24 Junho 2021
Ao dizer: “o pessoal é político”, filósofo abriu espaço para ampliação das pautas emancipatórias. Mas ao apostar no “fim da revolução”, deu brecha para maré hipócrita em que elites autocomiseram-se em público – para que tudo continue como está
O artigo é de Mitchell Dean e Daniel Zamora, autores de The Last Man Takes LSD: Foucault and the End of Revolution, publicado por The Guardian e reproduzido por OutrasPalavras, 22-06-2021. A tradução é de Henrique Sater.
“Talvez estejamos vivendo o fim da política”, escreveu Michel Foucault no final dos anos 1970. Com o esgotamento das utopias e das alternativas radicais ao capitalismo, o que agora estava em jogo, escreveu ele de forma memorável, era desenvolver “novos tipos de relações com nós mesmos”. O avanço político não é mais alcançado por meio de “partidos, sindicatos, burocracia e política”, escreveu ele. Em vez disso, a política tornou-se “uma preocupação individual e moral”.
Nessa nova definição de política – em que “tudo é político” e “o pessoal é político” – pensava-se que o eu (self) havia se tornado o campo de batalha da política contemporânea. Naquela época, muitos intelectuais, incluindo Foucault, anunciaram o “fim da era da revolução”, abrindo uma era em que transformar a si mesmo tornou-se a concepção mais popular de mudança social. Com o colapso das “grandes narrativas” coletivas, argumentaram, tínhamos agora de olhar para dentro. A partir do final dos anos 60, a mudança política seria reformulada como uma luta contra si mesmo, contra nosso “inimigo interno”. Era preciso enfrentar o “fascista no nosso interior”.
Essa mudança fez do self apenas mais um mercado a ser conquistado, com coaches de autoajuda, gurus da nova era, curandeiros de energia, conselheiros alimentares, terapeutas alternativos e marcas de estilo de vida, todos tentando lucrar com essa virada interior. A política, como escreveria Christopher Lasch, “se degeneraria em uma luta não por mudança social, mas por autorrealização”. Mas, ao contrário do que Lasch pensava, a crescente “sensibilidade terapêutica” que observou não se tornou uma “anti-religião”, baseada na “explicação racional” e “métodos científicos de cura”, mas implantaria suas próprias técnicas confessionais, reapresentando indefinidamente questões sociais como pessoais.
Muito parecido com o foco do cristianismo na alma, essa nova política do self produziu uma cultura confessional, na qual as batalhas e lutas que aconteciam dentro de si tinham que ser discutidas, confessadas e compartilhadas com aqueles de fora. “Elevação da consciência”, “auto-exame” ou “auto-capacitação” tornaram-se técnicas-chave. Essa tendência foi acelerada pela literatura de autoajuda e por consultores, que ajudaram a trazer a cultura confessional para o primeiro plano em nossa prática política contemporânea.
Hoje, essa mudança é notavelmente visível no tom confessional de muitas formas de antirracismo contemporâneo. Discutindo o racismo nos EUA em um de seus cursos de treinamento sobre “fragilidade branca”, a consultora de diversidade Robin DiAngelo confessou ao seu público que ela própria havia sido “conivente” com ele “em todos os momentos de [sua] vida”.
“Eu tento, o máximo que posso, contra-atacar”, acrescentou ela, “mas nunca podemos nos livrar disso”.
Na mesma linha, o educador antirracista best-seller Ibram X Kendi argumentou que “ser um antirracista” é “sempre contínuo”; “requer autoconsciência persistente, autocrítica constante e autoexame regular”. O antirracismo passa a ser, então, uma prática de trabalho incessante sobre si mesmo, feito de autoexame constante, seja nas ruas, seja nos espaços de formação de empresas e universidades.
Uma representação visual de como é esse tipo de política foi capturada na foto viral de líderes democratas seniores, incluindo Nancy Pelosi e Chuck Schumer, ajoelhados no chão em tecidos de seda ganenses após o assassinato de George Floyd pela polícia e a aprovação subsequente da lei de Justiça no Policiamento. Cerimônias semelhantes foram realizadas por equipes esportivas profissionais, celebridades ou executivos-chefes ricos como Jamie Dimon ajoelhando-se em frente ao cofre do banco Chase.
Da mesma forma, isso se reflete nas promessas contra o racismo postadas por várias estrelas de Hollywood nas redes sociais. Em tom abertamente confessional, filmavam-se “assumindo a responsabilidade” por “cada momento não controlado”, cada “estereótipo”, cada vez que “calam-se” ou “fecham os olhos”. Em vez de simplesmente olhar para dentro, entretanto, essa política confessional é exposta em público. Ao contrário do confessionário privado ou da santidade das urnas, a confissão hoje é realizada na rua, nas galerias de arte, nos locais de trabalho e nas redes sociais.
Apesar do que Foucault esperava, não vimos um retrocesso da confissão, mas uma intensificação e multiplicação dela no domínio público. Os confessionários seculares de hoje se parecem cada vez mais com as formas ruidosas e públicas de penitência das primeiras comunidades cristãs, onde os penitentes tinham que “se publicar” (publicatio sui, como disse o padre Tertuliano) por meio de rituais de humilhação para escolher o caminho da pureza.
Esse novo tipo de política confessional toma forma hoje por meio de postagens e desafios nas redes sociais, hashtags virais feitas por influenciadores, empresas como a Coca-Cola ou a Disney treinando seus funcionários para “serem menos brancos” e “trabalharem com sentimentos de culpa, vergonha, e defensividade” ou a CIA veiculando anúncios de operativos falando contra o “patriarcado internalizado”.
É uma confissão feita não sob o “voto de silêncio” sacerdotal, mas sob o olhar completo da publicidade. Inaugura uma “obra para toda a vida”, como coloca DiAngelo, lutando contra o mal interior e se juntando a outros penitentes. É um mundo em que o abandono da luta contra a exploração social e econômica mudou a política para uma competição entre grupos confessionais concorrentes, cada um afirmando publicamente a justiça de seu verdadeiro caminho para a salvação.
Este fenômeno político é ecoado e reforçado por corporações e indústrias de autoajuda que marcham cada vez mais fundo em nossa psique, encorajando-nos a praticar “técnicas de mindfulness” no trabalho, por exemplo. Isso se reflete em tudo, desde o apelo do guru da gestão Peter Drucker para “administrar a si mesmo” aos best-sellers da indústria de bilhões de dólares de desenvolvimento pessoal ou as “regras para a vida” do psicólogo canadense Jordan Peterson.
Apesar da presença cada vez maior dessa política, suas deficiências estão ficando claras. “A culpa branca e a indignação negra”, como Cedric Johnson, professor de estudos afro-americanos, apontou recentemente, “limitaram as correntes políticas e nenhuma das duas foi uma base sustentável para a construção do tipo de maiorias populares e legislativas necessárias para realmente contestar o poder entrincheirado de qualquer maneira significativa.”
Na verdade, ele acrescentou, esta “expressão militante de liberalismo racial” vai “continuar a adiar o tipo de políticas públicas que podem realmente ajudar” todos aqueles que são “rotineiramente vigiados, perseguidos, presos, condenados, encarcerados e condenados como fracassados”. Com os interesses materiais da política tornando-se cada vez mais urgentes, muitos no centro liberal prefeririam que nos ocupássemos com rituais ruidosos anunciando nossas batalhas internas. Desse modo, revelam o fracasso de uma política baseada na tese, avançada por Foucault há 40 anos, de que as lutas em torno de si estão se tornando cada vez mais importantes em nosso mundo em relação às da exploração e da desigualdade.
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Como um certo capitalismo tenta capturar Foucault - Instituto Humanitas Unisinos - IHU