23 Mai 2025
Nova lei da África do Sul permite desapropriação de terras abandonadas sem indenização. Para o presidente americano Donald Trump, regra promove "genocídio branco" da minoria afrikaner.
A reportagem é publicada por Deutsche Welle, 22-05-2025.
A nova Lei de Desapropriação da África do Sul, assinada pelo presidente Cyril Ramaphosa em 23 de janeiro, tem provocado reação cada vez maior da Casa Branca e alimentado tensões em torno da desigualdade racial e da propriedade de terras no país africano.
Nesta quarta-feira (21/05), por exemplo, o presidente dos EUA, Donald Trump, tentou constranger Ramaphosa e disse, em coletiva de imprensa ao seu lado, que o país promove um "genocídio" contra a população branca ao supostamente permitir "ataques violentos" contra a minoria branca afrikaner, descendentes de holandeses que colonizaram o país - também são conhecidos como bôeres.
A nova lei agrária sul-africana substitui uma norma de 1975, quando o país vivia sob o regime de segregação racial do Apartheid. Ela permite a desapropriação de terras privadas de qualquer proprietário, branco ou não, para fins públicos e sob algumas circunstâncias.
Por "fins públicos" a legislação entende como projetos de infraestrutura, a expansão de serviços públicos, conservação ambiental ou distribuição equitativa de recursos, como moradia.
A polêmica gira em torno de um dispositivo que permite ao governo, em casos mais raros, confiscar terras sem pagar qualquer indenização.
A cláusula limita a "indenização nula" apenas a terras improdutivas, abandonadas ou degradadas ou quando a propriedade acumula dívidas.
O partido Congresso Nacional Africano (CNA) de Ramaphosa defende a lei como um marco significativo na transformação do país, mas os membros do recém-formado governo de coalizão da África do Sul contestam a proposta, que veem como uma ameaça à propriedade privada.
O segundo maior partido da coalizão, a Aliança Democrática (DA), entrou nesta segunda-feira com uma ação judicial para anular a nova regra, afirmando que ela viola a Constituição sul-africana.
A lei "causa enormes problemas para atrair crescimento e investimentos", disse o líder do partido, John Steenhuisen.
Por outro lado, propostas anteriores para corrigir a distribuição de terras no país geraram frustração entre membros da maioria negra dado o seu ritmo lento e baixo poder de implementação. Elas previam, por exemplo, indenização dentro do valor de mercado para expropriação de terras abandonadas.
A visão crítica da nova lei é compartilhada pela Casa Branca. A tese de "genocídio branco" propagada por Trump é reproduzida há anos em grupos de ultradireita e ganhou força desde o fim do Apartheid. O presidente americano argumenta que assassinatos de fazendeiros brancos em áreas rurais remotas da África do Sul são prova de uma campanha de limpeza étnica, e não resultado de um crime violento comum.
Este também é o entendimento de seu conselheiro, Elon Musk, que nasceu na África do Sul. Ele acusa o governo sul-africano de políticas "anti-brancos".
Na quarta-feira, Trump também tentou emboscar seu homólogo sul-africano ao, além de acusá-lo de genocídio, exibir um vídeo e capturas de tela com imagens que provariam os assassinatos em massa contra brancos.
No entanto, diversas agências de checagens indicaram que afirmações presentes nas gravações são falsas ou retiradas de contexto. A agência de notícias Reuters, por exemplo, identificou que uma destas captura de tela usadas por Trump saíram de um vídeo publicado pela própria Reuters, mas gravado na República Democrática do Congo (RDC), e não na África do Sul.
"São todos fazendeiros brancos que estão sendo enterrados", disse Trump, segurando uma cópia impressa de um artigo acompanhado da imagem.
Na verdade, o vídeo publicado pela Reuters em 3 de fevereiro mostrava trabalhadores humanitários levantando sacos de corpos na cidade de Goma, na RDC, vítimas de embates com os rebeldes M23, apoiados por Ruanda.
Ramaphosa, sentado em uma cadeira ao lado de Trump, rebateu as acusações. "Se houvesse um genocídio de fazendeiros africânderes, posso apostar que esses três senhores não estariam aqui", disse Ramaphosa, referindo-se aos golfistas sul-africanos Ernie Els e Retief Goosen e ao bilionário Johann Rupert, todos brancos, que estavam presentes na sala.
Ainda que existam fazendeiros que tenham sido mortos, os números são pequenos no contexto mais amplo do crime na África do Sul, que tem uma das taxas de homicídio mais altas do mundo.
A polícia sul-africana registrou 26.232 assassinatos em todo o país em 2024. Apenas 44 vítimas eram ligadas a comunidades agrícolas - a maior parte trabalhadores. Oito eram proprietários rurais. Não há dados específicos sobre a raça desses fazendeiros, mas, segundo governo, a população negra é a principal vítima do total de homicídios.
A propriedade da terra é uma questão controversa na África do Sul, onde 72% das terras agrícolas pertencem à minoria branca, que compõem apenas 7% do total da população sul-africana. Pessoas negras são donas de apenas 4% das propriedades no país.
A distribuição desigual reflete o período do Apartheid, quando uma lei reservou a maior parte das terras produtivas a pessoas brancas. Em 1950 o Partido Nacional afrikaner aprovou uma lei que obrigou 3,5 milhões de pessoas negras a deixarem suas propriedades.
Três décadas após o fim do regime de segregação racial, muitos fazendeiros afrikaners temem que a reforma agrária prevista na nova Lei de Desapropriação leve ao confisco generalizado de suas fazendas, como aconteceu no início dos anos 2000 no vizinho Zimbábue, então sob a ditadura de Robert Mugabe.
À época, mais de 4 mil fazendeiros brancos perderam suas terras no Zimbábue, levando a produção agrícola a despencar de maneira dramática. Muitas dessas terras foram distribuídas para apoiadores do regime cleptocrático de Mugabe. Antes um exportador de alimentos, o país passou a se tornar um importador. Além disso, parte da população começou a sofrer com desnutrição em meio ao colapso generalizado da agricultura e economia.
O governo vê a reforma agrária como necessária para adequar a legislação pós-Apartheid.
"A ideia é que nossa liberdade não foi completa em 1994 porque a promessa de emancipação econômica não foi cumprida", disse o especialista jurídico Tembeka Ngcukaitobi.
Ele observou que a lei exige 17 etapas antes da desapropriação da terra. Entre elas, só pode acontecer se for "justa e equitativa" e não pode ser exercida se a autoridade não tentar chegar a um acordo com o proprietário.
Mas para Kellie Kriel, CEO da ONG afrikaner Afriforum essa não é uma salvaguarda suficiente.
"A lei cria um receio válido de que abre caminho para a apropriação de terras", disse ele, acrescentando que os agricultores temem que as diretrizes possam ser usadas de forma abusiva.
Em fevereiro, Trump já havia assinado uma ordem para bloquear qualquer ajuda humanitária à África do Sul, ofereceu status de refúgio para afrikaners e expulsou o embaixador sul-africano.
Após a ordem, mais de 20 mil consultas chegaram à Câmara de Comércio Sul-Africana nos Estados Unidos de pessoas interessadas em buscar reassentamento nos EUA. O país já recebeu um primeiro grupo que solicitou o status de refugiado sob estas condições.
Na ocasião, o Ministério das Relações Exteriores da África do Sul disse que a ordem de Trump "carece de precisão factual e não reconhece a profunda e dolorosa história de colonialismo e Apartheid da África do Sul".
O ministério ainda afirmou que a "ordem executiva de Trump prevê o status de refugiado nos EUA para um grupo na África do Sul que permanece entre os mais privilegiados economicamente".