05 Setembro 2025
"É totalmente inconstitucional qualquer tipo de anistia para quem tentou acabar com a democracia. A democracia não é um oximoro. Não se pode pensar que uma democracia faz haraquiri", escreve Lenio Luiz Streck, professor, parecerista, advogado e sócio fundador do Streck & Trindade Advogados Associados, em artigo publicado por Conjur, 04-09-2025.
Eis o artigo.
O Parlamento quer criar uma crise institucional. Visivelmente. Uma crise se cria quando, deliberadamente, um Parlamento aprova uma lei que sabe de antemão ser inconstitucional e, assim, proporcionar um desgaste ao Supremo Tribunal encarregado da fiscalização da constitucionalidade das leis.
No auge do julgamento dos envolvidos nos atos golpistas, partidos de oposição ligados a um dos réus — o ex-presidente Bolsonaro — articulam a aprovação de anistia para todos os golpistas. Para beneficiar Bolsonaro.
A propalada lei será inconstitucional. Por vários motivos. Em primeiro lugar, há que se rejeitar argumentos (existem muitos divulgados na mídia) de que uma lei de anistia não seria inconstitucional porque a Constituição não proíbe.
Esse parece ser o principal argumento a favor da tese da anistia. Trata-se de uma tese que no direito chamamos de textualista, pela qual “o que a Constituição não proíbe, permite”. Isto quereria dizer que o legislador, toda vez que a CF não estabelecer o contrário ou não dizer algo sobre o tema, pode aprovar qualquer tipo de lei. Ora, pensar assim é fazer pouco caso da Constituição. É pensar que a CF é uma espécie de simples código. Como se a Constituição fosse uma lei ordinária. Ora, isso está superado desde 1803, com o caso Marbury v. Madison. Elementar.
Um exemplo singelo derruba os argumentos textualistas. Se uma lei proíbe cães no parque, um textualista — que defende a constitucionalidade de uma lei de anistia para os golpistas — por certo responderia que “a lei não proíbe ursos”. Logo, são permitidos. Pior ainda: por certo o textualista dirá que, proibidos cães, o cão-guia do cego está impedido de transitar no parque. Esta é a melhor maneira de se saber o conceito de “interpretação textualista”. A interpretação textualista chumba o causídico ou o aluno no exame de Ordem. Ou na prova do terceiro semestre.
Em segundo lugar, temos o precedente Daniel Silveira. Não era proibido expressamente pela Constituição que o presidente Bolsonaro concedesse indulto. Mas o STF, baseado em forte doutrina e na interpretação sistemática, entendeu que o ato contrariou a Constituição. Percebem?
Nesse precedente (ADPF 964), já se vê a pista da inconstitucionalidade de eventual lei anistiando golpistas. Há uma passagem em que se lê: “Indulto que pretende atentar, insuflar e incentivar a desobediência a decisões do Poder Judiciário é indulto atentatório a uma cláusula pétrea prevista no artigo 60 da CF”. Isto é o que se chama “proibição implícita”. Igualzinha à vedação de ursos. Não precisa ser dito. Está implícita a proibição. Chama-se a isso de hermenêutica da função da lei (Fuller, MacIntyre e Wittgenstein).
Que é proibido anistiar a quem comete crime de golpe de Estado já foi percebido na Argentina, pelos tribunais e pela doutrina (Bidart Campos, por exemplo). Por aqui, setores do direito tentam aplicar uma espécie de “textualismo seletivo”.
Ainda sobre o “precedente Daniel Silveira”, consta no acórdão, no voto do ministro Alexandre de Moraes: “Seria possível o STF aceitar indulto coletivo para todos aqueles que eventualmente vierem a ser condenados pelos atos de 8 de janeiro, atentados contra a própria democracia, contra a própria Constituição?” E a resposta: “Obviamente que não. Isso está implícito na Constituição”. Aliás, no caso Silveira, o STF usa mais de 40 vezes a tese de que há vedações implícitas na Constituição ao direito de anistia e indulto.
Já no nosso exemplo, parece óbvio que, proibidos cães, ursos não são permitidos. E por quê? Porque onde está escrito cães, leia-se “animais perigosos”. E onde está escrito democracia e Estado Democrático de Direito, leia-se “ninguém pode usar a democracia contra ela mesma”. Nenhuma Constituição admitirá perdão (indulto, anistia) para quem atenta contra o Estado democrático. Tudo porque a Constituição não é um oxímoro. Não dá para “contentar-se de contentamento”. Na poesia dá; no direito, não!
A esquecida Lei 9.140, que se os parlamentares lessem, perceberiam o equívoco da anistia
Explico aqui uma questão esquecida. Foi o próprio parlamento — que agora se mostra hostil e perigosamente conspirador contra o STF e a democracia (lembremos do motim de 36 horas bem recente) — que aprovou uma lei que mostra a diferença entre a anistia de 1979 e eventual anistia de agora. A lei determina (artigos 1º, 2º e 10) que
(1) todos os que lutaram contra a ditadura têm o direito a receber indenização.
(2) portanto, todos os que lutaram contra a ditadura estavam em desobediência civil.
(3) logo, se lutaram contra a ditadura e o parlamento disse, a contrário sensu (afinal, manda indenizar) que a luta foi justa e legal, então deixou também assentado que não havia Estado de Direito.
(4) isto quer dizer que a anistia de 1979 foi feita em situação de não democracia. E foi exatamente por isso que os militares e torturadores foram incluídos.
Eventual anistia de agora ocorre em ambiente totalmente contrário. Porque
(1) Vivemos em democracia e
(2) os candidatos à anistia tentaram derrubar e liquidar a própria democracia.
(3) onde estaria o paralelismo? Em lugar nenhum. A de 1979 nada tem a ver com o que ora se discute em 2025. Nada. O parlamento deveria ler a Lei 9.140/1995. Não se pode comparar ovos com caixa de ovos.
Por tudo isso, é totalmente inconstitucional qualquer tipo de anistia para quem tentou acabar com a democracia. A democracia não é um oximoro. Não se pode pensar que uma democracia faz haraquiri.
Em nome dela — da democracia — não pode ser permitido, sob qualquer hipótese, o perdão ao que tentaram com ela acabar.
O Brasil pagaria um mico para o mundo.
A propósito: Ferrajoli, em visita ao Brasil, considera necessária a punição dos golpistas e correto o agir do STF. Ele é, nada mais e nada menos, que o “pai do garantismo”. Só para registro.
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