26 Agosto 2023
Sobrevivente do nazismo, depois forçada ao exílio pelo regime comunista depois de ter sido privada de cargo de docente, a filósofa húngara Ágnes Heller (1929-2019) pensou, apesar de tudo, na possibilidade da vida ética. Tendo se tornado uma firme adversária do nacionalista Viktor Orban, convidava a Europa democrática a defender os seus valores. “De filosofia, só existe aquela autobiográfica”, afirmava a filósofa húngara Ágnes Heller (1929- 2019).
Essa pequena mulher enérgica havia de fato experimentado um caminho de vida que poderia testar o pensamento. Durante a Segunda Guerra Mundial, ela escapou três vezes das execuções sumárias dos Cruzes flechadas, os fascistas húngaros pró-nazistas que matavam os judeus. Ela evitou por caso a deportação que a fez perder o pai, os primos e grande parte dos amigos. E quando, depois da guerra, tornou-se filósofa e desenvolveu um marxismo crítico, sofreu as perseguições das autoridades comunistas, a vigilância, a traição, a proibição de ensinar e depois exílio.
A reportagem é de Élodie Maurot, publicada por La Croix, 23-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ter vivido tantos anos em contato com os aspectos mais sombrios da humanidade poderia ter levado Ágnes Heller ao ressentimento e ao desespero. No entanto, é o contrário que transparece em sua autobiografia, La Valeur du hasard. Ma vie (1), um texto animado, lançado na França em 2020, surpreendente lição de vida que convida a nunca renunciar à liberdade e à coragem de viver.
Outras traduções foram depois publicadas - Au-delà de soi, em 2021 (2), L'Europe, un musée? em 2022 (3) e Une éthique de la personnalité (4) que permitem hoje ao público francês conhecer melhor a obra dessa importante filósofa do Leste Europeu, que foi amiga de Foucault, Derrida e Habermas.
É à ética que Ágnes Heller dedicou grande parte do seu trabalho. Uma escolha que se explica em parte pela prudência, sendo aquele campo de investigação menos supervisionado pelo regime comunista, portanto menos arriscado. Mas essa orientação tinha uma sua lógica intrínseca: depois de ter passado por muitas tragédias, Ágnes Heller havia assumido o compromisso de fortalecer a vida boa e a resistência interior. Como é possível a vida ética, apesar de tudo? Essa pergunta sempre esteve presente em sua reflexão e a ela dedicou três livros: General Ethics [Ética Geral], A Philosophy of Morals [Uma filosofia da moral] e An Ethics of Personality [Uma ética da personalidade], publicado em francês nesta primavera.
Nessa última obra, Ágnes Heller não tenta reavivar uma filosofia moral desgastada pelos crimes do século XX. Pelo contrário, aborda no máximo grau o mal e a injustiça presentes no mundo. Faz isso no quadro de uma época “pós-moderna” e “pós-metafísica”, onde a moral universal de Kant e a transcendência religiosa não lhe parecem mais recursos possíveis.
E, apesar de tudo, a filósofa ainda defende a possibilidade de uma vida ética. Acredita que a prova está na existência de “pessoas boas”, que escolhem o bem, não abdicam da sua liberdade e a mantêm o empenho pelos outros, mesmo diante do perigo. Em vez de uma ética “de cima”, derivada de grandes princípios, Ágnes Heller se contenta com uma ética “de baixo”, frágil e precária.
Ágnes Heller teve a sorte de cruzar em sua vida com diversas pessoas boas. Duas figuras em particular foram importantes para ela. A avó paterna, Sophie Meller, uma das primeiras húngaras a ter acesso ao ensino universitário, mulher culta que se tornou professora após a morte de marido, figura benévola de autoridade natural. E seu pai, um judeu secular e moralista, um advogado generoso e sem um tostão, que perdeu a vida depois de ajudar muitos correligionários a deixar a Hungria durante a Segunda Guerra Mundial. Ciente do perigo a que estava se expondo, aquele pai tão amado escreveu em seu testamento estas linhas comoventes dirigidas à sua filha: “Apesar de tudo o que aconteceu nestes últimos anos, nunca perdi esta fé: o Mal certamente pode vencer por um curto período de tempo, mas no final é o Bem que será vencedor. Todas as pessoas boas dão a sua pequena contribuição para que no final o Bem triunfe. Guarde uma lembrança de mim simpática e feliz!”. Décadas depois, Ágnes Heller, lhe respondeu indiretamente em sua autobiografia, desenvolvendo uma perspectiva ética menos segura, mas mais resiliente: “Há muito tempo não acredito mais na vitória final do Bem, mas também acredito que seja possível ser bom e que se deva ser bom sem esperar que o final seja bom”.
Que não exista nenhum sentido seguro da história, nenhuma lógica em ação no curso dos eventos, foi uma convicção que Ágnes Heller adquiriu muito cedo, diante do discurso marxista oficial e de sua visão mecanicista do progresso. Com base na sua experiência, Ágnes Heller preferia relevar os "casos" que a tinham orientado na vida e às vezes a salvaram, com uma profunda sensibilidade da contingência. E ainda assim conservava um grande senso da responsabilidade individual. “Por meu pai, eu tinha o dever de continuar sendo uma pessoa boa, afirma em La Valeur du hasard. Ser uma pessoa boa significava não buscar o interesse pessoal em nenhuma decisão, mas decidir com base no que eu acreditava ser o bem. E dele também aprendi outra coisa: não se abandona o navio que está afundando”.
Para ela, o “navio que afunda” foi durante muito tempo a Hungria comunista. Seduzida pelo comunismo depois da Segunda Guerra Mundial, quando ainda era multipartidário e com liberdade de expressão, Ágnes Heller não conserva as suas ilusões por muito tempo, mas não foge. Próxima do filósofo Georg Lukács, engajou-se num marxismo crítico, defendeu a Revolução Húngara de 1956 e o modelo de uma República dos conselhos que respeitasse as eleições livres. Tendo se tornado uma figura da escola de Budapeste e do marxismo dissidente, apoiou a Primavera de Praga em 1968, procurando as vias de um “socialismo com rosto humano”, livre da ditadura do partido.
Essa busca crítica valeu-lhe, primeiro, a atitude persecutória por parte das autoridades e depois, repetidamente, a proibição de ensinar e de publicar. Durante longas décadas ela rejeitou a possibilidade do exílio, mas resignou-se somente em 1977. A partir de então lecionou na Austrália, depois nos Estados Unidos no prestigiada New School for Social Research di New York.
Em 1989, a queda da Cortina de Ferro liberta finalmente o leste da Europa. Agnes Heller vive o evento "num turbilhão de alegria", que, no entanto, será de curta duração. Percebo logo que o povo húngaro está mais ávido por prosperidade do que por liberdade. Quando Viktor Orbán é levado ao poder, entra na resistência e critica o retorno de um “nacionalismo étnico”.
Em sua jornada pela história, Ágnes Heller abandonou no fim toda perspectiva marxista para defender a democracia liberal, que considerava “o nosso bem mais precioso”.
Sem ilusões, também acreditava que “o fim do capitalismo não acontecerá tão cedo”. Fervorosa europeia, ficou desolada ao ver que o Velho Continente estava negligenciando os seus valores humanistas para tornar-se um grande mercado em um museu ao ar livre. “Quando você pergunta a uma criança o que significa ser europeu, não entende a pergunta. As crianças não sabem”, afirmava com tristeza, apoiando a ideia do desenvolvimento de uma identidade cultural europeia, “algo que até agora não teve sucesso". “Quando todas as crianças compreenderem o que significa ser europeus, então haverá uma Europa. Caso contrário não acontecerá”, alertava.
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Ágnes Heller, a coragem de ser “uma pessoa boa” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU