Os socialistas devem ir além da redistribuição. Artigo de Daniel Zamora

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03 Dezembro 2025

“Como consumidores, os cidadãos podem se rebelar contra o aumento de impostos ou preços, mas, como produtores, abandonamos em grande parte qualquer ambição de agir coletivamente sobre o que e como produzimos. No fim da história, o último homem é, acima de tudo, um consumidor”. A reflexão é de Daniel Zamora, em artigo publicado por Jacobin e reproduzido por Rebelión, 02-12-2025. A tradução é do Cepat.

Daniel Zamora é sociólogo pós-doutor pela Universidade Livre de Bruxelas e Universidade de Cambridge. Seu livro, Le Dernier Homme Et La Fin De La Révolution: Foucault après Mai 68 (O último homem e o fim da revolução: Foucault depois de Maio de 68), escrito em coautoria com Mitchell Dean, foi publicado em inglês pela Verso em 2020.

Eis o artigo.

Em abril de 1947, o arquiteto Percival Goodman e seu irmão, o crítico social Paul Goodman, publicaram o que se tornaria um clássico do urbanismo: Communitas: Means of Livelihood and Ways of Life (Comunitas: meios de subsistência e modos de vida). Ao explorar as formas que as cidades assumiram e como foram concebidas ao longo dos séculos, os autores argumentaram que no urbanismo está em jogo muito mais do que a funcionalidade técnica.

As cidades sempre expressam os valores morais e culturais de seus habitantes. A maneira como “os homens trabalham e fazem as coisas”, acrescentavam, é crucial para determinar “como vivem”. O objetivo de Comunitas era, pois, tentar imaginar a cidade a partir da perspectiva da “relação entre os meios de subsistência e os modos de vida”. Para explorar essa relação, os irmãos Goodman imaginaram diferentes paradigmas comunitários que consideravam as “escolhas de valor” como “programas e planos alternativos” ou diferentes maneiras de definir as necessidades humanas e o propósito social.

O primeiro desses paradigmas era uma cidade organizada em torno das “premissas da economia oficial” – uma “metrópole como um grande armazém” onde tudo é organizado “de acordo com os atos de compra e consumo”. Nesse modelo, o centro da cidade e da vida social é um gigantesco shopping center climatizado. Lá dentro, acontece uma “feira permanente”, e em cada corredor são exibidos todos os produtos “que fazem valer a pena levantar da cama de manhã para ir trabalhar”. Nos arredores do shopping, hotéis e restaurantes formam um anel onde os clientes podem comer e descansar.

Numa sociedade assim, tudo está à serviço da circulação de mercadorias. Como apontavam os autores, “a poesia e a pintura são vantajosas para as vendas, e as canções dos músicos estão inextricavelmente ligadas aos sabonetes e aos vinhos”. Até mesmo os sentimentos humanos mais íntimos, como o “amor materno”, a “fraternidade” e o “desejo sexual”, visam “tornar a compra uma coisa imperativa”. Os autores concluíam: “Dessa forma, a pessoa inteira fica imersa na economia”.

Naturalmente, como o propósito de toda a vida social é o consumo, o trabalho torna-se meramente um meio para um fim. Isso implica, como apontaram os autores, que se “a tendência da produção é para a quantidade e a venda em um mercado lucrativo, a possibilidade de satisfação no trabalho desaparece”. O próprio trabalhador, desinteressado em sua atividade como produtor, só quer “afastar-se rapidamente enriquecido”, ir o mais rápido possível “para casa, para o mercado, para a cidade, onde estão todas as coisas boas”.

Sob um sistema assim, até mesmo a política perde seu significado. As eleições, acrescentavam os autores, “são como outras campanhas de vendas, para escolher uma marca ou outra de um produto basicamente idêntico”. De fato, focadas no consumo, “as pessoas não querem se preocupar em decidir sobre questões políticas porque, presumivelmente, têm coisas mais importantes em mente”. O verdadeiro poder que elas têm é “a escolha econômica de comprar ou não um determinado produto”, não “os esforços enérgicos como boicotes ou greves, mas pressões sutis do mercado”. Em outras palavras, o consumidor substitui o cidadão.

Como modelo alternativo, os irmãos Goodman idealizaram outra metrópole onde o domínio do consumo sobre a produção seria superado, com uma integração mais clara do trabalho na própria cidade – um modelo onde “cada momento da vida tem valor em si mesmo, simultaneamente como meio e como fim”. Nessa cidade, a cidadania é exercida como trabalhadores, não como consumidores. Se em uma sociedade orientada pelo mercado os trabalhadores não têm uma compreensão completa do processo produtivo, nessa nova metrópole eles teriam “uma compreensão total de todas as operações”. Essa mudança transformaria radicalmente o significado do trabalho e da própria democracia. As pessoas não desejariam mais “se esquivar do trabalho para um ócio insignificante”, já que “as pessoas estariam satisfeitas com o seu trabalho”.

Neste segundo modelo, o centro da vida social não seria um shopping center, mas as praças públicas onde as pessoas se reúnem e debatem, como na Grécia antiga. “Essas praças”, argumentavam os irmãos Goodman, “são a definição de uma cidade”. Não são “avenidas de tráfego motorizado ou de pedestres”, mas “lugares onde as pessoas permanecem”. A praça está em toda parte: em frente a uma fábrica, na entrada de uma pequena biblioteca ou em frente a um conjunto habitacional onde as pessoas se encontram e entabulam conversas. Esta é uma metrópole onde “o trabalho, o amor e o conhecimento” finalmente se integram, uma cidade onde o objetivo é “a segurança social e a liberdade humana”.

As regras do enfrentamento

Esses dois modelos ilustram de forma bastante marcante as diferentes maneiras pelas quais uma sociedade pode organizar a relação entre a economia e a democracia. No primeiro, a democracia é substituída pelo mercado, que troca a política pelas escolhas do consumidor, enquanto no segundo, a deliberação política orienta as decisões econômicas. A originalidade do argumento, portanto, reside no fato de que o contraste não se refere estritamente às relações de propriedade (capitalismo versus socialismo, em sentido estrito), mas sim às diferentes maneiras pelas quais uma sociedade pode atender às necessidades humanas. Enquanto no primeiro modelo essas necessidades são delegadas à lógica impessoal do sistema de preços, no segundo elas são submetidas à deliberação coletiva. O que distingue este segundo modelo é que ele transforma as necessidades (o que queremos produzir?) em uma questão política e democrática.

Isso se alinha bem com a distinção entre uma formação social “com propósito” e uma “não intencional”, tomando emprestada uma ideia do economista austríaco Friedrich von Hayek. Essa distinção se refere à diferença entre uma sociedade moldada por um mecanismo impessoal (o mercado) e uma onde o valor é determinado pela tomada de decisões coletivas. Como observou o filósofo Brian Barry: “Escolher um sistema econômico não é meramente escolher uma máquina para satisfazer desejos, mas escolher uma máquina para produzir certos desejos no futuro. É, portanto, inevitavelmente uma escolha que deve ser feita em parte por razões ideais”. O que as cidades imaginadas pelos Goodmans destacam é que a diferença entre os modelos econômicos depende, sobretudo, dos “modos de vida” que criam – isto é, do nível de controle coletivo que a sociedade exerce sobre a definição dos fins sociais.

Numa sociedade em que o sistema de preços é o mecanismo central para a alocação dos investimentos – a “sociedade das lojas de departamento” –, as decisões sobre o que deve ser produzido são delegadas a agentes privados que utilizam o lucro como bússola. Seguindo a historiadora Ellen Meiksins Wood, na história real do capitalismo, isso significou o desenvolvimento de uma “esfera de poder dedicada inteiramente a fins privados, em vez de sociais”, sem precedentes históricos. E acrescentou: “As funções sociais de produção e distribuição, a extração e a apropriação da mais-valia e a alocação do trabalho social são, por assim dizer, privatizadas e realizadas por meios não autoritativos e não políticos”. Aqui, não é o valor de uso que define o que é produzido, mas o seu valor de troca, tornando os preços a única unidade pela qual o mecanismo de mercado seleciona o que vale a pena produzir.

Ao subordinar a produção a fins privados, uma sociedade impulsionada pelo mercado, para citar a filósofa Agnes Heller, “satisfaz as necessidades sociais apenas na medida em que estas são passíveis de serem transformadas (sob as condições dadas da venda da força de trabalho como mercadoria) em demanda privada efetiva no mercado de mercadorias”.

Heller continua: “A consequência típica do mecanismo de produção capitalista é o aumento das necessidades dentro de um determinado grupo de necessidades e a orientação do indivíduo para a sua satisfação, enquanto outros tipos de necessidades, que moldam a personalidade humana, mas não contribuem para a valorização do capital e podem até mesmo prejudicá-la, definham ou não se desenvolvem na mesma medida.”

Nesse processo, o conflito entre diferentes necessidades tende a favorecer aquelas que geram benefícios. Por exemplo, a expansão ilimitada de bens de consumo torna-se uma restrição à expansão do tempo livre. É improvável que os indivíduos optem por trabalhar menos se isso significar restringir a satisfação de suas necessidades em relação ao resto da sociedade. Enquanto novas necessidades continuarem a surgir para acompanhar o consumo geral, é improvável que uma redução na jornada de trabalho ocorra espontaneamente, mesmo que os trabalhadores individualmente sejam, em sua grande maioria, favoráveis à ideia.

A especificidade histórica desse padrão de necessidades reside, portanto, no fato de que ele escapa à capacidade da sociedade de definir o que é valioso. Em outras palavras, na sociedade de mercado, a produção cada vez maior de necessidades domina a vida social, ao mesmo tempo que escapa a qualquer tipo de controle democrático. Como observou certa vez o antropólogo Marshall Sahlins, o que a sociedade de mercado faz, diferentemente de qualquer outra sociedade na história da humanidade, é “produzir não apenas objetos para sujeitos apropriados, mas sujeitos para objetos apropriados”. Esse “modo de vida” é aquele em que participamos do processo de moldar cada um de seus aspectos, enquanto, ao mesmo tempo, nos tornamos cada vez mais alienados de seu resultado – uma intuição que estava no cerne da crítica de Karl Marx ao capitalismo.

Deste ponto de vista, o crescimento das mercadorias não é um reflexo do crescimento endógeno das necessidades, mas serve como uma “força alienada”, um “poder independente do produtor”, isto é, a expansão da produção capitalista. É por isso que, sob o capitalismo, como Marx observou em seus Manuscritos de 1844, “a necessidade de dinheiro é, portanto, a verdadeira necessidade produzida pelo sistema econômico moderno, e é a única necessidade que o sistema produz”.

No segundo modelo descrito pelos Goodmans, em vez de ser privatizada, a questão das necessidades está no cerne da vida democrática. As decisões de investimento não são mais guiadas pela bússola impessoal do lucro, mas pela deliberação política. Se queremos trabalhar menos ou produzir mais, nesse sistema, não pode ser decidido por uma única unidade de medida (como os preços). A preferência por uma opção em detrimento de outra depende de juízos de valor irredutíveis sobre o mérito. Tal processo democrático nos obriga a escolher entre o que o filósofo e economista austríaco Otto Neurath chamou de diferentes “ordens institucionais de uma sociedade”.

Quando as decisões são tomadas coletivamente, o propósito do sistema econômico não pode ser determinado unicamente pela bússola do lucro; portanto, permanece sempre uma questão política. Quando a economia é democratizada, “não é possível”, acrescentou Neurath, “criar uma ordem de vida que considere igualmente diferentes opiniões sobre a melhor distribuição dos prazeres”. Uma ordem social “com propósito” é aquela em que a própria sociedade estabelece conscientemente seus objetivos. A política torna-se uma atividade conflituosa por meio da qual os seres humanos lutam para definir suas necessidades e, assim, governar a história.

Pré-distribuição e redistribuição

Embora os dois modelos descritos acima não sejam descrições de formações sociais reais, nos ajudam a compreender a diferença entre as ferramentas institucionais concebidas para permitir que a sociedade aumente seu autocontrole e aquelas que não o fazem. O que os irmãos Goodman tinham em mente, insistiam, não eram “planos”, mas “modelos para pensar sobre possíveis relações de produção e modos de vida”, os meios mais ou menos democráticos pelos quais uma sociedade estabelece suas próprias regras.

No capitalismo, os debates sobre políticas centradas na pré-distribuição ou redistribuição centram-se essencialmente na questão de limitar ou não a centralidade do sistema de preços como a bússola dominante da ordem social. A redistribuição, uma reivindicação fundamental entre os movimentos de esquerda em todo o mundo desde a crise econômica de 2008, visa alterar os resultados das transações de mercado para reduzir a desigualdade de renda. No entanto, concentrar-se nesse aspecto acarreta o risco de deixar a esfera política estruturalmente subordinada à esfera econômica. Isso nos limita a um ajuste posterior da produção capitalista, criando uma sociedade com consumidores mais iguais sem jamais questionar a natureza do que é produzido. Marx se referia a esse tipo de orientação como “socialismo vulgar”, uma vez que tomava “dos economistas burgueses a consideração e o tratamento da distribuição como independente do modo de produção e, portanto, a apresentação do socialismo como girando principalmente em torno da distribuição”.

Por outro lado, agir com base na pré-distribuição implica a ambição mais radical de ampliar a capacidade da sociedade de definir fins sociais. As políticas pré-distributivas, que podem ser vistas como ações a priori das transações de mercado, incluem uma ampla gama de ferramentas, como a negociação coletiva, a socialização do investimento, os serviços públicos abrangentes e os controle de preços. Essas medidas aumentam o poder dos trabalhadores para moldar a divisão do trabalho e as condições de trabalho, e para orientar a produção em direção a objetivos coletivos, como creches públicas ou o controle do mercado imobiliário. Elas politizam a questão das necessidades não como um problema quantitativo (distribuição de renda), mas como um problema qualitativo (definição consciente de valor). Elas nos obrigam a tomar decisões intencionais, por exemplo, sobre se queremos mais assistência médica ou turismo espacial. O que é radicalmente transformado no modo pré-distributivo, portanto, não é o poder de compra das diferentes classes, mas a própria estrutura de necessidades promovida pela economia.

Esse contraste foi articulado pelo economista John Kenneth Galbraith em seu best-seller de 1958, A sociedade da abundância. As causas da pobreza nos Estados Unidos, acreditava o autor, estavam ligadas à “tendência inerente” dos países capitalistas de os serviços públicos “ficarem atrás da produção privada” – em outras palavras, um desequilíbrio “entre a oferta de bens e serviços produzidos pelo setor privado e aqueles fornecidos pelo Estado”. O resultado eram cidades “mal pavimentadas, lixões horríveis, prédios arruinados, outdoors enormes e postes de energia elétrica que deveriam ter sido enterrados há muito tempo”, mas onde todos possuíam um “carro com ar-condicionado, direção hidráulica e freios hidráulicos”.

Mas, longe de ser um simples apelo ao investimento público, o que Galbraith defendia era uma crítica mais radical ao crescimento e ao consumismo em si. O que importa, especialmente à medida que a renda nacional aumenta, é o que ele chamava de “equilíbrio social” entre o investimento público e privado – ou seja, o equilíbrio entre dois mecanismos fundamentalmente diferentes para desenvolver e moldar nossas necessidades: preços versus democracia.

Uma sociedade em que a produção privada tende a superar a produção pública é também uma sociedade que restringe a possibilidade de expressar propósitos de maneira coletiva. Portanto, esta não é uma crítica às escolhas de consumo em si (como se existissem escolhas objetivamente certas e erradas), mas à tendência inerente de uma sociedade capitalista de negar aos cidadãos a capacidade de alocar uma parcela da renda nacional através da tomada de decisões coletivas.

Em vez de um sistema de preços e consumidores soberanos, essas ferramentas democráticas permitem que as pessoas participem plenamente das decisões sobre a produção e expandam a esfera da cidadania. Essa ruptura com a economia política clássica, que afirma a dominância da produção sobre o consumo, amplia o campo da política como uma atividade conflituosa destinada a controlar o próprio propósito da ordem social. Em sua forma mais radical, essa abordagem implica que o Estado, como tomador de decisões coletivas, poderia substituir o ajuste a posteriori da produção resultante das trocas de mercado por uma definição política a priori das necessidades.

Ao longo das últimas cinco décadas, porém, o ideal de autogoverno que se encontra no cerne do projeto socialista foi progressivamente esvaziado e reduzido à transformação da forma como distribuímos o bolo. Concentramo-nos na redistribuição, ao mesmo tempo que abandonamos a ambição de orientar conscientemente o processo econômico. Os Estados fortaleceram o aparato fiscal para conter os efeitos da desigualdade, enquanto, simultaneamente, desmantelavam lentamente a arquitetura do Estado de bem-estar social do pós-guerra, especialmente onde este alterava as relações de poder entre capital e trabalho.

Se uma sociedade de consumo mais igualitária é preferível a uma desigual, a privatização das necessidades acelerou a crescente colonização da vida social pelo mercado. “A busca por bens materiais”, observou certa vez o economista americano Robert Heilbroner, “desvia nossa atenção por um tempo”, mas não oferece alternativa ao “vazio no âmago de uma civilização empresarial”. Como consumidores, os cidadãos podem se rebelar contra o aumento de impostos ou preços, mas, como produtores, abandonamos em grande parte qualquer ambição de agir coletivamente sobre o que e como produzimos. No fim da história, o último homem é, acima de tudo, um consumidor. Mas somente ao levantar verdadeiramente a questão do valor nos assuntos humanos a sociedade poderá, como Heilbroner esperava, oferecer “normas de conduta, padrões morais compartilhados e uma visão unificadora de seu destino”.

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