“O capitalismo do século XXI é incapaz de atender às necessidades sociais da maioria da população mundial”. Entrevista com Michael Roberts

Donald Trump | Foto: Casa Branca

01 Dezembro 2025

Donald Trump quer revitalizar o capitalismo estadunidense com sua política tarifária. Mas nem mesmo um “Napoleão do protecionismo” pode resolver a crise fundamental do sistema, acredita o economista marxista Michael Roberts.

A entrevista é de Arman Spéth, publicada por Jacobin Alemanha e reproduzida por Sin Permiso, 21-10-2025. A tradução é do Cepat.

Ao tentar descrever a atual situação global, é cada vez mais difícil evitar os superlativos. A guerra econômica desencadeada por Donald Trump, a crescente confiança da China, que não está mais disposta a tolerar nada, e a guerra em curso na Ucrânia levaram a uma incerteza sistêmica que não se viu desde o período entreguerras ou mesmo antes. O medo de outra grande crise ou mesmo de outra grande guerra é compreensivelmente generalizado, talvez mais na Europa do que em qualquer outra parte do mundo, a região que mais tem a perder com a nova Guerra Fria.

Quanto dessa turbulência pode ser atribuído a um presidente estadunidense imprevisível e quanto é resultado de mudanças estruturais mais profundas? A ascensão de potências capazes de competir com os Estados Unidos aponta para a possibilidade de uma ordem mundial mais justa ou trata-se simplesmente da substituição de uma potência hegemônica por outra? E, mais importante, o que tudo isso significa para a vida e as perspectivas políticas dos trabalhadores?

Michael Roberts é autor de The Great Recession: A Marxist View (A grande recessão. Uma visão marxista) e The Long Depression (A longa depressão).

Eis a entrevista.

As convulsões geopolíticas que vemos atualmente seriam impensáveis sem o segundo mandato de Donald Trump. Desde seu retorno à Casa Branca, tanto a política interna quanto a externa dos EUA mudaram drasticamente, o que, dado o papel do país como potência hegemônica mundial, inevitavelmente tem repercussões no resto do mundo. Se dermos um passo para trás e observarmos o caos cotidiano da política estadunidense à distância, você vê algo que se assemelhe a uma estratégia consistente na política econômica de Trump? Existe um “método na loucura” e, em caso positivo, em que consiste exatamente?

Em primeiro lugar, Donald Trump é uma pessoa profundamente disfuncional, cuja arrogância, hybris extrema e falta de empatia humana, são evidentes para qualquer pessoa racional. Suas declarações públicas e constantes mudanças políticas — seja em relação a tarifas, conflitos internacionais ou questões culturais e sociais — demonstram isso de maneira impressionante. Mas essa loucura esconde um método. A estratégia de Trump visa restaurar a base industrial dos Estados Unidos, reduzir o déficit comercial de bens e reafirmar a hegemonia global dos EUA, especialmente em relação à China.

Trump e seus MAGA-seguidores estão convencidos de que os Estados Unidos foram despojados de seu poder econômico e status hegemônico porque outras grandes economias “roubaram” sua base industrial e, em seguida, ergueram inúmeros obstáculos que dificultam a manutenção da supremacia das empresas estadunidenses (especialmente as do setor manufatureiro). Para Trump, isso se manifesta no déficit comercial que os Estados Unidos têm com o resto do mundo.

Donald Trump frequentemente faz alusão ao presidente dos EUA William McKinley ao anunciar suas tarifas. Em 1890, McKinley, então membro da Câmara dos Representantes, propôs uma série de medidas tarifárias para proteger a indústria estadunidense, que foram posteriormente aprovadas pelo Congresso. No entanto, essas medidas se mostraram um fracasso: não conseguiram evitar a grave crise econômica que começou em 1893 e se prolongou até 1897. Em 1896, McKinley tornou-se presidente e aprovou uma nova lei tarifária, a Lei Tarifária Dingley de 1897. Como isso coincidiu com um período de expansão econômica, McKinley afirmou que as tarifas ajudariam a reanimar a economia.

Ele foi apelidado de “o Napoleão do protecionismo” e vinculou sua política tarifária à ocupação militar de Porto Rico, Cuba e Filipinas para expandir a “esfera de influência” dos EUA, algo que Trump ecoa hoje em dia de forma semelhante com seus comentários sobre o Canadá, Groenlândia e Gaza. No início de seu segundo mandato, McKinley foi assassinado por um anarquista indignado com o sofrimento dos trabalhadores rurais durante a recessão de 1893-1897, pela qual ele o responsabilizou.

Agora temos outro “Napoleão do protecionismo” em Donald Trump, que afirma que suas tarifas ajudariam os fabricantes estadunidenses. O objetivo de Trump é claro: ele quer restaurar a base industrial dos Estados Unidos. Grande parte das importações estadunidenses de países como China, Vietnã, Europa, Canadá e México vêm de empresas estadunidenses que produzem lá e revendem os produtos nos Estados Unidos a um custo menor do que teriam se fossem produzidos no próprio país.

Nos últimos 40 anos de “globalização”, as corporações multinacionais dos Estados Unidos, Europa e Japão realocaram sua produção para o Sul Global para se beneficiar dos baixos salários, da ausência de sindicatos e regulamentações e do acesso à tecnologia moderna. Como resultado, esses países asiáticos industrializaram fortemente suas economias e ganharam participação de mercado na indústria e nas exportações, enquanto os Estados Unidos se voltaram cada vez mais para o marketing, as finanças e os serviços.

Isso tem alguma importância? Trump e sua comitiva acreditam firmemente que sim. Seu principal objetivo estratégico é enfraquecer a China, estrangulá-la e, por fim, promover uma “mudança de regime”, ao mesmo tempo em que expandem o controle hegemônico sobre a América Latina e a região do Pacífico. Consequentemente, a produção industrial deve retornar aos Estados Unidos. Biden queria atingir esse objetivo por meio de uma “política industrial” que subsidiasse as empresas de tecnologia e a infraestrutura industrial, mas isso levou a aumentos massivos nos gastos do governo e, consequentemente, a déficits orçamentários recordes.

Trump acredita que esse não é o caminho certo: está convencido de que o objetivo pode ser melhor alcançado por meio de aumentos de tarifas, que deveriam forçar as empresas estadunidenses a repatriar sua produção e motivar as empresas estrangeiras a investir nos Estados Unidos. Ele acredita que somente aumentando as tarifas poderá impulsionar a produção, gastar mais em armas e reduzir os impostos para as empresas, ao mesmo tempo em que corta os gastos sociais e, assim, mantém a estabilidade do orçamento federal e do dólar.

Quais são as chances de sua aposta dar certo?

Esta aposta não vai acabar bem. Na década de 1930, a tentativa dos Estados Unidos de “proteger” sua base industrial por meio das tarifas Smoot-Hawley apenas levou a uma queda ainda maior na produção, à medida que a grande depressão se espalhava pela América do Norte, Europa e Japão. A grande indústria e seus economistas condenaram veementemente as medidas Smoot-Hawley e lutaram vigorosamente contra elas. Henry Ford, por exemplo, tentou convencer o então presidente Herbert Hoover a anular a lei, chamando-a de “estupidez econômica”.

Palavras semelhantes podem ser ouvidas hoje em círculos econômicos e financeiros, como, por exemplo, no Wall Street Journal, que chamou as tarifas de Trump de “a guerra comercial mais estúpida da história”. É verdade que a crise econômica global da década de 1930 não foi desencadeada por essa guerra comercial protecionista que os Estados Unidos provocaram em 1930, mas as tarifas exacerbaram a contração global, já que o lema na época era “cada país por si”. Entre 1929 e 1934, o comércio mundial caiu aproximadamente 66%, à medida que os Estados mundo afora responderam com contramedidas.

Embora Trump tenha rompido com a política neoliberal da “globalização” e do livre comércio para tornar a “América grande novamente” à custa do resto do mundo, ele permanece comprometido com a lógica do neoliberalismo em nível interno. O objetivo é reduzir os impostos sobre as grandes empresas e os ricos, mas, ao mesmo tempo, a dívida pública será reduzida e haverá cortes nos gastos públicos (exceto os gastos com defesa, é claro). O déficit orçamentário dos EUA chegará este ano a quase US$ 2 trilhões, mais da metade dos quais serão gastos com o pagamento de juros – quase o mesmo valor que os EUA gastam com suas Forças Armadas. A dívida pública total pendente agora é de mais de US$ 30 trilhões, ou cerca de 100% do Produto Interno Bruto (PIB). A relação dívida/PIB em breve ultrapassará o pico atingido durante a Segunda Guerra Mundial. O Escritório de Orçamento do Congresso estima que a dívida pública dos EUA ultrapassará os US$ 50 trilhões até 2034, ou 122,4% do PIB. Somente os pagamentos de juros totalizarão US$ 1,7 trilhão por ano.

Para evitar esse cenário, Trump planeja “privatizar” o máximo possível do Estado. “Recomendamos que busque um emprego no setor privado o mais rápido possível”, declarou o Escritório de Gestão de Pessoal de seu governo. Na visão de Trump, o setor público é improdutivo, ao contrário do setor financeiro, é claro. “O caminho para uma maior prosperidade americana é incentivar as pessoas a migrar de empregos menos produtivos no setor público para empregos mais produtivos no setor privado”. No entanto, esses “magníficos postos de trabalho” não foram especificados com mais detalhes. Soma-se a isso o fato de que esses empregos supostamente mais produtivos não podem ser criados se o crescimento econômico estagnar ou se contrair em consequência da guerra comercial.

Mas por que Trump dá tanta ênfase à revitalização do setor industrial e à redução do déficit comercial de bens? Como, na sua opinião, isso deve fortalecer o capitalismo estadunidense e por que ele continua a perseguir essa política, mesmo que ela contrarie diretamente os interesses da maior parte da burguesia estadunidense?

A política declarada de Trump de restaurar a indústria nacional baseia-se na ideia de que proteger a produção nacional da concorrência estrangeira revitalizará o capitalismo estadunidense. Ironicamente, porém, os Estados Unidos apresentam um superávit comercial considerável no setor de serviços, por exemplo, em áreas como finanças, mídia, consultoria empresarial e desenvolvimento de software. O déficit em produtos industriais é parcialmente compensado pelas exportações de serviços.

A imposição de tarifas sobre produtos importados prejudica ainda mais o potencial de crescimento da indústria manufatureira estadunidense, bem como do setor de serviços, pois aumenta os custos dos componentes utilizados na produção final. Isso se traduz em preços mais altos, se esses custos forem repassados, ou em menor lucratividade, se não forem repassados, ou em ambos os casos.

As contradições nas políticas de tarifas e de deportações de Trump tornaram-se evidentes recentemente, quando mais de 500 técnicos coreanos que trabalhavam em um projeto de baterias da Hyundai na Geórgia foram presos e expulsos dos Estados Unidos. Trump quer atrair empresas estrangeiras para criar empregos nos Estados Unidos, mas, ao mesmo tempo, detém os trabalhadores estrangeiros. Além disso, ele afirma que a receita proveniente do aumento de tarifas ajudaria a reduzir o déficit orçamentário e a dívida pública, mas essa receita adicional é insignificante em comparação com a receita perdida por seus enormes cortes de impostos para empresas e os super-ricos, sua “grande e bela lei”.

Trump ocasionalmente retirou ou suavizou seus aumentos de tarifas quando os mercados financeiros reagiram negativamente. No entanto, o setor financeiro parece estar reagindo cada vez mais calmamente às medidas de Trump. Portanto, ele manterá o curso por enquanto.

Quando olhamos além da política tarifária, aparece um contexto mais amplo de estagnação econômica global. Desde o início da crise financeira global em 2007, o capitalismo mundial se viu no que você chama de “longa depressão”, caracterizada por baixas taxas de lucro, crescimento estagnado, crises recorrentes e fases de recuperação fracas. Como resultado, os governos ocidentais, especialmente os Estados Unidos, estão cada vez mais intervindo diretamente nos processos econômicos e protegendo determinados interesses. Ao mesmo tempo, você enfatiza que o neoliberalismo, como antes, ainda está muito vivo nos Estados Unidos. Isso contradiz as afirmações de alguns especialistas de que o neoliberalismo está morto. Você mudou sua avaliação sobre isso?

As principais economias capitalistas registraram um crescimento significativamente menor desde a crise financeira de 2008 e a grande recessão que se seguiu. Nesse contexto, a economia dos EUA se saiu melhor: o crescimento real do PIB atingiu, em média, não mais do que 2% ao ano nos últimos dezessete anos, em comparação com mais de 3% antes de 2008. Os demais países do G7 se saíram pior, com crescimento real médio de 1% ao ano, na melhor das hipóteses. Alemanha, França e Reino Unido estão em grande parte estagnados, enquanto Japão, Canadá e Itália tiveram um desempenho apenas ligeiramente melhor.

Essas taxas de crescimento nacional estagnadas se devem à queda nas taxas de investimento na economia produtiva, já que a taxa média de retorno sobre o capital atingiu mínimos históricos em todo o mundo. Como isso pode ser verdade se grandes empresas americanas dos setores de tecnologia, energia e farmacêutico estão obtendo lucros enormes? Essas empresas são uma exceção em comparação com a grande maioria das empresas nos Estados Unidos, Europa e Japão. Estima-se que entre 20% e 30% das empresas em todo o mundo não obtêm lucro suficiente para pagar suas dívidas e precisam continuar a tomar empréstimos para sobreviver. Como resultado, no século XXI, os lucros são cada vez menos investidos em inovação e tecnologia e mais em especulação imobiliária e financeira. Wall Street está em alta, enquanto a Main Street luta para sobreviver.

As políticas neoliberais baseavam-se na hegemonia dos EUA. De uma perspectiva internacional, sempre foram um disfarce para o que antes era chamado de Consenso de Washington, ou seja, o consenso pelo qual os Estados Unidos e seus parceiros minoritários na Europa e na região da Ásia-Pacífico estabeleceram as regras do livre comércio e dos fluxos de capital no interesse de bancos e multinacionais do chamado Norte Global. Trump mudou tudo isso. Hoje, o governo dos EUA traça seu próprio curso, não apenas à custa dos países mais pobres do Sul Global, mas também à custa de seus próprios parceiros minoritários dentro da “aliança” liderada pelos EUA.

Enquanto isso, o Estado trumpista também interfere na economia e na estrutura social dos EUA. O setor público e muitas de suas instituições foram dizimados. Trump aspira até mesmo a assumir o controle do Federal Reserve. Ele governa por decreto, contorna o Congresso e ignora os tribunais. O livre comércio foi substituído pelo protecionismo e a imigração pela deportação. No entanto, o neoliberalismo permanece forte sob Trump, entendido como a desregulamentação das legislações ambientais e de saúde, dos riscos financeiros, bem como a redução dos gastos públicos e dos impostos para os ricos.

Fixemos a atenção agora sobre os “parceiros menores” dos Estados Unidos. A União Europeia está passando por uma humilhação sem precedentes ao aceitar efetivamente a subordinação total aos Estados Unidos. Isso é um sinal claro de fraqueza econômica e política. Ao mesmo tempo, a UE tenta conter seu declínio fortalecendo indústrias-chave por meio de iniciativas protecionistas lideradas pelo Estado, como a Lei dos Chips ou do Pacto Verde. Você vê alguma possibilidade realista de que a Europa consiga conter sua importância decrescente no mercado global?

Os chefes de Estado e de governo dos principais países da UE prejudicaram a si mesmos. A crise financeira global de 2008 resultou em enormes encargos de dívida para os países mais fracos da UE. Para atender às demandas dos bancos e das instituições da UE – o Banco Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia –, eles impuseram programas de austeridade draconianos às suas populações. As taxas de crescimento da produtividade do trabalho, do investimento e da renda real nas principais economias caíram drasticamente, e os países da Europa Central (incluindo o Reino Unido) ficaram para trás nos últimos avanços tecnológicos.

Depois veio a guerra na Ucrânia. A política de sanções contra a Rússia e a suspensão das importações de petróleo e gás russos elevaram os preços da energia a níveis recordes. Isso desestabilizou a indústria alemã e europeia. Em pouco tempo, a Alemanha passou de “motor industrial da Europa” para uma fase de estagnação e recessão que já dura três anos consecutivos. França e Itália tiveram um desempenho um pouco melhor, e a economia britânica está claramente em frangalhos, sem sinais de recuperação.

Para complicar ainda mais a situação, as elites europeias estão cada vez mais obcecadas com a ideia de que a Rússia de Putin está prestes a invadir a Europa e “acabar com a democracia”. É difícil dizer se elas realmente acreditam nisso, mas sua resposta é, de qualquer forma, pressionar por uma presença militar permanente dos EUA na Europa. Ao mesmo tempo, sob pressão dos EUA, os Estados-membros da UE estão impondo sanções e tarifas sobre produtos chineses, mais um exemplo de seu papel como vassalos subservientes a Washington.

Enquanto isso, os gastos públicos na Europa estão aumentando rapidamente, principalmente devido ao forte aumento dos gastos militares, cuja participação no PIB provavelmente mais que dobrará até o final desta década. Isso ocorre à custa do investimento produtivo, das medidas de proteção climática, dos serviços públicos e dos benefícios sociais. Não é surpresa, portanto, que forças reacionárias, com sua agenda racista, anti-imigração, cética em relação às mudanças climáticas e “radicalmente liberal”, estejam rapidamente ganhando terreno em quase todos os países europeus. Nesse contexto, e na ausência de qualquer rumo político corretivo, o declínio relativo da Europa só tende a se acelerar. De Gaulle na França, Kohl na Alemanha e até Thatcher na Grã-Bretanha se revirariam em seus túmulos.

O declínio da UE e sua subordinação aos interesses dos EUA não podem ser compreendidos isoladamente das mudanças mais amplas no equilíbrio de poder global. Trump não está apenas adotando uma política tarifária, mas também alterando as condições subjacentes sob as quais os Estados Unidos exercem seu papel de hegemonia global. Tenta se livrar dos fardos e obrigações da liderança hegemônica e substituí-los por um sistema de domínio irrestrito. No entanto, ao fazê-lo, intensificou um processo que já estava em andamento: o declínio relativo da hegemonia dos EUA, cujas bases econômicas vêm se erodindo há muito tempo. Isso levará a uma ordem multipolar mais estável ou estamos caminhando para uma fase caótica de rivalidades entre grandes potências?

Trump se considera um “negociador” (Dealmaker) par excellence. Em sua opinião, as regras e as instituições estabelecidas são mais obstáculos do que pontos de referência. Ele está convencido de que pode fechar acordos comerciais internacionais no interesse dos Estados Unidos por meio de negociações diretas com os chefes de Estado e de governo da Europa, Japão etc. Da mesma forma, acredita que pode encerrar as guerras na Ucrânia, Oriente Médio, África e Sul da Ásia através de acordos diretos – ou seja, por meio de um jogo de incentivos e ameaças. Essa é a abordagem geral de Trump para todas as questões políticas.

No entanto, por trás de seus ataques, esconde-se uma percepção racional: a de que os Estados Unidos estão perdendo rapidamente seu papel hegemônico global. De um ponto de vista histórico, isso sinaliza uma mudança na ordem mundial. Sim, hoje vivemos de fato em um mundo multipolar, como não se via desde a década de 1930. Após 1945, surgiu uma ordem mundial bipolar na qual o imperialismo estadunidense dominava o mundo, mas enfrentava um adversário ideológico, a União Soviética. O imperialismo norte-americano acabou vencendo essa “Guerra Fria” com o colapso da União Soviética e seus Estados satélites na Europa. A partir de então, a Pax Americana dominou, embora sem muita paz real, enquanto os Estados Unidos continuavam a travar guerras, invasões e intervenções para “pacificar” o mundo em seus próprios interesses e nos de seus “cúmplices” na Europa, Oriente Médio, América Latina e Leste Asiático.

Mas nada dura para sempre, e o capitalismo estadunidense encontra-se agora em uma fase de declínio irreversível. A indústria e as exportações americanas perderam sua supremacia nos mercados mundiais, primeiro para a Europa na década de 1960, depois para o Japão na década de 1970, mas decisivamente para a China no século XXI. No entanto, isso não significa que se deva superestimar o declínio relativo da hegemonia estadunidense. Os Estados Unidos ainda possuem o maior e mais penetrante setor financeiro do mundo. Seus ativos no exterior excedem os de qualquer outro país. O dólar americano continua sendo a moeda de referência para o comércio, os fluxos de capital e as reservas cambiais nacionais. E as suas Forças Armadas continuam superpoderosas, com mais de 700 bases em todo o mundo e um orçamento maior do que o total de gastos militares do resto do mundo junto. Os cúmplices dos EUA agarram-se desesperadamente ao seu escudo protetor para preservar a chamada “democracia liberal”– isto é, os interesses das suas elites capitalistas.

No entanto, existem agora grandes potências rebeldes que burlam as regras dos EUA. Algumas delas, como a Rússia, inicialmente queriam fazer parte do Ocidente; a Rússia chegou mesmo a ser membro do chamado G8 durante algum tempo. A Índia faz parte do Quad-4, uma aliança liderada pelos EUA cujo objetivo é travar a ascensão da China na Ásia. Quando o povo iraniano derrubou o corrupto e brutal em 1979, até os mulás inicialmente procuraram um compromisso com os Estados Unidos e o Ocidente.

Apesar de décadas de apoio a governos opressivos do apartheid pelos Estados Unidos e seus aliados, a África do Sul pós-apartheid também estava muito interessada em se juntar ao Ocidente democrático. No entanto, todos os Estados que hoje fazem parte do chamado grupo BRICS foram rejeitados pelo sistema de alianças liderado pelos EUA. O chamado Consenso de Washington, a plataforma ideológica dos sucessivos governos americanos, visava, em vez disso, a mudança de regime na Rússia, no Irã e, acima de tudo, na China. Dessa forma, abriu caminho para um mundo multipolar.

Todavia, os BRICS não representam uma alternativa coerente ao domínio dos EUA. Portanto, a ideia de que uma ordem mundial multipolar possa substituir a hegemonia americana é prematura. É verdade que a Pax Americana, como existiu após a Segunda Guerra Mundial e novamente após o colapso da União Soviética na década de 1990, não existe mais hoje. Mas o chamado grupo BRICS é uma associação heterogênea e organizacionalmente frouxa de potências regionais, localizadas principalmente nas regiões mais populosas, mas frequentemente também mais pobres do mundo e com poucos interesses comuns. Não é o BRICS como tal que representa o verdadeiro desafio à hegemonia estadunidense, mas o poder econômico emergente da China, um adversário potencialmente muito mais forte e resiliente do que a União Soviética jamais foi.

O declínio da hegemonia dos EUA também levanta a questão das alternativas progressistas. Três tendências se destacam: primeiro, o apoio ao nacionalismo econômico, a ideia de que isolar a economia nacional pode proteger empregos e salários da concorrência global. Segundo, um lamento surpreendentemente nostálgico pelo fim do livre comércio, expressão de um medo do fortalecimento do nacionalismo. E, terceiro, a orientação para a ideia de multipolaridade e os BRICS, vistos como uma alternativa progressista ao imperialismo estadunidense. Nenhuma dessas três orientações estratégicas parece convincente. Então, como seria uma perspectiva de esquerda que não estivesse presa no nacionalismo, na nostalgia do livre comércio ou em uma orientação para uma multipolaridade capitalista fragmentada e ineficaz?

A “esquerda” que você descreve é o que eu chamaria de esquerda reformista, liberal ou social-democrata. Essa esquerda pressupõe que não há alternativa ao sistema capitalista porque qualquer ideia de socialismo já desapareceu há muito tempo. Em sua concepção, sua tarefa é moldar o capitalismo para torná-lo mais justo para a maioria, sem prejudicar essencialmente os interesses do capital, pois, afinal, isso seria matar a galinha dos ovos de ouro. No entanto, essa esquerda perdeu influência porque a galinha capitalista há muito tempo começou a botar poucos ovos, e estes beneficiam cada vez mais apenas a minoria dominante.

Durante a “grande moderação” que começou na década de 1990, a esquerda liberal elogiou o sucesso da globalização e do livre comércio. No entanto, a crise financeira global, a grande recessão que se seguiu, a longa depressão da década de 2010, o colapso econômico causado pela pandemia em 2020 e a espiral inflacionária resultante do custo de vida deixaram uma coisa clara: o capitalismo do século XXI é incapaz de atender às necessidades sociais da maioria da população nos Estados Unidos, na Europa e no resto do mundo.

O liberalismo e a ideia de reformas graduais, outrora incorporados com sucesso pela esquerda liberal, estão agora desacreditados. Em vez disso, um nacionalismo crasso tornou-se amplamente aceito, que se manifesta em atitudes hostis em relação às grandes empresas e no racismo anti-imigração nos Estados Unidos e na Europa (por exemplo, cerca de 70% das pessoas detidas em campos de internamento do ICE nos Estados Unidos não tinham condenações criminais e, entre as restantes, muitas foram detidas apenas por delitos menores, como infrações de trânsito). Trump e seus seguidores do MAGA, Farage no Reino Unido e movimentos similares em outros países europeus defendem um retorno aos anos sombrios do fascismo da década de 1930, uma evolução que, em última análise, levou a uma guerra mundial devastadora. Para enfrentar isso, a verdadeira esquerda deve partir da premissa de que o sistema capitalista que domina o mundo hoje está em crise irreversível.

A questão da multipolaridade me parece mais complexa. Para alguns, significa simplesmente fortalecer os Estados capitalistas do Sul global. Para outros – e esta é a perspectiva mais interessante – trata-se de romper o domínio ocidental e criar mais espaço de manobra para projetos progressistas que, de outra forma, seriam sufocados pela hegemonia dos Estados Unidos.

Podem os BRICS constituir uma contraforça decisiva ao imperialismo liderado pelos EUA e sua aliança cada vez mais ambiciosa com a OTAN? Acredito que não. Economicamente, os BRICS – mesmo em sua forma expandida BRICS+, que também inclui a Indonésia, o Egito e possivelmente a Arábia Saudita – nada mais são do que um agrupamento informal no qual a China é a potência econômica dominante. Os outros membros são comparativamente fracos ou fortemente dependentes de um único setor, principalmente energia e matérias-primas.

A atratividade financeira dos BRICS, incluindo seu novo banco de desenvolvimento, permanece fraca em comparação com as instituições do capital ocidental. Em termos políticos, os líderes dos países BRICS perseguem interesses e ideologias muito diferentes. A Rússia é uma autocracia clientelista; o Irã é dominado por uma elite religiosa islâmica; a China, apesar de seu enorme sucesso econômico, é um Estado unipartidário; a Índia é governada por um partido nacionalista hindu, anteriormente fascista, que reprime qualquer tipo de oposição. Esses governos não defendem o internacionalismo nem a democracia operária. Dentro desses países, para usar sua própria expressão, não há margem de manobra. O que seria necessário, em vez disso, seria a derrubada desses regimes pelos movimentos operários para estabelecer democracias verdadeiramente socialistas, capazes de impulsionar a mudança internacional.

O surgimento de uma ordem mundial multipolar no século XXI é consequência do declínio relativo do capitalismo estadunidense, especialmente desde a crise financeira global e a grande recessão que se seguiu. Mas é uma ilusão perigosa acreditar que potências resilientes sejam uma força para o internacionalismo, que reduziriam a desigualdade e a pobreza globais ou que deteriam o aquecimento global e a iminente catástrofe ecológica. Isso requer uma internacional de governos socialistas.

Se um governo socialista chegasse ao poder em uma grande economia, isso abriria espaço para que outros países se opusessem ao imperialismo. Um governo assim poderia cooperar com Estados fora da esfera de influência dos EUA, como Venezuela ou Cuba, que atualmente têm margem de manobra muito limitada. Mas, sobretudo, poderia inspirar o movimento por governos socialistas democráticos em todo o mundo.

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