04 Dezembro 2025
A filósofa Carolin Emcke refletiu bastante sobre o ódio e viu, em primeira fonte, suas consequências. Entre 1998 e 2006, trabalhou para a revista alemã Der Spiegel, fazendo reportagens em zonas de conflito como Afeganistão, Colômbia, Gaza e Iraque. Também escreveu sobre assuntos internacionais para o jornal Die Zeit, incluindo Israel, Cisjordânia, Paquistão e Haiti, entre outros países.
Definida como uma das intelectuais europeias mais interessantes de sua geração, em seu livro Contra o ódio, aborda com profundidade a disseminação dessa emoção intoxicante, mas eficaz para conquistar votos. “Não quero que o novo prazer de odiar livremente seja normalizado”, escreve.
Vencedora de vários prêmios, entre eles, o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão e o Prêmio Merck da Academia Alemã de Língua, Emcke esteve no Chile graças ao Festival Puerto de Ideas, a Universidade Andrés Bello e o Goethe-Institut. Depois de sua palestra em Valparaíso, conversou com o jornal La Tercera.
A entrevista é de Paula Escobar, publicada por La Tercera, 22-11-2025. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Por que depois de tudo o que aconteceu no século XX, com conflitos e guerras - alguns dos quais você cobriu -, as pessoas não encontraram nenhum tipo de barreira que as protegesse de políticas baseadas no ódio e no ressentimento?
Eu estaria mentindo se dissesse que não é uma pergunta difícil, então, ofereço apenas possíveis respostas. A primeira é que, particularmente no Chile, mas também em outros países, a memória do passado está sendo lentamente apagada, ou nunca foi considerada uma tarefa democrática importante. E penso que é possível diferenciar as democracias da América Latina, da Europa e de outros lugares, pela forma como realmente querem enfrentar seu próprio passado violento. Ou se simplesmente querem transitar para algo diferente e preferem esquecer.
Então, quando buscamos respostas para o porquê as pessoas hoje, em nossos tempos, caem nesse discurso de ódio e ressentimento, penso que um aspecto da resposta está em que o compromisso democrático com uma cultura da memória, diria que particularmente no Chile, não foi forte o suficiente. Tinham medo, sentiam-se ameaçadas, acredito. Isto é algo que a sociedade chilena ainda precisa, mesmo que não reconheça. Penso que a segunda resposta é que, em geral, em muitas sociedades ocidentais existe uma sensação de esgotamento, uma sensação de solidão, particularmente após a Covid, que realmente ainda não encontramos a maneira de abordar.
Como isso se relaciona com o ódio?
Após a Covid, todos queriam seguir em frente e, no entanto, ainda vemos as consequências psíquicas, emocionais e sociais da Covid em nossa sociedade. Há uma sensação de solidão que nenhum partido, de esquerda ou de direita, de fato, aborda. A sensação de impotência, de abandono, de solidão, de esgotamento, como eu disse, está sendo explorada por esse discurso sobre segurança, sobre criminalidade, sobre migrantes etc. Depende do país que se observa. Aqui, no Chile, concentra-se muito na segurança, na violência. É também um discurso racista direcionado aos migrantes. E penso que a terceira explicação está em que esses discursos políticos (de ódio) são meras máscaras retóricas.
Em que sentido?
Ocultam seu vazio. Penso que ocultam o fato de que realmente não têm respostas para as perguntas. E não estou dizendo que a segurança não seja um problema: é. Não estou dizendo que a delinquência não seja um problema: talvez haja exagero, se comparo os números da delinquência no Chile. Então, eu diria que o discurso de ódio sempre mascara sua própria brutalidade.
Quando observo o discurso no Chile sobre como resolver os problemas da delinquência, é como se quisessem competir entre si em brutalidade; uma competição para ver quem consegue fazer o que soa mais radical. Então, de certa forma, isso levanta a sensação de impotência das pessoas, mas não resolve nada. E, enquanto isso, transformará nossas democracias em autoritarismo.
Como você disse, o ódio é um sentimento intoxicante. A esfera pública atual carece de racionalidade e transborda emoção, sobretudo negativa. Qual é consequência de qual?
A resposta é: ambas. Por um lado, evidentemente, contamos com tecnologias e redes sociais estruturadas e organizadas por algoritmos com uma lógica inerente de escalada. Assim, nossas esferas públicas estão cada vez mais organizadas, se observarmos as redes sociais, a partir desta lógica de escalar. Aqueles que odeiam, aqueles que fomentam o ódio, ascendem. Essa é uma razão estrutural.
A outra, acredito, é que se observarmos os formatos de televisão chilenos, argentinos, estadunidenses ou alemães, vemos que organizam as discussões cada vez mais em torno de posições a favor e contra. Estruturam nosso discurso como se, para qualquer pergunta, existisse apenas dois polos de respostas possíveis. E assim, sugere-se que não existe a verdade, apenas opiniões. E é possível ter uma opinião a favor e outra contra, mas não é assim. Existem certos fatos que não permitem uma posição a favor ou contra. Há aspectos da ciência natural que não permitem isto. Não se pode debater se a Terra é plana ou não. É um absurdo.
Dirão que o debate livre fica limitado, quando certas vozes como essas não são permitidas.
Olha, eu sou universalista de coração. Acredito nos direitos humanos universais. Acredito em argumentos racionais e universais para todos, mas, às vezes, a neutralidade tem sido usada para normalizar posições que são irracionais e inaceitáveis. E a democracia não pode existir sem um conceito de verdade. Se renunciarmos a que certas coisas são simplesmente verdadeiras ou falsas, e se renunciarmos à distinção entre o certo e o errado, penso que estamos perdidos.
Qual é a sua opinião sobre a esquerda e os liberais, e quais erros cometeram para que a classe trabalhadora, que costumava votar na esquerda, agora vote na extrema direita? Você considera que o chamado “wokismo” é a raiz deste fenômeno?
Não. Penso que a esquerda, os progressistas e os liberais não deveriam cometer o erro de internalizar uma imagem distorcida de si mesmos proveniente da direita. Portanto, não considero que a esquerda deva, agora, culpar a si mesma porque a direita, a extrema direita, os autoritários, ou como queiram chamá-los, ou os libertários, estão vencendo em muitos países. Então, parem de se culpar, essa é a primeira coisa.
Em segundo lugar, penso que não existe essa suposta contradição entre aqueles que se preocupam com questões sociais e econômicas, e querem que elas sejam abordadas – refiro-me aos preços da moradia, à inflação, ao sistema educacional, ao salário-mínimo, à segurança -, e aqueles que querem que as questões de direitos humanos e civis sejam contempladas. Não existe tal contradição.
E não considero que uma questão seja mais importante que a outra. Se você considera que a pobreza é apenas uma questão econômica e não também um estigma social, não interpreta bem a pobreza. Se você considera que o racismo e a transfobia são apenas uma questão cultural e não também uma questão econômica, uma questão de discriminação econômica, você se equivoca. Portanto, penso que esses dois polos dentro da esquerda, que sempre dão a impressão de que só é possível ter discursos sobre redistribuição econômica ou sobre questões de reconhecimento, não são úteis.
Do seu ponto de vista, o que seria útil considerar?
Também diria que não acredito que o que vemos agora seja apenas um problema de fragilidade da esquerda progressista liberal. Eu diria que o que estamos vendo agora é uma fragilidade dos partidos conservadores de direita tradicionais. O que eu realmente gostaria de ver são conservadores sérios.
O que você quer dizer com isso?
Quero pessoas que não finjam ser cristãs e que, ao mesmo tempo, são absolutamente brutais com os vulneráveis da sociedade. E se analisarmos as questões mais urgentes do momento, provavelmente vamos concordar que são a inteligência artificial, as mudanças climáticas e, no Chile, provavelmente, também a educação, a saúde (saúde pública) e o autoritarismo. Então, se analisarmos essas questões, penso que um partido verdadeiramente conservador, sim, tocaria nelas. Inclusive, poderia elaborar um programa conservador para responder a essas questões!
Por exemplo?
Penso que a mudança climática tem a ver com a proteção do que nos foi dado, o que Deus criou, se falo nos termos deles. Todas as questões levantadas pela inteligência artificial são temas que devem preocupar os conservadores. A mesma coisa acontece com a educação. Portanto, digo isto: é um equívoco interpretar nossa época somente como um sinal de fragilidade liberal, social-democrata ou da esquerda radical.
E é assim que costuma ser interpretada.
Sim, é assim que tem sido interpretada… E eu não considero que esse seja o ponto. Não acredito que seja uma questão de esquerda e direita; é uma questão de democracia. Trata-se de direitos humanos universais. E penso que se trata de Estado de Direito. Aceitamos que existe um Estado de Direito e direitos humanos para todos ou não?
Então, voltando ao início da sua pergunta, eu diria aos liberais ou à esquerda: vocês devem ser apaixonados pelo seu trabalho político. Se temem ser mal interpretados como woke ou se temem ser apresentados como elitistas ou cosmopolitas, estão acabados. E se a direita radical tem uma vantagem, eu diria que está em que não temem nada. Não temem nada a respeito de sua própria agenda. E penso que estão completamente na ofensiva com sua visão utópica da sociedade. A esquerda precisa dar um passo à frente.
Mas você não considera que, por um tempo, quando as redes sociais estavam no auge, a chamada cultura do cancelamento, associada à esquerda, de alguma forma legitimou o método de fazer bullying com as pessoas, não com as ideias, que agora é mais utilizado pela direita radical?
Quero ser clara: eu não acredito que fazer bullying com as pessoas seja útil. Veja, eu sou queer, e o que realmente me torna queer é que detesto o bullying. Penso que isto está na essência queer. Não queremos o assédio. Por isso, oponho-me a qualquer forma disso. No entanto, devo dizer que aquilo que agora se chama de cultura do cancelamento da esquerda, para sermos justos, costuma vir de baixo e não de cima.
Muitas vezes, eram pessoas marginalizadas que tentavam mostrar como eram excluídas. Então, acredito que devemos ser justos e levar isso em consideração. Mas, ao mesmo tempo, penso que a crítica deve sempre ser direcionada a posições, frases, práticas, declarações, mas não contra uma pessoa; não quero demonizar indivíduos.
O que acontece quando alguns líderes de esquerda no Chile, por exemplo, do Partido Comunista, não criticam o que está acontecendo na Venezuela, Nicarágua e Cuba, onde há violações dos direitos humanos e ditaduras? Por acaso, isto não mina a crítica à ultradireita?
Por um lado, eu diria: se ressaltar as ditaduras de esquerda serve apenas para desviar a atenção dos problemas reais na direita, isso me inquieta um pouco. Penso que se for o caso de haver um debate sério, e estivermos realmente falando de violações dos direitos humanos, então, podemos falar delas em todo o mundo e criticá-las onde quer que surjam. E isso inclui, claro, o desprezo à democracia, as violações brutais dos direitos humanos e a repressão à dissidência na Venezuela e em Cuba.
Contudo, parece-me que frequentemente se desvia do problema apontando o dedo para outro lugar, e isso me desagrada. Meu padrinho foi assassinado por um grupo terrorista de esquerda. Claramente, não sou o tipo de pessoa que relativiza a violência que existiu na Alemanha, a do grupo Baader-Meinhof, nem para relativizar ou negar uma tendência à violência na esquerda. Não tenho nenhum tipo de tendência a minimizar as falhas da esquerda.
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