27 Março 2024
"O desafio é enorme e a resposta, incerta. Mas algo parece claro: vêm de novo da África, tão espoliada e tão crucial para a formação da América Latina, ventos de rebeldia e humanidade", escreve Antonio Martins, editor de Outras Palavras, em artigo publicado por Outras Palavras, 16-05-2023.
Quem são os Patriotas do Senegal, que venceram as eleições em seu país ao propor transformações estruturais e formas inovadoras de ação política. Como eles expressam a nova onda de descolonização que mobiliza a juventude no continente.
No processo longo e pedregoso de descolonização da África, um novo capítulo pode ter-se aberto. Na tarde desta segunda-feira (25/3), o presidente senegalês Macki Sall admitiu que as eleições presidenciais de domingo deram vitória ao Pastef – os Patriotas Africanos do Senegal para o Trabalho, Ética e Fraternidade. O partido é peculiar. Formado há apenas dez anos por membros da classe média instruída, empolgou as maiorias jovens, que buscam um horizonte além da pobreza, dos laços coloniais que persistem e da corrupção das elites. Ferozmente perseguido, venceu a repressão estabelecendo em pouco tempo uma nova cultura política, de mobilização nas ruas e formação de comunidade simbólica. Sua tarefa será árdua. Mas ele expressa um novo cenário político em emergência na África – onde não há sinais fortes de neofascismo e o descrédito nas instituições, também presente, está produzindo um efeito oposto: o ressurgir de um sentimento antieurocêntrico.
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Dois personagens emblemáticos materializam o triunfo do Pastef. O presidente eleito é Bassirou Diomaye Faye, um auditor fiscal de 44 anos, que passou os últimos onze meses na prisão (por “desacato a autoridades”) e deixou o cárcere apenas dez dias antes do pleito. Além disso, foi obrigado a concorrer como independente, porque seu partido foi colocado na ilegalidade em julho de 2023. Superou os obstáculos. Com 90% das urnas apuradas, havia alcançado 53,8% dos votos, o que levou todos os adversários a reconhecerem sua vitória. Chegará à presidência sem ter nunca exercido cargos políticos. Diz-se influenciado por Cheik Anta Diop, o historiador senegalês que afirmou a centralidade das civilizações ancestrais da África Negra e sua irradiação pelo mundo. Quando indagado sobre os riscos de sua falta de experiência na vida institucional, costuma responder: “Os que conduziram o país desde 1960 [data da “independência” em relação à França] produziram fracassos catastróficos”.
Mas por trás de Diomaye, há Ousmane Sonko, o maior líder popular do Pastef. Também auditor fiscal e seis anos mais velho que o presidente eleito, é deputado na Assembleia Nacional. Conduziu o partido na trajetória arrebatadora em que saltou de 1% dos votos (2017) para 15,6% (2019), 33% (2022) e finalmente a vitória no domingo. Antes disso, criou o primeiro sindicato de sua categoria (em 2005). Escreveu Petróleo e Gás no Senegal – crônica de uma espoliação, em que denuncia o sequestro das riquezas do país pelas transnacionais e oligarquias nacionais associadas, e Soluções por um Novo Senegal. Seria o candidato natural, mas sua postulação foi bloqueada pelo Judiciário. Acusado de “insurreição e complô”, também estava encarcerado até há dez dias. Foi capaz de um movimento extraordinário de transferência de votos. Até há poucos meses, Diomaye era um desconhecido do público. Mas o slogan Diomane é Sonko [Sonko mooy Diomane”, em uolofe, a língua predominante no país] e a empolgação popular pela possibilidade de mudança convenceram os eleitores.
O Pastef é uma das resposta à longa crise que se abateu sobre a África a partir do início dos anos 1990. Nas décadas anteriores, as independências nacionais e a disputa entre União Soviética e Estados Unidos por exercer influência geopolítica sobre o continente haviam produzido algum progresso. Mas com o fim do “socialismo real”, também Washington viu-se desinteressada. Os partidos africanos da primeira onda independentista burocratizaram-se, envelheceram e perderam impulso.
Mas após um período de letargia, ressurgiu a busca de um futuro autônomo. No Senegal, isso se deu à margem das correntes anteriores. Em seu site, o Pastef narra a própria história de forma curiosa. Em janeiro de 2014 – portanto, sob influência das revoltas árabes e europeias de três anos antes – uma nova geração está convencida da necessidade de superar a estagnação, a pobreza e a injustiça social. Lutas esparsas alcançam vitórias isoladas, como a formação de sindicatos no setor público. Seus líderes dão-se conta da necessidade de ampliá-las. Consideram-se “uma dinâmica”, diz a narrativa. Rejeitam a ideia de partido político – da qual “tinham horror”. Mas reveem a posição ao serem estimulados, por simpatizantes, a disputar o poder. Assumem um nome (Pastef – Patriotas do Senegal) que expressa esta ambiguidade partido-movimento. Afirmam “promover uma doutrina pragmática, que não se confunde com nenhuma das ideologias historicamente reconhecidas: socialismo, comunismo, liberalismo, etc.”.
Porém, o vasto programa (de 15 capítulos e 274 páginas) que Diomaye e Sonko apresentam à sociedade senegalesa em 2024 tem claro sentido antineoliberal e panafricano. Aponta para a luta pela soberania do país (por meio da recuperação das riquezas nacionais, da industrialização e da recuperação da infraestrutura); para o combate contra a desigualdade (a ser alcançada principalmente por meio de serviços públicos universais de qualidade); para a garantia de trabalho digno e para uma vasta reforma política, que estabeleça formas de controle popular sobre o poder. Entre os meios de alcançar o projeto estão o fortalecimento do Estado (“e de seu papel primordial no desenvolvimento econômico e social”), uma reforma agrária camponesa com transição agroecológica (42% da população vivem no campo) a independência monetária (propõe-se a ruptura com o franco CFA, atrelado ao euro e emitido pela França) e a integração africana.
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O domingo das eleições, foi de festa em Dakar, a capital, e em todo o país. Os sinais da vitória do Pastef eram tão claros que, relata o Guardian, uma população segura do resultado tomou as ruas, cantou e dançou ao som de tambores e vuvuzelas, assim que as urnas se fecharam. Mas os três últimos anos foram de intensas batalhas de rua. O ascenso dos Patriotas do Senegal nos pleitos anteriores, somado ao desgaste crescente do governo, sugeria uma mudança política à vista.
Foi então que o presidente Macki Sall, no poder desde 2012, recrudesceu. Festejada internacionalmente, a “democracia” senegalesa não suportava o avanço de um partido-movimento comprometido com mudanças estruturais na sociedade. No início de 2021, Ousmane Sonko foi preso pela primeira vez, acusado falsamente de estupro (mais tarde, ele foi inocentado e a acusadora reconheceu ter sido subornada para fazer a denúncia). Eclodiram os primeiros protestos. Eles voltaram, mais intensos, há nove meses, quando Sonko foi condenado em definitivo (para que não pudesse participar das eleições) e o Pastef, proscrito (sob alegação insustentável de “estimular o terrorismo”). O governo respondeu com chumbo e sangue. A polícia matou 28 pessoas, incluindo três adolescentes. Atiradores paramilitares em trajes civis foram flagrados ao lado das forças policiais. A internet móvel foi bloqueada e o acesso às redes sociais e serviços de mensagens, fortemente restringido. Cerca de mil opositores, entre eles jornalistas e centenas de ativistas dos Patriotas do Senegal, presos sem julgamento.
As restrições estimularam o Pastef a buscar ainda mais intensamente formas não-convencionais de ação política. A chave foi uma capilarização radical da campanha, uma deriva para a micropolítica, pervasiva e envolvente. Se os eventos formais estavam proibidos, por que não transformar os atos quotidianos da vida social em espaços para a política? Numa matéria na Rádio França Internacional, a jornalista Léa-Lisa Westerhoff registra, surpresa, as cenas que presenciou em Dakar. “Sonkorizar, eis uma palavra que aprece no falar quotidiano, nas últimas semanas: ‘Sonko, sentimos sua falta’, cantada em uolofe. Aconteceu numa partida de futebol entre amigos, num bairro da periferia, há quatro dias. Cenário idêntico durante a partida entre as seleções do Senegal e Argélia, há uma semana. Casamentos e shows são igualmente sonkorizados e postados nas redes sociais”. O movimento repercutiu na diáspora senegalesa pelo mundo — e de lá de volta para o Senegal… Em 21 de setembro, em Paris, um show do artista senegalês Ytoussou N’Dour foi interrompido durante vários minutos, por uma plateia que cantava: Liberez Sonko. As imagens viralizaram em Dakar.
O processo foi além — inclusive com episódios notáveis de ressignificação simbólica. Em março de 2023, uma onda de repressão às manifestações populares resultou na imposição de braceletes eletrônicos a centenas de ativistas do Pastef. Surgiram rapidamente, em resposta, os braceletes da liberdade. Eram faixas vermelhas e verdes (as cores do partido), gravadas com o mote “Sonko 2024” e usadas orgulhosamente por milhares de simpatizantes. Serviam para arrecadar fundos. Eram vendidas a 1,50 euro cada uma, com parte da receita destinada a apoiar as famílias dos presos políticos e outra parcela para sustentar as despesas de campanha. Mas também estabeleciam cumplicidades. O correspondente do Libération, Théo du Couëdic, registra: “Motoristas, cozinheiras, frentistas, vendedores de recargas telefônicas… Dezenas de milhares de jovens e de menos jovens exibem todos os dias este signo de mobilização — ou de resistência — nos quatro cantos do país. ‘Às pessoas que o portam, é comum um taxista oferecer uma viagem, ou um ambulante servir um café. É um estado de espírito’, relata Saliou Cissè, membro de uma seção local do Pastef”.
Foram este enraizamento incomum e esta conversão de política em atitude, mais que apenas discurso, que permitiram ao Pastef fazer Diomaye presidente em tempo-relâmpago. O candidato foi apresentado apenas em 16 de março, dois dias após sua libertação, num comício conduzido por Ousmane Sonko. Nesta segunda-feira, nove dias depois, ele declarava, já na condição de chefe de Estado eleito: “O povo senegalês optou pela ruptura. A eleição consagra antes de tudo a vitória do povo, no combate pela defesa de sua soberania e dos valores democráticos”.
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A esquerda recuou tanto nos últimos dez anos na maior parte da América e da Europa que uma pergunta, cuja resposta antes era óbvia, agora impôs-se. Deve-se questionar e desafiar o sistema político a partir de uma perspectiva pós-capitalista? Ou esta atitude foi capturada sem resistências pela ultradireita, que agora posa de anti-establishment? Às forças antes tidas como “progressistas” restará apenas a defesa da ordem liberal — precisamente no momento em que as maiorias mais a rejeitam?
Visto da África, o cenário parece ser outro. Partidária convicta do capitalismo, a revista Economist mostra, num artigo recente, que “a boina vermelha tornou-se o chapéu mais político”, em todo o continente. Multiplicam-se os movimentos que “evocam o espírito da revolução”, diz o texto. E cita exemplos. Na África do Sul, crescem os Guerreiros da Liberdade Econômica (ou "the Economic Freedom Fighters"), que, ao contrário do que pode sugerir o nome, são uma dissidência marxista-leninista do Congresso Nacional Africano — no governo desde a posse de Nelson Mandela. Em Burkina Faso, Ibrahim Traoré, o capitão do exército que liderou um golpe antioligárquico em 2022 (e está no poder), diz inspirar-se em Thomas Sankara, o presidente comunista assassinado em 1987. Em Uganda, os seguidores do cantor pop Bobi Wine estiveram próximos de vencer uma eleição presidencial — e continuam muito ativos. A revista reconhece, a contragosto: “Para muitos jovens africanos, que olham para o continente e veem que as promessas de democracia, igualdade e dignidade não foram cumpridas, a boina vermelha é certamente um símbolo de uma revolução que não está completa”.
Poderá a vitória do Pastef e de Diomaye Faye, a partir de uma posição de poder, dar novo impulso a este movimento? O desafio é enorme e a resposta, incerta. Mas algo parece claro: vêm de novo da África, tão espoliada e tão crucial para a formação da América Latina, ventos de rebeldia e humanidade.
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África: uma nova insurgência torna-se governo. Artigo de Antonio Martins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU