24 Novembro 2025
A cúpula de Joanesburgo destaca a luta entre aqueles que defendem o multilateralismo baseado em regras e aqueles que pressionam por um ataque a esse sistema.
A informação é de Andrea Rizzi, publicada por El País, 23-11-2025.
A cúpula do G-20 que acontece em Joanesburgo neste fim de semana é um retrato nítido da sangrenta batalha entre aqueles que desejam manter viva uma ordem multilateral baseada em regras e aqueles que estão orquestrando uma tentativa descarada de demoli-la, a fim de moldar o futuro do mundo com base na força, de uma maneira ainda mais implacável do que antes.
O boicote dos EUA à cúpula, o desprezo da Rússia (que enviou um funcionário de terceira categoria), a eloquente ausência do príncipe herdeiro saudita — recentemente recebido na Casa Branca, onde Trump o apoiou dizendo que o esquartejamento de um jornalista saudita em um consulado do Reino do Deserto na Turquia é apenas uma das coisas que acontecem na vida — ou do presidente da Argentina — um país que acaba de receber um resgate econômico de Washington e se recusou a assinar a declaração conjunta — são o emblema do ataque.
Essa situação assumiu um tom ainda mais sombrio quando um plano de paz para a Ucrânia, elaborado pelos assessores de Trump sem envolver o país invadido ou os europeus, veio à tona pouco antes da cúpula. Trata-se de uma iniciativa unilateral que replica esquemas transacionais baseados, em grande parte, na lógica do ganho material para Washington. No caso da Ucrânia, os EUA buscam lucrar com os esforços de reconstrução e os recursos minerais. No caso de Gaza, esse mesmo objetivo emerge, juntamente com o interesse em fazer negócios com as ricas autocracias sunitas que Israel desafiou com um ataque ao território do Catar. O mesmo se aplica à mediação entre Azerbaijão e Armênia, onde se busca garantir a exploração de um lucrativo corredor de transporte e energia.
Por outro lado, surge uma galáxia heterogênea de países que tentam resistir à demolição, seja por princípio ou porque isso lhes convém, dada a sua atual falta de poderio militar e tecnológico. Assim, em Joanesburgo, países do Sul Global e da Europa convergiram para tentar salvar uma declaração conjunta que os Estados Unidos tentaram sabotar.
Washington, que deixou sua cadeira vazia sob o argumento falacioso de que um genocídio estava sendo cometido contra a população branca do país na África do Sul, tentou argumentar que, como o G-20 opera por consenso, uma declaração conjunta não poderia ser adotada em sua ausência. Mas a presidência sul-africana recusou e, ativamente apoiada por outros — incluindo os europeus —, insistiu na opção de uma declaração conjunta.
“Não podemos permitir que nada diminua o valor, a importância e o impacto da primeira presidência africana do G-20”, disse Cyril Ramaphosa, presidente da África do Sul. Seu ministro das Relações Exteriores, Ronald Lamola, foi ainda mais explícito em declarações à emissora pública SABC: “A plataforma multilateral não pode ser paralisada pela ausência de alguém que foi convidado. O G-20 não se resume aos Estados Unidos. Trata-se de todos os seus membros. Somos todos membros iguais do G-20.”
A declaração é um documento de 30 páginas desprovido de grandes compromissos políticos. Tal como o acordo alcançado neste sábado na COP-30 em Belém, que também se baseia num denominador comum baixo, demonstra que o multilateralismo não está morto, mas a sua eficácia está seriamente comprometida pela atual configuração geopolítica mundial.
Diferentes frentes do ataque
O ataque é evidente e está sendo travado em várias frentes. Envolve o enfraquecimento das instituições internacionais — sabotando seu funcionamento por meio de estruturas ou financiamento —; a violação dos princípios da ONU, sejam eles integridade territorial, soberania ou direitos humanos; o retrocesso democrático; a negação das mudanças climáticas; e políticas regressivas em matéria de direitos civis.
A luta não se dá entre dois blocos claramente definidos. A UE e alguns dos seus Estados-membros não se mobilizaram para defender um mundo baseado em regras no caso de Gaza. A China — cujo líder, Xi Jinping, também não viajou a Joanesburgo — declara-se defensora da ordem multilateral baseada em regras, mas não hesita em desconsiderar as decisões dos tribunais internacionais quando lhe convém, ou em impor medidas económicas coercivas quando beneficia de uma posição de força.
“Usar a dependência como arma só cria perdedores. Precisamos retornar a um sistema baseado em regras”, disse a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em um discurso na sessão de abertura da cúpula que, sem dúvida, se referia à China, mas poderia ser aplicado igualmente aos Estados Unidos.
A declaração conjunta baseia-se nas principais áreas promovidas pela presidência sul-africana para abordar questões de interesse do Sul Global. Inclui seções dedicadas à resiliência e resposta a desastres climáticos, à sustentabilidade da dívida e à exploração justa e sustentável de minerais estratégicos. O texto também aborda conceitos como gênero e mudanças climáticas, que eram considerados tabu pelo governo Trump.
Contudo, a redação do documento de 30 páginas e a posição política de muitos dos signatários não são um bom presságio para progressos concretos significativos com base no acordo. O texto, por exemplo, inclui uma referência à abstenção dos Estados do uso da “força para alcançar aquisições territoriais contra a integridade e a soberania” de outros. Essa passagem foi, sem dúvida, mal recebida pela Rússia, que, no entanto, não se recusou explicitamente a assiná-la. Isso reflete a falta de comprometimento — beirando a inexistência — de muitos que não chegaram ao ponto de se retirar explicitamente do fórum.
“É um grande golpe (para o multilateralismo)”, diz John Kirton, diretor do Grupo de Pesquisa do G-20, que estava em Joanesburgo, referindo-se a todas as ausências. “Nunca antes o líder mais poderoso do G-20, o presidente dos EUA, havia faltado à cúpula. E mesmo que o motivo da ausência seja bilateral, devido a acusações infundadas contra a África do Sul, isso impacta o funcionamento do G-20, pois interrompe a operação da troika de países que se revezam na presidência”, afirma Kirton. Os Estados Unidos assumem a presidência rotativa do G-20 após esta cúpula.
Kirton lembra que o secretário americano do Tesouro, Scott Bessent, anunciou que o G-20 "retornará ao básico", o que, segundo o especialista, significará, entre outras coisas, "menos reuniões ministeriais", provavelmente uma gama mais restrita de tópicos e possível discricionariedade na escolha dos membros. Trump, por sua vez, anunciou que a cúpula de 2026 será realizada em um de seus campos de golfe em Miami. Essas condições dificilmente parecem as melhores para um fórum que, embora não possua poder executivo, é um importante mecanismo de cooperação internacional.
Após o fim da Guerra Fria, o mundo deu passos significativos rumo ao sonho de uma ordem multilateral baseada em regras. A Organização Mundial do Comércio e o Tribunal Penal Internacional foram fundados, o recém-criado Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) foi consolidado e outras iniciativas floresceram. Mas o pêndulo da história oscilou de volta antes que esse sonho pudesse se concretizar. A cúpula do G-20 na África do Sul destaca a batalha global entre aqueles que buscam desmantelar a cooperação multilateral nesta era e aqueles que defendem, pelo menos em parte, essa cooperação.
Leia mais
- Declaração final do G20 aborda guerras e taxação de ricos
- Declaração de Líderes do G20 é aprovada com consenso e trata de taxação de superricos e financiamento climático
- À frente do G20, Brasil priorizou inclusão sobre segurança
- Eleição de Trump esvazia G20 e COP30, eventos centrais para a diplomacia brasileira
- Brasil tem o 4° pior IDH entre os países do G20. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves
- Maioria da população do G20 apoia taxar super-ricos para financiamento climático
- G20 tem que liderar ação climática global, defende secretário-executivo da UNFCCC
- O Brasil poderá colocar o oceano na pauta do G20. Artigo de Rede Ressoa, Monique de Queiroz, Luciana Xavier, Nathália Bernardo e Alexander Turra
- G20 debaterá um imposto mínimo global sobre bilionários para arrecadar US$ 250 bilhões
- Taxação dos ultrarricos e gigantes digitais enfrenta resistências no G20 e na OCDE
- Chefe do Clima da ONU urge G20 a dar um passo à frente na ação climática global
- E se 3 mil ‘bilionários’ pagassem 2% sobre o seu desempenho? Brasil refina sua proposta de imposto global
- Um balanço do Brasil à frente do G20
- Francisco propõe aos líderes do G20 uma “Aliança Global contra a Fome e a Pobreza”
- Francisco: “A fome é um insulto que deveria fazer corar toda a humanidade e mobilizar a comunidade internacional”
- Quando se terá pressa para acabar com a fome? Artigo de Lívia Ferrari
- "A fome é criada antes de a temperatura subir". Entrevista com Vandana Shiva
- Papa Francisco no G7: “A inteligência artificial é um instrumento fascinante e tremendo”
- E se 3 mil ‘bilionários’ pagassem 2% sobre o seu desempenho? Brasil refina sua proposta de imposto global
- Lula aprofunda entendimento com o Papa no combate à fome
- O imposto global. Artigo de Joseph E. Stiglitz
- G7, entrevista com Lula: “Uma força-tarefa para vencer a fome no mundo. É hora de taxar o clube super-rico"
- O Papa aos sete grandes: “A IA não deve tornar-se um instrumento de guerra”
- Eleições na União Europeia e encontro do G7 confirmam tendências sobre a Rússia. Artigo de Francesco Sisci
- G7: Francisco discursa na sexta-feira em sessão sobre inteligência artificial