04 Outubro 2025
“Nada ilustra melhor a irrelevância da ONU no século XXI do que a questão das mudanças climáticas. (...) O IPCC emite alertas cada vez mais severos sobre os danos do aquecimento global. Mas cada reunião internacional sobre mudanças climáticas (COP) convocada pela ONU é cada vez mais incapaz de chegar a qualquer acordo sobre a redução das emissões de gases de efeito estufa e, mais uma vez, os governos nacionais ignoram ou rejeitam até mesmo as metas mais brandas de ação global”. A opinião é do Michael Roberts, em artigo publicado por SinPermiso, 23-09-2025. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A 80ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU80) teve início ontem em Nova York. O tema deste ano é “Melhores juntos: 80 anos e mais pela paz, pelo desenvolvimento e pelos direitos humanos”, destacando a urgência de atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e revitalizar a “cooperação global”.
Quando as Nações Unidas foram fundadas em San Francisco, em 26 de junho de 1945, o objetivo primordial dos 50 participantes que assinaram a Carta da ONU estava expresso em suas palavras iniciais: “salvar as gerações futuras do flagelo da guerra”. Uma das primeiras conquistas da ONU foi o acordo sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, que delineou padrões globais para os direitos humanos.
“A ONU foi criada não para levar a humanidade ao céu”, disse Dag Hammarskjold, secretário-geral da ONU, “mas para salvar a humanidade do inferno”. Oitenta anos depois, o atual secretário-geral, António Guterres, não pode ter aspirações tão ambiciosas. “Guterres diz coisas bastante ousadas. Mas ele é considerado marginal, não um ator”, diz Mark Malloch-Brown, ex-chefe do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que também atuou como subsecretário-geral de Kofi Annan em 2006. “Na época, a sala de reuniões de Kofi estava lotada de jornalistas. Agora, é mais um mausoléu do que uma sala de imprensa”.
A marginalização das Nações Unidas reflete o declínio de todas as instituições internacionais criadas pelo acordo entre as grandes potências que venceram a Segunda Guerra Mundial, quando se encontraram em Bretton Woods, nos Estados Unidos. O FMI, o Banco Mundial, a ONU e, posteriormente, a Organização Mundial do Comércio foram agências internacionais supostamente criadas para apoiar nações em crise financeira, ajudar a erradicar a pobreza global, alcançar um comércio equitativo e prevenir guerras.
Mas isso sempre foi uma ilusão. Essas agências foram, na verdade, formadas para trabalhar sob a liderança hegemônica dos Estados Unidos, apoiadas por seus sócios menores das principais economias capitalistas. Eram instituições da “Pax Americana” do pós-guerra. A ONU era diferente, pois as políticas e os interesses do imperialismo americano nem sempre eram aprovados.
O Conselho de Segurança da ONU era o órgão executivo da ONU, composto pelas principais potências do pós-guerra. E cada membro tinha o direito de veto para bloquear qualquer ação da ONU para a “manutenção da paz”. Isso significava que a União Soviética e, posteriormente, a China maoísta, podiam impedir a expansão e as guerras dos EUA, embora não o tempo todo: a ONU aprovou a guerra dos EUA contra a Coreia do Norte na década de 1950, uma guerra conduzida pelos EUA sob a bandeira da ONU.
E muitas outras forças de paz da ONU foram usadas para garantir o status quo dos interesses ocidentais nos últimos 80 anos. Mas, cada vez mais, devido ao veto soviético/chinês, os Estados Unidos tiveram que promover seus objetivos de guerra global fora da ONU: Vietnã na Ásia; intervenção da OTAN nos Bálcãs; e ação direta dos EUA em Cuba, Granada, Líbia e outros Estados. Os objetivos de “paz” da ONU foram cada vez mais ignorados à medida que os Estados Unidos expandiam seu poder militar (com mais de 700 bases ao redor do mundo).
Um ponto de inflexão crucial foi o colapso da União Soviética e seus Estados satélites no início da década de 1990. Parecia que os Estados Unidos tinham carta branca para fazer o que quisessem, usando a fachada da aprovação da ONU. Mas, com as duas invasões do Iraque na década de 1990 e, depois, em 2003, os líderes estadunidenses descobriram que não podiam usar a ONU para apoiar suas ambições.
Em 2003, após uma série de mentiras grotescas sobre as supostas “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein terem sido apresentadas à Assembleia Geral da ONU para justificar a invasão do Iraque e a mudança de regime, os Estados Unidos finalmente decidiram ignorar a aprovação da ONU e confiar na “coalizão dos dispostos” — isto é, a aliança de potências imperialistas que sempre ajudou a apoiar a política estadunidense.
A nova estratégia política do imperialismo estadunidense era agora o Consenso de Washington, ou seja, que as “democracias” do Ocidente deveriam se aliar para enfraquecer e derrotar as potências “autocráticas” da Rússia, Irã e Ásia. As regras internacionais para a ordem mundial seriam definidas pelo núcleo imperialista sem qualquer contribuição ou consulta à ONU.
No entanto, as tendências da economia global derrubaram o Consenso de Washington. Longe de governar economicamente, o capitalismo estadunidense estava em relativo declínio. Esse declínio havia começado em meados da década de 1970, quando as economias capitalistas europeias ganharam participação na indústria, seguidas pelo Japão.
E, na década de 1990, a China emergiu de seu atraso ancestral e ingressou na Organização Mundial do Comércio. Os Estados Unidos mantiveram apenas sua superioridade em serviços, finanças e poderio militar, e o controle do FMI, do Banco Mundial e de outras agências de “ajuda ao desenvolvimento”. O “privilégio exorbitante” dos Estados Unidos de deter a moeda de reserva e de transação mundial, o dólar, foi gradualmente minado.
Esse declínio relativo foi aceito com relutância por sucessivas administrações estadunidenses, enquanto a economia global parecia estar se expandindo e a lucratividade das corporações americanas aumentava durante a década de 1990 e o início dos anos 2000. Mas o colapso financeiro global e a subsequente Grande Recessão, que afetou todas as economias capitalistas do mundo, mudaram tudo isso.
A globalização – isto é, o crescimento exponencial do comércio global e dos fluxos de capital – chegou ao fim. O capitalismo estadunidense não podia mais depender tanto da transferência de valor por meio do comércio e dos retornos sobre o capital para subsidiar seus déficits e dívidas, como fizera durante décadas desde os anos 1980. Era um novo mundo com novas potências econômicas que resistiam às tentativas dos EUA de abocanhar uma fatia maior do bolo.
Os Estados Unidos estavam cada vez mais dispostos a usar as instituições de Bretton Woods para promover seus interesses (o internacionalismo foi substituído pelo nacionalismo), o que culminou em Donald Trump e no MAGA. A ONU não só deveria ser contornada, mas, ainda mais, minimizada e atacada. Como Jeane Kirkpatrick, embaixadora de Ronald Reagan na ONU, sugeriu, os Estados Unidos gostariam de deixar a ONU, mas simplesmente “o esforço não valeu a pena”. Os Estados Unidos de Donald Trump retiraram-se da OMS e do Conselho de Direitos Humanos da ONU; enquanto o Conselho de Segurança está paralisado pelos conflitos na Ucrânia e em Gaza, uma guerra comercial crescente e uma crise de financiamento das agências da ONU.
Nada ilustra melhor a irrelevância da ONU no século XXI do que a questão das mudanças climáticas. O Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (IPCC), patrocinado pela ONU, compila e apresenta evidências científicas sobre o aquecimento global e as previsões para o futuro do planeta e da humanidade. O IPCC emite alertas cada vez mais severos sobre os danos do aquecimento global.
Mas cada reunião internacional sobre mudanças climáticas (COP) convocada pela ONU é cada vez mais incapaz de chegar a qualquer acordo sobre a redução das emissões de gases de efeito estufa e, mais uma vez, os governos nacionais ignoram ou rejeitam até mesmo as metas mais brandas de ação global.
De fato, o último relatório mostra que os governos planejam aumentar a produção de combustíveis fósseis nas próximas décadas. Esse aumento contraria os compromissos assumidos pelos países nas cúpulas climáticas das Nações Unidas de “abandonar os combustíveis fósseis” e reduzir gradualmente a produção, especialmente de carvão.
Se toda a nova extração planejada for executada, o mundo produzirá mais que o dobro da quantidade de combustíveis fósseis em 2030 do que seria consistente com a manutenção da meta de um aumento da temperatura global de 1,5°C acima dos níveis pré-industriais. A produção projetada para 2030 excede os níveis alinhados com o aquecimento de 1,5°C em mais de 120%.
Além disso, há o desenvolvimento econômico para erradicar a pobreza no mundo. Em setembro de 2015, a ONU concordou com um conjunto de ODS a serem alcançados até 2030. Todos os países supostamente se comprometeram a trabalhar juntos para erradicar a pobreza e a fome, proteger o planeta, promover a paz e garantir a igualdade de gênero. O que aconteceu nos últimos dez anos? Apenas um terço dos ODS está no caminho certo, com poucas perspectivas de progresso significativo nos próximos cinco anos.
O Relatório dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável de 2024 destacou que quase metade dos 17 objetivos apresenta progresso mínimo ou moderado, enquanto mais de um terço estagnou ou está em regressão desde sua adoção. “Este relatório é conhecido como o boletim anual dos ODS e mostra que o mundo está recebendo uma nota baixa”, disse o secretário-geral da ONU, Guterres, na coletiva de imprensa de lançamento do boletim global.
Em relação às guerras e às aspirações de paz mundial, a ONU parece não desempenhar nenhum papel na prevenção de guerras ou na manutenção da paz. Em vez disso, Donald Trump proclama que ele, como líder dos Estados Unidos, a potência hegemônica, está pondo um fim às guerras (sete até agora, segundo Trump). Os Estados Unidos estão conduzindo abertamente negociações globais de “paz”, como lhes convém, e não a ONU. Trump até foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz!
Junto com toda a retórica arrogante de Trump sobre o fim das guerras, a cruel realidade é que o imperialismo estadunidense está intensificando os conflitos em todo o mundo. Trump quer que o Canadá se torne o 51º Estado americano; quer comprar a Groenlândia dos dinamarqueses (apesar de seus habitantes terem seu próprio parlamento autônomo); está começando a sitiar a Venezuela com suas forças armadas. E, claro, acima de tudo, os Estados Unidos continuam a apoiar Israel em sua horrenda destruição de Gaza e ocupação da Cisjordânia, juntamente com o assassinato de centenas de milhares de palestinos, deixando a ONU paralisada.
Como disse Sigrid Kaag, ex-vice-primeira-ministra dos Países Baixos que ocupou vários cargos na ONU, incluindo o de coordenadora especial para o processo de paz no Oriente Médio: “A ONU está em um ponto de irrelevância. Essa é a sua situação. O sonho pode sobreviver, mas ninguém assiste ao noticiário e se pergunta: ‘O que aconteceu na ONU?’”
A triste realidade é que a ONU caminha para o mesmo destino da Liga das Nações no período entreguerras do século XX. A Liga foi fundada em 1920 e durou apenas 18 anos de relativa paz, até que os Estados fascistas da Europa e do Japão lançaram suas invasões. Agora, em 2025, os gastos militares estão aumentando rapidamente em todos os lugares. Os orçamentos de defesa estão dobrando, com os países da OTAN mirando o teto de 5% do PIB em gastos militares até o final desta década, um nível não visto desde a fundação da ONU. Trump renomeou (com razão) o Departamento de Defesa dos EUA para Departamento de Guerra.
O fracasso da ONU é o símbolo organizador do fracasso do capitalismo mundial em unir pessoas e Estados para erradicar a pobreza no mundo, deter o aquecimento global e o colapso ambiental, e prevenir guerras contínuas e intermináveis. Mark Malloch-Brown, ex-chefe do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que também atuou como subsecretário-geral de Kofi Annan em 2006, resumiu a situação da ONU da seguinte forma: “Em muitos aspectos, a ONU é um morto-vivo... Ela nunca se desintegra completamente, e ainda assim continua sendo um cadáver”.
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