24 Setembro 2025
A condenação dos líderes foi crucial, mas não erradicou a serpente: a ideia do “inimigo interno” ainda é doutrina ensinada nos manuais e vivida nos quartéis. Este artigo revela como os valores golpistas sobrevivem e se reproduzem, exigindo uma vigilância democrática de longa duração.
O artigo é de Marco Mondaini e Capitão Quitaúna, publicado por A Terra é Redonda, 20-09-2025.
Marco Mondaini, historiador, é professor titular do Departamento de Serviço Social da UFPE e apresentador do programa Trilhas da Democracia. Autor, entre outros livros, de A invenção da democracia como valor universal (Alameda).
Capitão Quitaúna é pseudônimo de um capitão na ativa do Exército brasileiro.
Eis o artigo.
“Se a gente botar 50 pelotões em Brasília a gente fecha o STF. Cada um leva o seu” (1º Tenente Osório, 13/09/2025).
Os dois autores do presente artigo possuem em comum o fato de terem estudado na sua adolescência ou juventude em escolas militares, de verem na extrema-direita bolsonarista um inimigo político a ser combatido e derrotado em todos os espaços sociais e institucionais do território nacional, e de serem conscientes do fato de os valores que alimentam o golpismo e o neofascismo em nosso país permanecerem sendo produzidos e reproduzidos dentro dos quartéis e academias militares.
É preciso acrescentar que a motivação que nos levou a redigir as páginas a seguir tem suas origens no questionamento crítico em relação à percepção politicamente irresponsável de algumas vozes do campo da esquerda que (implícita ou explicitamente, moderada ou exageradamente) observaram no julgamento e condenação de Jair Bolsonaro e da sua camarilha golpista, pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, a derrota do neofascismo e do golpismo no Brasil.
Um questionamento crítico que não tem a pretensão de desconsiderar, muito pelo contrário, a importância histórica da condenação de oficiais de alta patente das Forças Armadas brasileiras pela tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado, além da prática de outros três crimes.
Num exercício aproximado daquilo que os historiadores franceses denominaram de “ego-história”, talvez seja pertinente registrar que o primeiro autor deste texto passou quatro anos da sua adolescência na mesma escola em que estudou o condenado a 24 anos de prisão, o ex-comandante da Marinha do governo de Jair Bolsonaro, almirante Almir Garnier: a Escola Técnica do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (Etam). Uma escola, diga-se de passagem, que compartilhava o mesmo espaço físico de um quartel, de uma fábrica e de uma prisão, na Ilha das Cobras.
Já o segundo autor deste texto atravessou quatro anos da sua juventude na mesmíssima academia militar por onde passaram, em períodos distintos, os igualmente condenados general Augusto Heleno, general Walter Braga Netto, general Paulo Sérgio Nogueira, tenente-coronel Mauro Cid e o capitão (e ex-presidente da República) Jair Messias Bolsonaro: a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman).
Por fim, um esclarecimento necessário. Pelo fato de ainda estar na ativa, o segundo autor do artigo apresenta-se aqui identificado, por razões óbvias, com um pseudônimo. Isso, da mesma maneira que cadetes e oficiais do Exército Brasileiro citados ou que tiveram mensagens de WhatsApp transcritas no decorrer do texto.
Pois bem, o presente artigo tem o propósito de dar uma minúscula cota de contribuição para a desconstrução das possíveis ilusões que venham a crescer de tamanho no que diz respeito à potencialidade contida no julgamento e condenação pelo STF daqueles que tentaram interromper o sofrido processo de construção democrática no Brasil durante os quatro anos de governo Bolsonaro – isso, imaginando que, por si só, os valorosos votos dos ministros Alexandre de Moraes, Flavio Dino, Carmen Lúcia e Cristiano Zanin seriam capazes de extirpar as profundas raízes do golpismo e do neofascismo em nosso país, uma tarefa que, na verdade, exigirá das esquerdas uma “guerra de longa duração”, para fazer uso de uma figura de linguagem oriunda dos meios militares, bastante utilizada na teoria política.
Para tanto, num primeiro momento, serão apresentados e comentados alguns dos livros e manuais ainda hoje utilizados dentro das academias militares e nos seus cursos de formação de oficiais, os quais procuram manter viva a retrógrada ideia anticomunista (em verdade, antidemocrática) de que as Forças Armadas possuem a função precípua de combater os inimigos internos da Nação.
Na sequência, abordaremos alguns dos elementos materiais e simbólicos, abertamente autoritários, presentes no cotidiano das academias e quartéis, que insistem em se fazer presentes inobstante a passagem de quarenta anos do fim da ditadura militar em 1985.
Sobre livros e manuais
“Esse bando de FDP leram a sentença debochando e rindo. Hoje no encontro com o ex-condenado também ficaram rindo, zombando. E nós que fomos treinados para guerra, para defender dos inimigos internos, ficamos olhando, sem dar um pior. É uma vergonha. O comando da nossa força é um Lixo!” (Mensagem de um grupo de antigão que frequenta o regimento aq).
“A velha guarda tá revoltada p krl kkkkkkkkkk” (1º Tenente Osório (13/09/2025).
O 1º Tenente Osório, do Exército Brasileiro, é um jovem militar em início de carreira. Não tem mais do que trinta anos de idade e cursou a Academia Militar das Agulhas Negras na segunda metade dos anos 2010. Entretanto, sua forma de pensar o papel a ser desempenhado pelas Forças Armadas no país permanece fiel à dos “antigão que frequenta o regimento”, ou seja, coronéis e generais que cursaram a mesma Academia Militar das Agulhas Negras nas décadas de 1980 e 1990.
Tal qual os generais Augusto Heleno, Braga Netto e Paulo Sérgio (bem como, é claro, o capitão reformado Jair Bolsonaro), o 1º Tenente Osório acredita integralmente na ideia de que a guerra a ser travada pelo Exército Brasileiro – e pelas suas coirmãs Marinha e Aeronáutica – é aquela contra os “inimigos internos” da nação, que, exageros à parte, são atualmente identificados no governo Lula e no Supremo Tribunal Federal, além de, obviamente, no Partido dos Trabalhadores, seus partidos aliados à esquerda e movimentos sociais como o MST e o MTST.
São inúmeras as razões que fazem compreender tal relação de continuidade que remonta, grosso modo, a 1944, quando a escola de formação de oficiais do Exército Brasileiro foi transferida da cidade do Rio de Janeiro para a cidade de Resende, recebendo em definitivo o nome de Academia Militar das Agulhas Negras em 1951.
Para os propósitos do presente artigo, trataremos única e exclusivamente de alguns elementos constituintes do processo de formação desses militares, que, de maneira absolutamente antagônica aos princípios que regem o Estado Democrático de Direito, continuam produzindo e reproduzindo a autoritária noção da existência de “inimigos internos” a serem combatidos numa guerra.
É o que será analisado, no próximo artigo, por meio da discussão sobre alguns livros de história militar e manuais de operações militares que permanecem sendo utilizados no processo de formação e aperfeiçoamento continuado de oficiais do Exército Brasileiro.
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