A pedagogia de um julgamento histórico. Artigo de Alexandre Aragão de Albuquerque

Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

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16 Setembro 2025

"Como disse a ministra Carmem Lúcia em seu voto, 'um país só vale a pena se for para viver na democracia'. Portanto, nosso 11 de setembro de 2025 é uma página que não pode ser esquecida de nossa Memória"

O artigo é de Alexandre Aragão de Albuquerque, arte-educador (UFPE), especialista em Democracia Participativa (UFMG) e mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE).

Eis o artigo.

Logo cedo, ao chegar para a minha obrigação matinal de cuidado físico diário na hidroginástica, uma companheira de aula me confidenciou em particular: “Alexandre, o meu coração está pulsando de alegria pelo resultado do julgamento de ontem, 11 de setembro, pelo STF. Por aquilo que os ditadores fizeram sofrer e penar à minha mãe e à minha irmã durante a ditadura de 1964, eu me sinto finalmente saciada em minha fome de justiça com o veredicto final de condenação à prisão dos réus da organização criminosa liderada por Bolsonaro”.

Na confidência desta companheira, coligam-se as consciências de milhões de brasileiros e brasileiras vitimizadas e esfomeadas por um Brasil justo e feliz, sem gabinetes de ódio, sem violência armada, sem fome, sem desigualdade social, sem feminicídio e nem mentiras produzidas estruturalmente e intencionalmente para a dominação da população.

De fato, foi prometido aos que têm fome e sede de justiça, a saciedade. Ou seja, a aplicação de processos penalizando malfeitores, com o restabelecimento da ordem justa por meio da reparação dos males perpetrados às vítimas. Um Estado de Democrático de Direito precisa, portanto, em todo lugar e tempo histórico, garantir a aplicação da lei todas as vezes em que ela for vilipendiada, realizando assim a promessa de saciar os famintos da aplicação da justiça, sobretudo quando a vítima é a própria democracia.

Em um dos momentos iluminados do seu voto, a ministra Carmem Lúcia recorreu à obra de Victor Hugo, “A história de um crime” (1877), baseada no testemunho visceral do autor sobre o golpe de Estado perpetrado, na França, por Napoleão III. A linguagem é carregada de emoção, indignação, ironia e denúncia. O livro é um manifesto contra a naturalização do autoritarismo, opondo-se veementemente à manipulação política da justificação de que os fins justificariam os meios.

Em sua manifestação, a ministra afirmou que este julgamento da conspiração golpista remetia ao passado do Brasil, com suas numerosas rupturas institucionais. Disse: “O que há de inédito nesta ação penal é que nela pulsa o Brasil que me dói. A presente ação penal é quase um encontro do Brasil com o seu passado, com o seu presente e com o seu futuro. O 8 de janeiro de 2023 não foi um acontecimento banal, um passeio no parque depois de um almoço de domingo, com as pessoas saindo para passear”.

Ao recorrer à obra de Hugo, Carmem Lúcia não realizou uma analogia apenas literária, mas profundamente ética e política. Num dos trechos mais emblemáticos, exclamou: “O mal executado com a justificativa de ser para o bem, continua sendo mal. Principalmente quando ele tem sucesso. Porque ele se torna um exemplo e, assim, vai se repetir”.

Por fim, ela lembrou que Bolsonaro, líder da organização criminosa armada, e os demais condenados não podem questionar a legitimidade da Lei 14.197/21, exatamente a norma que definiu os crimes contra a democracia, utilizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) para basear sua acusação. Esta Lei foi sancionada pelos réus Bolsonaro, Anderson Torres, Braga Netto e Augusto Heleno, enquanto integrantes do governo federal (2019-2022).

E uma necessária recordação se faz mister, em 09 de setembro de 2021, quando o líder da organização criminosa armada proferiu o discurso golpista de 7 de setembro, o ex-presidente Michel Temer, diante do espanto de diversos segmentos da sociedade brasileira, viajou às pressas de São Paulo a Brasília, com uma nota pronta para Bolsonaro assinar (Declaração à Nação), na qual ele se comprometia em não escalar seus discursos e ações golpistas. Mas a base bolsofascista imediatamente reagiu, afirmando que com tal atitude, Bolsonaro, de leão se transformou num gatinho domesticado, rendido a Michel Temer. (Disponível aqui).

Como lembra a socióloga Ester Solano, a partir de então, passadas algumas semanas, Bolsonaro vendo que estava perdendo capital político por tonar-se o gatinho do Temer, retoma a escalada das ações golpistas, com hiper radicalização, pelo menos em duas vertentes semióticas ideológicas.

Primeiramente, inicia uma campanha digital de adestramento de suas bases, em redes digitais, divulgando que Lula só ganharia as eleições se elas fossem fraudadas porque “o povo quer Bolsonaro”. Assim, o gado bolsonarista foi convocado a ir para as ruas para defender o Brasil da fraude eleitoral e da mentira, porque, como afirmava a campanha bolsonarista, as instituições são petistas de corpo e alma.

Consequentemente, a outra peça na engrenagem desta narrativa é a construção do inimigo. Tradicionalmente, Bolsonaro sempre apontou sua arminha contra o PT e a esquerda, cuja definição vaga e difusa, muitos cabiam nela. Mas taticamente, o foco da raiva e da violência bolsofascista vai gradualmente se dirigindo contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O ódio por Lula foi substituído pelo ódio a Alexandre de Moraes. O objeto material do ataque: a urna eletrônica.

Portanto, a base ideológica e tática para o Golpe estava montada. Faltava apenas criar as condições materiais juntamente com o clima de comoção social capaz de fazer com que segmentos da sociedade brasileira embarcassem nessa grande mentira.

Como se viu no julgamento da Ação 2668, realizado pelo STF, vários sujeitos se engajaram tramando o Golpe de Estado. Entre eles estavam, o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio; o ministro da Marinha, almirante Almir Garnier; o general de quatro estrelas Braga Netto; o general de quatro estrelas Augusto Heleno; o ministro da Justiça, Anderson Torres; o diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem; o líder da organização criminosa armada, Jair Messias Bolsonaro. E muitos outros militares e civis.

Como disse a ministra Carmem Lúcia em seu voto, “um país só vale a pena se for para viver na democracia”. Portanto, nosso 11 de setembro de 2025 é uma página que não pode ser esquecida de nossa Memória. Tem de estar nos bancos escolares, nas obras de arte, na literatura, na dança, na música. Porque se tratou de uma defesa pacífica, jurídica e determinada de nossa democracia. Ditadura nunca mais!

Mas o espantoso, espantoso mesmo, é que o ministro Luiz Fux não viu nada disso. Ficou enclausurado narcisicamente em seu discurso de 12 horas, absolvendo Bolsonaro, sem permitir, deselegante e arrogantemente, apartes de seus companheiros de bancada. Coisas de alguém que, muito provavelmente, deve estar bem fux. Pode até ser que entre para a história!

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