25 Outubro 2017
A experiência do genocídio nazista, o crime com o seu pai em Auschwitz e o fato de ter vivido sob o regime totalitário marcaram “a fogo” Agnes Heller e às perguntas que a acompanhariam por toda a vida. “Como as pessoas podem fazer isso? Existem o bem e o mal? Quem o determina?”. Aos 88 anos, a filósofa húngara veio ao país convidada pela Universidade Nacional Três de Fevereiro, que a homenageou lhe conferindo o Doutorado Honoris Causa. Discípula do filósofo György Lukács, Heller é reconhecida como uma das máximas expoentes da Escola de Budapeste e uma das pensadoras mais influentes da segunda metade do século XX. Em conversa com o jornal Página/12, falou sobre a continuidade do antissemitismo, das dificuldades para levar à prática os princípios dos direitos humanos e também sobre os problemas que as universidades enfrentam em nível mundial.
A entrevista é de Gastón Godoy, publicada por Página/12, 24-10-2017. A tradução é do Cepat.
Qual foi o devir da ‘judeufobia’ ou o antissemitismo do Holocausto até hoje?
O antissemitismo já estava presente desde antes do Holocausto, mas não foi causa, foi uma condição necessária para realizá-lo; também um regime totalitário e uma máquina moderna, a do gás. Esses foram alguns dos elementos necessários para perpetrar o genocídio. Após o Holocausto, começou a se constituir, a florescer em alguns lugares, uma nova forma de ódio contra os judeus, contra o Estado de Israel, porque dizem que é genocida, algo que é mentira. O que ocorre é que há uma guerra que está sendo travada e é normal que haja ódio entre duas facções em guerra. O que faz ruído é que haja terceiras partes que não se coloquem em um lugar de administrar justiça, mas que culpam apenas uma parte, que tem a ver com essa corporização do ódio contra os judeus. Quem odeia a Turquia? Ninguém, ainda que tenha perpetrado genocídios contra os armênios e os curdos.
Como se sustenta a universalidade dos direitos humanos?
Temos que levar em conta que os direitos humanos são uma declaração, um enunciado normativo. Mas, empiricamente é outra a questão, às vezes se dão e às vezes não, onde sempre devem estar presentes é na norma, isso é muito importante. Assim como um dos mandamentos diz “não matarás”, isso é uma norma, embora seja verdade que há muita gente que mata e assassina, de qualquer modo, a norma “não matarás” deve existir. Os direitos humanos como norma, surgiram no século XIX, e embora há muitos países que os violam, é necessário mantê-los, por mais que seja assim. Ninguém diz que não respeita os direitos humanos, como ninguém diz “eu mato”, mas na prática não acontece assim.
Você definiu as mudanças conquistadas pelas mulheres como a única revolução “totalmente positiva”. Por quê?
É uma revolução geral, porque não implica a mudança de uma ordem social ou política para outra, mas tem a ver com a ordem completa da história tradicional da humanidade, que sempre esteve sujeita à submissão da mulher pelo homem. Com ‘totalmente positiva’ não quero dizer que não tenha existido perdas, porque não há ganhos sem perdas, mas houve muitos ganhos: que as mulheres sejam consideradas iguais aos homens, somos seres humanos. Por isso, a esfera da emancipação da mulher está relacionada com os direitos humanos. Antes não éramos consideradas cidadãs e não tínhamos o direito de votar.
Qual você acredita que é o papel central dos filósofos e dos intelectuais na sociedade atual?
Cumprimos um papel especial como cidadãos em Estados democráticos, obviamente, em ditaduras não podemos exercer esses direitos e nos tornamos súditos da tirania. Em geral, os intelectuais podem fazer uso do acesso a diferentes meios, onde podemos expressar nossa visão e ativismo, e talvez exista um efeito mais profundo, porque somos mais conhecidos, escrevemos continuamente e temos algum devir filosófico que gera alguma influência. O intelectual pode utilizar sua potência para acender, avivar ou começar um debate público ou lutar contra ditaduras, mas não por isso contam com uma posição privilegiada.
Como observa, nesse sentido, a função que estão cumprindo nas universidades?
O professor é, por definição, um intelectual, e sua tarefa é permitir que o aluno desenvolva suas capacidades e naturezas. Temos muitos problemas com as universidades modernas. No mundo, em geral, há uma burocracia crescente, onde as autoridades controlam os docentes e os alunos. Por outro lado, a mobilidade ascendente através da universidade se viu muito atingida nos últimos anos. Os filhos dos mais humildes, os mais pobres, quase não conseguem pagar os custos. Sei que na Argentina a universidade é gratuita, mas em muitas partes do mundo não é assim.
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Universidades, hoje. "Há uma burocracia crescente, onde as autoridades controlam os docentes e os alunos". Entrevista com Agnes Heller - Instituto Humanitas Unisinos - IHU