06 Junho 2024
“Ao manter relações estreitas com certas frações do capital estadunidense – o setor financeiro em particular –, as elites dos Emirados Árabes Unidos esperam preservar a sua posição na matriz imperial: uma posição que lhes permite aumentar a sua riqueza, consolidar o seu poder e obstruir a possibilidade de que qualquer tipo de mudança social ocorra em seus países”. A reflexão é de Colin Powers, em artigo publicado por El Salto, 04-06-2024. A tradução é do Cepat.
À primeira vista, os Emirados Árabes Unidos (EAU), uma monarquia rica em petróleo e com uma longa história de lealdade ao império estadunidense, parecem estar se adaptando à ordem multipolar. Desde 2022, afastaram-se da guerra econômica de Washington contra a Rússia. Abu Dhabi, o emirado responsável pela política externa e energética da federação (e que detém a maior parte das suas reservas de petróleo), bloqueou a exclusão da Rússia das cotas mensais da OPEP+. Dubai, principal centro logístico e de transporte de cargas da região, exporta drones e semicondutores para a Rússia, ao mesmo tempo que permite a passagem de lingotes e diamantes de origem russa através da Dubai Gold and Commodities Exchange. O mercado imobiliário e as docas da cidade foram disponibilizados aos russos que precisam de um lugar para esconder a sua riqueza.
Os EAU também prestam serviços inestimáveis a outro inimigo dos Estados Unidos: o Irã. Os portos de Fujairah facilitam os embarques de petróleo bruto, o que permitiu que as exportações de petróleo de Teerã aumentassem 50% em 2023. Abu Dhabi orquestra grandes fluxos de reexportação, ao passo que Dubai fornece serviços bancários paralelos e acordos de importação. Segundo estatísticas oficiais, os EAU realizam trocas comerciais com o Irã no valor de aproximadamente 25 bilhões de dólares anuais, o que os coloca em segundo lugar na balança bilateral deste país e isto sem considerar as trocas ilícitas avaliadas em torno de 10 bilhões de dólares.
E depois tem a China, que se tornou o maior comprador de produtos fabricados nos Emirados Árabes Unidos ou que transitam pelo seu território. Cerca de dois terços das exportações chinesas para o Médio Oriente, África e Europa passam pelos portos dos Emirados. Para agilizar estas relações comerciais, foram estabelecidos importantes acordos de swap cambial entre bancos centrais, enquanto os bancos comerciais chineses estabeleceram-se no Centro Financeiro Internacional de Dubai, onde detêm um quarto de todos os seus ativos. Os Bani Fatima – o sobrenome do presidente dos Emirados Árabes Unidos e governante de Abu Dhabi, Muhammad bin Zayed Al Nahyan, e de seus cinco irmãos por parte de mãe – escolheram a Huawei para construir a infraestrutura 5G do país em 2019, para grande desgosto da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Numa outra óbvia afronta a Washington, Tahnoun bin Zayed Al Nahyan, chefe da espionagem dos Emirados Árabes Unidos, fez um investimento de 220 bilhões de dólares através da sua empresa familiar na ByteDance, empresa chinesa proprietária do TikTok.
Num certo sentido, a aposta dos EAU na autonomia geopolítica é real: a sua recusa em escolher entre superpotências rivais é um privilégio que nasceu dos seus recursos financeiros únicos, bem como da sua perspicácia política e dos seus lobbies. (O país também recebeu várias dispensas de Washington ao assinar os Acordos de Abraão em 2020.) Mas as motivações dos Emirados são mais complexas do que o mero soberanismo. Examinando a situação mais de perto, muitas das suas ações recentes podem ser entendidas como um sinal de respeito, mais do que de renúncia, às obrigações para com o império. Apesar dos seus vínculos e relações com Estados não-conformes, o país continua empenhado na globalização neoliberal liderada pelos Estados Unidos, provando ser um fiel servidor daquilo que Ellen Meiksins Wood chamou de “império do capital”.
As relações dos Emirados Árabes Unidos com a Rússia são um exemplo disso. Embora pareçam contradizer os interesses estadunidenses, na verdade facilitam a estratégia dos Estados Unidos de manter os mercados globais de mercadorias funcionando como se a guerra na Ucrânia não estivesse acontecendo. Consciente da escassez de oferta e do seu efeito sobre a inflação, Washington tornou as suas sanções energéticas fáceis de contornar, usando os EAU como canal para o petróleo russo, que chegou inclusive à Upper Bay de Nova York sem muito alarido.
A União Europeia, por sua vez, promulgou legislação para santificar o acordo, isentando os produtos refinados dos regulamentos do G7. É verdade que o Departamento do Tesouro dos EUA decidiu no inverno passado punir quatro companhias marítimas domiciliadas nos EAU por transportarem petróleo bruto russo vendido acima do limite de preço do G7 de 60 dólares por barril, mas este foi claramente um gesto simbólico, destinado a mostrar que a Casa Branca estava fazendo algo a respeito das violações do embargo, que têm sido constantes desde que o limite de preços foi introduzido. As sanções foram muito pequenas para terem qualquer efeito real.
Independentemente das modestas vendas de gás cotadas em yuan, os compromissos dos Emirados com o dólar e o domínio do setor financeiro dos EUA também permanecem firmes. Ao fixar o preço de praticamente todas as transações petrolíferas e de derivados em dólar e manter a maior parte dos seus enormes lucros no exterior, os EAU injetaram 45 bilhões de dólares no mercado de eurodólares e nos mercados bancários dos EUA somente em 2022. No ano seguinte, as instituições dos Emirados aumentaram as suas participações em títulos do Tesouro dos EUA em cerca de 40%, facilitando ainda mais as condições de liquidez e ajudando a pagar o déficit fiscal e o déficit da conta corrente de Washington.
Desde o início da pandemia de Covid-19, o envolvimento dos bancos dos EUA nos EAU como principais signatários das suas emissões de obrigações proporcionou a estes bancos uma fonte significativa de novos rendimentos e fluxo de caixa abundante. Entretanto, os maiores fundos soberanos do país – a Autoridade de Investimento de Abu Dhabi (ADIA), Mubadala Capital e Abu Dhabi Development Holding Company (ADQ) – reciclaram grandes quantias de petrodólares em bancos paralelos dos EUA.
A ADIA e Mubadala também apoiaram o que é hoje indiscutivelmente o principal pilar institucional do sistema financeiro dos EUA: a gestão de ativos. A ADIA confia 45% do seu capital à Blackrock e outros gestores de fundos, enquanto Mubadala mantém uma participação não negligenciável nesta empresa de investimento. No âmbito da Parceria para Acelerar a Energia Limpa criada pelo governo Biden, a empresa de gestão de ativos da família Al Nahyan comprometeu-se a fazer investimentos verdes no valor de 30 bilhões de dólares, que irá gerir em conjunto com a Blackrock. Ao arrendar terras florestais a longo prazo na Libéria, no Quênia, na Tanzânia, na Zâmbia e no Zimbábue, os EAU desempenharam um papel fundamental nos mercados emergentes de créditos de carbono, ajudando a fortalecer a estratégia absurda de Washington de mitigar as mudanças climáticas através do derisking, ou seja, através da promoção do remanejamento, da socialização ou da redução dos riscos sociais com o investimento no clima.
Um benefício similar para o império estadunidense é a rede de comércio marítimo que os EAU criaram através da DP World e do AD Ports Group, empresas públicas geridas, respectivamente, por Dubai e Abu Dhabi. O seu papel é gerir uma parte crescente do comércio global através de megaportos de propriedade dos Emirados, facilitar acordos de segurança com países parceiros/clientes e adquirir espaço a partir do qual os EAU possam lançar operações militares, como quando os Emirados atacaram o Iêmen a partir de um porto da DP World, na Eritreia. As empresas dos Emirados constroem e gerem “zonas francas” em torno dos seus portos, que operam de forma completamente independente das respectivas leis trabalhistas nacionais e suavizam as fricções logísticas decorrentes da intersecção das atividades comerciais chinesas, indianas e estadunidenses.
Graças a estas zonas, os mercados do Chifre da África, anteriormente pouco ligados aos circuitos da economia mundial, estão agora plenamente integrados. Desta forma, os EAU proporcionam a outros Estados – principalmente aos Estados Unidos – espaços para absorver o seu capital de exportação e promover os seus interesses geoestratégicos. Em troca de tudo isso, extraem rendas de grande parte do comércio mundial. O seu controle das principais sedes logísticas estender-se-á agora aos oceanos Índico e Pacífico, graças às recentes aquisições de portos no Paquistão, na Índia e na Indonésia.
O capital global também se beneficia da propriedade estatal – ou, mais precisamente, da propriedade das várias casas reais – da estrutura da economia dos EAU. A idiossincrasia do sistema pode por vezes transgredir os princípios da livre concorrência ou da governação corporativa. O First Abu Dhabi Bank, presidido pelo xeique Tahnoun e cujos proprietários majoritários são Mubadala e a família real, concedeu a sua alteza real e a outros membros do conselho mais de 3 bilhões de dólares em empréstimos. Tahnoun, que preside instituições públicas e privadas com ativos totais avaliados em mais de 1,5 trilhão de dólares, usou o seu comando de recursos públicos e poderes reguladores para impulsionar a sua International Holding Company, uma entidade privada de propriedade da família Al Nahyan, que foi da mais completa obscuridade até uma capitalização bursátil maior que a da Goldman Sachs e isso no espaço de alguns anos. No entanto, deixando de lado estes excessos, os Al Nahyan, juntamente com a família Al Maktoum, governante de Dubai, têm sido muito elogiados pela sua gestão econômica e abertura ao investimento estrangeiro. Eles são normalmente os primeiros a assumires riscos na região do Médio Oriente e no Norte da África, abrindo oportunidades para que os comerciantes de Londres e Nova York consigam facilmente vantagens.
Ao aliviar as tensões na balança de pagamentos do Egito mediante um investimento de 35 bilhões de dólares em fevereiro passado, a ADQ permitiu que os gestores de obrigações ocidentais voltassem em segurança ao país e cobrassem enormes juros sobre a sua dívida soberana. O capitalismo de Estado dos EAU pode, portanto, servir de instrumento para os investidores gerirem mais confortavelmente as tensões ligadas à ascensão de novos atores nas estruturas da globalização contemporânea.
Assim, avaliada em seu conjunto, a devoção dos EAU ao império do capital é genuína, embora a sua relação com Washington mostre alguns sinais de fratura superficial. Os Emirados sabem que o domínio estadunidense se baseia não apenas no poderio militar, mas também na livre circulação de capitais, na gestão das hierarquias trabalhistas e comerciais, no privilégio exorbitante do dólar e na disponibilidade de paraísos fiscais. Os EAU defendem estes princípios em todos os seus acordos comerciais, incluindo aqueles com a Rússia, a China e o Irã. Pelo contrário, parte da classe política estadunidense está disposta a colocá-los em perigo através de guerras comerciais autodestrutivas e do uso agressivo e brutal do sistema financeiro global. A aparente divergência entre os EAU e os Estados Unidos não é tanto o resultado de um guardião imperial que se rebelou, mas o de um imperador que já não é capaz de discernir, muito menos honrar, os seus melhores interesses.
Desde a Primavera Árabe, os EAU já não veem os Estados Unidos como um protetor confiável: um ceticismo que se alimentou pela resposta indiferente de Biden aos ataques tanto dos hutis contra o território dos Emirados como dos iranianos contra vários petroleiros. Ainda assim, ao manter relações estreitas com certas frações do capital estadunidense – o setor financeiro em particular –, as elites dos Emirados esperam preservar a sua posição na matriz imperial: uma posição que lhes permite aumentar a sua riqueza, consolidar o seu poder e obstruir a possibilidade de que qualquer tipo de mudança social ocorra em seus países.
Nada disto implica que os EAU não tenham contradições internas. Especialmente desde 2011, adotaram um intervencionismo militar forte, que muitas vezes impediu a acumulação de capital em vez de contribuir para ela. A malfadada aventura emirado-saudita no Iêmen foi um desses casos, que acelerou o amadurecimento de Ansar Allah até transformar-se numa força capaz de redirecionar o tráfego marítimo em torno do Cabo da Boa Esperança.
O apoio dos EAU às milícias de Zintan e, mais tarde, a Khalifa Haftar na Líbia, foi outro episódio infeliz, que fomentou a instabilidade política e perturbou a produção de petróleo, enquanto a campanha transnacional contra a Fraternidade Muçulmana foi, na melhor das hipóteses, um desperdício de recursos. Contudo, a violência de Abu Dhabi, mesmo quando resultou em perdas a curto prazo, nunca foi totalmente inútil para o capital. Embora os vários casos de repressão militar no Oriente Médio e no Norte da África possam ter fechado temporariamente oportunidades de investimento, também diminuíram os horizontes dos movimentos populares. Ao forçar aqueles que aspiram a uma transformação social, política e econômica a adotarem posturas mais defensivas, ajudaram a proteger as relações de classe e a distribuição do poder na região.
Enquanto Washington prosseguir na reestruturação do seu império, o que continuará a fazer nos próximos anos, os EAU explorarão esta transição, jogando com todos os lados para o seu próprio benefício material e estratégico, sem deixar de trabalhar para preservar a hegemonia ilimitada do capital global. É provável que isso provoque fraturas entre os Estados Unidos e o seu adjunto, o que poderia criar oportunidades para uma política de democratização e redistribuição. No entanto, dadas as coordenadas da conjuntura atual, é mais provável que isto tenha o efeito contrário: fortalecer o domínio de uma monarquia neoliberal voraz, que pode cortejar os adversários dos Estados Unidos sem enfraquecer o poder do seu patrono.
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Os Emirados do capital. Artigo de Colin Powers - Instituto Humanitas Unisinos - IHU