Arara, Huni Kuin, Jamamadi, Apinajé, Karaja, Krahô, Xerente, Krahô Kanela, Kanela do Tocantins, Takaywrá, Tapuia e Xokleng. No entanto, uma representação desses 21 povos, – de quatro estados: Acre, Santa Catarina, Goiás e Tocantins – que compõe a delegação, foi elencada para a audiência com a ministra Cármen Lúcia, e o protocolo dos documentos junto aos gabinetes dos ministros da Suprema Corte.
Os indígenas estão na capital federal durante esta semana, 5 a 10 de dezembro, para uma série de incidências juntos aos órgãos públicos. Na pauta, estão a demarcação dos territórios, a retomada d julgamento que irá definir o futuro de todas as terras indígenas no Brasil e a garantia de seus direitos tradicionais.
Na avaliação do secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, a presença dos indígenas na capital federal marca a resistência dos povos originários. Os indígenas irem até o Supremo e “solicitar a retomada do julgamento do Recurso Extraordinário e reafirmar a posição contrária ao marco temporal, reforça a importância que esse julgamento tem para a vida dos povos e para a garantia de seus direitos originários”, lista Eduardo.
O Instituto da Tutela do Estado foi superado pela Constituição Federal de 1988, quando passa a ser garantido aos povos originários o direito de acessar as instâncias do poder judiciário de forma justa – ou pelo menos de forma equitativa com a população dominante, além de outros direitos listados nos artigos 231 e 232 da Constituição.
Quase 35 anos após a promulgação da Constituição, o acesso ao poder judiciário ainda é difícil para as comunidades tradicionais, “mesmo havendo o reconhecimento constitucional de sua autonomia e autodeterminação há tanto tempo, a aplicação prática ainda esbarra em disputa de interesses, no qual os fazendeiros possuem maior influência, assim como um racismo sistêmico contra a população indígena, tornando cotidiano até mesmo o uso de lei inconstitucional por ministros da mais alta corte do país”, destaca Nícolas Nascimento, advogado e assessor jurídico do Cimi.
Mesmo diante das injustiças, há avanços fruto da luta e organização dos povos originários, em relação à matéria. Decisões do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) têm sido importantes para a mudança da cultura jurídica da tutela jurisdicional.
Nícolas destaca ser “necessário compreender que o acesso ao Poder Judiciário pelos povos indígenas ainda está longe de seu desfecho e de sua ideal aplicação na prática do dia a dia forense brasileiro”, mas que a trajetória histórica do tema mostra que, “mesmo que a passos bem lentos e sob empurrões do movimento indígena, o Poder Judiciário avança para o reconhecimento dos povos indígenas enquanto sujeitos de direitos autônomos e capazes, assim como a real eficácia dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal”, finaliza o advogado.