21 Novembro 2025
"As ciências biológicas e médicas, mais do que quaisquer outras, estão diante dessa dramática encruzilhada: a capacidade de cuidar da saúde da pessoa em sua integridade psicofísica, da qual elas agora dispõem, é cada vez mais atacada por um modelo organizacional baseado na sustentabilidade econômica, que vê no doente uma máquina quebrada e no médico um executor de protocolos", escreve Massimo Cacciari, filósofo italiano, em artigo publicado por La Stampa, 17-11-2025.
Eis o artigo.
Os progressos na pesquisa biomédica, bem como no campo da Inteligência Artificial, visando produzir uma "machina sapiens" indistinguível da inteligência humana, inclusive em sua capacidade de empatia, aumentam com dramática rapidez a desproporção entre o poder do sistema técnico-econômico e as formas institucionais-políticas ainda próprias das democracias ocidentais. Em outros regimes, tal desproporção pode não ser percebida justamente porque a simbiose entre Tecnologia e Política neles já foi realizada, fechando a "gaiola de ferro".
A vocação do cientista, que para Aristóteles é a mais alta expressão de nossa natureza, consiste na pura vontade de conhecer. A ciência da natureza é, antes de tudo, teoria, descobrir e ver a constituição do ser vivo, observar suas relações, descrever sua energia. Mas, cada vez mais, para poder aprofundar seu olhar, o cientista precisará de recursos sofisticados e instrumentos dispendiosos; sua teoria terá que estar intimamente ligada ao progresso tecnológico, condicioná-lo e ser condicionada por ele. E a conexão deste último com o sistema social de produção, com os mecanismos econômicos e de mercado, resulta, portanto, inevitável. Não pode mais haver nenhuma autonomia abstrata do trabalho científico.
Por outro lado, a própria ciência contemporânea combina sua vocação original para o conhecimento em si com o desejo de possuir e transformar o objeto que se conhece para torná-lo “utilitas” para nós. Não deveríamos, portanto, considerar um destino que a ciência contemporânea, tendo chegado a compreender o funcionamento do nosso cérebro, sede de emoções e inteligência, e sua conexão com todo o sistema neurovegetativo, deseje torná-lo seu próprio objeto de manipulação e transformação?
Tudo o que ela em sua história já compreendeu foi tratado dessa maneira e, de alguma forma, reproduzido. Assim, da mesma forma que a natureza "externa" foi um objeto manipulável ao nosso arbítrio, nós mesmos o somos agora. Que limites podem ser impostos a intervenções sobre o nosso patrimônio genético? Que limites existem para a produção do Homúnculo que sai do laboratório do Fausto goethiano? Hoje não haveria nenhum obstáculo teórico, e creio que poucos impedimentos tecnológicos, para "criar" novos sujeitos humanos a partir de células-tronco tratadas e fertilizadas adequadamente. Intervenções para modificar características secundárias são comuns e destinadas a se multiplicar, mas, afinal, desde agora já podem ser direcionadas para "criar" uma nova pessoa.
Podemos argumentar, como muitos fazem, que essas intervenções devem ter o valor de tratamentos; isto é, devem ser limitadas ao tratamento de doenças específicas que não poderiam ser tratadas com a mesma eficácia de outra forma. Mas é evidente a miríade de problemas e dilemas que essa visão acarreta. O que é doença? Que autoridade o decide? Até que ponto é permitido limitar o livre-arbítrio daqueles que desejam recorrer a técnicas de manipulação genética? Mas o problema é ainda mais profundo e tem natureza cultural e política.
A experimentação em um campo tão vasto pode sofrer contratempos e atrasos, mas a experiência histórica demonstra abundantemente que ela jamais poderá ser interrompida naquele laboratório global que já se tornou o mundo científico e, a partir dela, se não falhar, se passará para as aplicações. Essas transições da Pesquisa para o Desenvolvimento, impulsionadas por formidáveis interesses econômicos, estão ocorrendo hoje com uma velocidade inimaginável no passado.
O mundo contemporâneo vive suspenso entre a utopia e a distopia, entre uma possível "felicidade" e o horror mais desumano. Poderíamos até mesmo enfrentar o incurável, assim como despencar na mais monstruosa medicina de classe. Poderíamos transformar nossa existência na Terra em um "bem-estar", assim como realizar pesadelos eugênicos, submetidos à lógica do lucro. A inteligência artificial tem o poder de nos libertar de toda forma de trabalho mecânico e comandado, assim como impor um modelo global, uniforme de inteligência, mensurado com base em seus desempenhos quantitativamente calculáveis e em sua obediência ao sistema.
As ciências biológicas e médicas, mais do que quaisquer outras, estão diante dessa dramática encruzilhada: a capacidade de cuidar da saúde da pessoa em sua integridade psicofísica, da qual elas agora dispõem, é cada vez mais atacada por um modelo organizacional baseado na sustentabilidade econômica, que vê no doente uma máquina quebrada e no médico um executor de protocolos. O direito universal à saúde, uma conquista de um século de lutas sindicais, também promovida por grandes setores de médicos socialmente responsáveis, está se desfazendo em proporção oposta ao crescimento dos conhecimentos e das concretas possibilidades de tratamento que eles poderiam oferecer.
A "solvência" torna-se a característica fundamental que o doente deve apresentar para ser tratado dentro de prazos razoáveis. E, em todo caso, ele será apenas um caso previsto nos arquivos dos Big Data. A telemedicina, essencialmente conduzida por inteligências artificiais, poderia completar o processo. A "machina sapiens" que, segundo seus apologistas, nos conhecerá melhor do que nós mesmos, será não apenas nosso guia, enquanto humanos achatados na dimensão econômica e consumista, mas também nosso médico. Contudo, não é destino que a distopia chegue a se realizar. Certo, dos dois caminhos que se abrem à nossa frente, esse é certamente o mais fácil. A inércia, ou seja, as potências técnico-econômicas fundamentais de nossa época, impulsionam nessa direção.
Mas ainda podem existir cientistas e políticos capazes de denunciar o perigo, de opor à servidão que caracteriza as distopias (a ficção científica contemporânea é sua representação realista) a utopia possível, concreta da libertação.
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