23 Outubro 2025
Javier Milei em Washington, no qual o governo argentino teria pactuado a cessão de jazidas estratégicas de lítio e gás, o estabelecimento de uma base norte-americana no extremo sul e a limitação da presença chinesa na economia do país, em troca de uma suposta estabilidade cambial, Donald Trump poderia sentir-se satisfeito com o redesenho neoimperial que atualmente vem implementando na América Latina.
A reportagem é de Daniel Kersffeld, publicada por Página|12, 23-10-2025.
Trata-se de uma engenharia política que, em sentido amplo, visa recuperar o predomínio dos Estados Unidos na região e afastar qualquer competidor que ameace a obtenção dos cada vez mais valiosos recursos naturais, vitais para o transporte, a comunicação, mas, sobretudo, para a indústria da guerra e a tecnologia do futuro.
Os Estados Unidos impulsionam assim uma nova política internacional que, no entanto, remete nossa região aos tempos da Guerra Fria, em um enfrentamento com as principais potências globais que se articula com diversos conflitos, como os relacionados à insegurança e ao combate ao narcotráfico, à economia e à política tarifária, às medidas contra imigrantes deportados e, finalmente, à apropriação de recursos naturais.
O primeiro e mais representativo front dessa renovada ofensiva dirigida desde Washington tem como eixo o Mar do Caribe. O que começou como uma ameaça de Trump ao Panamá, para “recuperar” o canal supostamente sob controle de Pequim, embora na realidade administrado pelo grupo hongkonguês CK Hutchison e cobiçado pelo fundo norte-americano BlackRock, logo derivou em outros problemas.
As reiteradas declarações sobre intervenção direta diante do que Washington considera uma política “demasiado permissiva” com o narcotráfico escondem, na verdade, uma crescente preocupação com os laços comerciais cada vez mais estreitos entre México e China. Essa relação permitiu ao governo de Claudia Sheinbaum alcançar um importante grau de autonomia, sustentado por alta popularidade e por um equilíbrio conveniente entre potências externas.
O confronto direto com o governo de Nicolás Maduro, que passou do discurso à ação militar mediante um inédito deslocamento de forças norte-americanas às costas venezuelanas, teve até o momento como principal resultado o ataque a embarcações supostamente ligadas ao narcotráfico. Paralelamente, a disputa pelo petróleo entre as multinacionais Exxon e Chevron, somada ao conflito pelo Esequibo entre Venezuela e Guiana, elevou a tensão em um território-chave para os Estados Unidos.
Nos últimos dias, a ofensiva no Caribe escalou após o ataque a um navio supostamente vinculado ao narcotráfico e atribuído ao Exército de Libertação Nacional (ELN). A falsa acusação de que Gustavo Petro chefiaria o comércio ilegal de drogas busca não apenas enfraquecer um dos principais críticos de Trump, mas também atingir a esquerda, em um momento em que a coalizão governista colombiana decide seus candidatos para as eleições de 2026. A associação entre o governo colombiano e o narcotráfico constitui, assim, uma tentativa clara de desestabilizar a região caribenha, em meio à insegurança crescente e ao oportunismo político da Casa Branca.
O segundo front envolve Equador, Peru e Chile, em um cenário em que a violência, a exploração de recursos naturais e, sobretudo, a relação com a China operam como fatores centrais nas relações com os Estados Unidos. Sem grande alarde, e aproveitando a baixa legitimidade política, em 10 de outubro, setores do establishment peruano radicados no Parlamento destituíram Dina Boluarte.
Embora não conste formalmente entre as causas de sua queda, a ex-presidente havia se aproximado excessivamente de Pequim, promovendo a construção do estratégico porto de Chancay, financiado pela China, cuja inauguração em 14 de novembro de 2024 contou com a presença de Xi Jinping. Está em curso um projeto ainda mais ambicioso, o megaporto Corío, em Arequipa, de maior calado que Chancay. Empresas chinesas e norte-americanas disputam intensamente o controle do empreendimento, mas o atual presidente José Jeri vem alinhando o país diretamente com Washington.
Daniel Noboa, um dos principais aliados de Trump, oferece o Equador como trincheira para preservar os interesses norte-americanos na região. Sob o pretexto da luta contra a insegurança, marcada pelo avanço de supostas organizações “narcoterroristas”, e em meio à crescente repressão aos protestos sociais, o governo convocou para 16 de novembro um plebiscito sobre o retorno de bases militares estrangeiras em território equatoriano. Isso inevitavelmente evoca a Base de Manta, encerrada em 2009, sob o governo de Rafael Correa. Se o “sim” vencer, o Pentágono controlará parte do Pacífico sul-americano, próximo ao Canal do Panamá.
No Chile, o principal interesse da Casa Branca é interferir nas eleições gerais previstas entre novembro e dezembro. O temor de uma vitória da candidata de esquerda Jeanette Jara leva Washington a fortalecer a oposição ao governo de Gabriel Boric, composta por forças de direita e extrema-direita que já articulam um pacto de apoio mútuo em eventual segundo turno. O controle soberano das reservas de lítio e outros recursos estratégicos está diretamente vinculado ao resultado dessas eleições.
Por suas implicações geopolíticas para toda a América do Sul, o caso da Bolívia é crucial para o projeto hegemônico de Trump, especialmente após a vitória de Rodrigo Paz em 19 de outubro. A implosão do modelo político e econômico do MAS foi aproveitada pela Casa Branca, que agora busca promover uma guinada à direita, possivelmente rompendo acordos prévios com China e Rússia sobre a exploração de lítio, gás e outros recursos estratégicos. O domínio total da Bolívia pela direita era um objetivo antigo de Washington, desde os governos de Evo Morales e Luis Arce.
O último front, o Atlântico, é provavelmente o mais complexo para Trump. Lula da Silva demonstrou força e liderança ao enfrentar a política tarifária imposta pelos Estados Unidos, além de afirmar sua autonomia ao julgar e condenar Jair Bolsonaro por sua responsabilidade na tentativa de golpe de Estado de 2022, apesar das pressões pela sua libertação.
O Brasil representa hoje o principal obstáculo ao plano político de Trump, considerando também a projeção internacional do governo e suas alianças estratégicas no âmbito dos BRICS e com o Sul Global. O fato de o país ser o terceiro maior do mundo em reservas de terras raras lhe confere um peso geopolítico singular. Seria por isso que Trump recentemente aceitou negociar suas relações políticas e econômicas com Lula?
O plano-mestre de Donald Trump está em plena execução e aparenta ser, por ora, um modelo de sucesso. No entanto, a coerção constante pode levar a cenários muito mais complexos. Apesar de todos os seus problemas e contradições, e mesmo com governos cúmplices e subordinados, a história da América Latina demonstra que a identidade e a defesa de seus recursos sempre prevalecem sobre os imperativos externos, sobretudo daqueles poderes que, em meio a tensões e conflitos, pouco compreendem os direitos e a soberania dos povos.
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