O ponto de não retorno ecológico da Amazônia é também um limite político: cruzá-lo pela inação seria renunciar, como humanidade, a um futuro compartilhado.
O artigo é de Paulo Ilich Bacca e Luisa Fernanda Bacca, publicado por El País, 20-08-2025.
Paulo Ilich Bacca é vice-diretor do Dejusticia e professor da Universidade Javeriana.
Luisa Fernanda Bacca é vice-diretora do Instituto Pan-Amazônico (IPA).
A Amazônia está em uma encruzilhada. Não estamos falando de catástrofes futuras ou de discurso alarmista, mas sim de uma realidade palpável: a floresta tropical mais biodiversa do planeta perdeu 16% de sua cobertura, mais de 23% de sua conectividade ecológica está fragmentada e pelo menos 26% apresenta sinais de degradação. Isso ameaça funções vitais como os ciclos da água , os fluxos gênicos e a vida de milhões de pessoas que enfrentam a crise climática e a perda de biodiversidade em escala global.
Este não é apenas um bioma vulnerável, mas um território de lutas por direitos bioculturais, onde povos indígenas, afrodescendentes, quilombolas, camponeses e ribeirinhos sustentam a vida e contribuem para a regeneração florestal. Em seu livro "Beneath the Surface of Things", Wade Davis propõe combinar o raciocínio científico com a consciência cultural: enfrentar a emergência climática reconhecendo a sabedoria ecológica das Primeiras Nações e promovendo soluções abertas ao diálogo intercultural.
Diante da deterioração ambiental e da força das respostas locais, é urgente que os Estados amazônicos estejam à altura da situação. Dois marcos políticos colocam a região no centro da agenda global: a Quinta Cúpula dos Presidentes dos Estados Partes do Tratado de Cooperação Amazônica, que começou em 18 de agosto e vai até o dia 22 em Bogotá, e a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), agendada para novembro de 2025 em Belém do Pará, Brasil. Essas são oportunidades únicas para consolidar compromissos estruturais para enfrentar as crises convergentes na Amazônia, uma região essencial para o clima e a biodiversidade, mas historicamente negligenciada pelos Estados que a compartilham.
Nesse contexto, surgiu uma conexão sem precedentes entre redes regionais de movimentos sociais, sociedade civil e comunidades científica e eclesial. Entre elas, destacam-se a Aliança Escute a Amazônia, o Fórum Social Pan-Amazônico (FOSPA), o Painel Científico pela Amazônia e a Aliança das Águas Amazônicas. Dessa convergência, nasceu a Rede de Redes Amazônica, que reúne doze plataformas regionais e mais de 450 organizações comprometidas com a defesa do bioma.
A partir da resistência local, décadas de pesquisa e visões espirituais voltadas para a proteção da vida, essas redes construíram o Pacto Climático Pan-Amazônico: uma proposta de ação de curto e longo prazo, que reconhece a Amazônia como um sistema vivo e interdependente. Este pacto propõe cinco pontos críticos para sua proteção, promovendo respostas estruturais do Sul Global.
Um de seus pilares é o apelo aos Estados amazônicos para que atuem como um bloco político regional para implementar a Declaração de Belém (2023) e posicionar a Amazônia como ator central na resposta climática global. As prioridades incluem a proteção da conectividade ecossistêmica e sociocultural como condição para o enfrentamento das mudanças climáticas, a orientação do planejamento territorial, o fortalecimento dos marcos regulatórios e a restauração de corredores ecológicos e socioculturais – incluindo territórios de povos indígenas e isolados. Propõe-se também uma ação coordenada diante de conflitos socioambientais e ilícitos transfronteiriços, garantindo a participação da sociedade civil e a proteção dos defensores dos direitos humanos e ambientais.
Outro pilar é a promoção de uma estratégia regional de sociobioeconomia, com um fundo regional para acelerar os compromissos com a segurança alimentar, a inovação tecnológica e a certificação de produtos amazônicos. O financiamento climático deve incorporar uma abordagem baseada em direitos, garantindo acesso direto dos povos indígenas e comunidades locais aos recursos internacionais.
Por fim, propõe-se um mecanismo permanente de participação cidadã para garantir o diálogo entre governos e sociedade civil, facilitando o monitoramento das ações e promovendo marcos regulatórios comuns para a implementação da Declaração de Belém em toda a bacia.
Essa ação regional deve se basear em um princípio ético: a justiça planetária. A Amazônia não é um "vazio verde" ou um simples sumidouro de carbono, mas uma rede de territórios vivos, habitados e defendidos por povos que resistiram a séculos de violência e extrativismo, oferecendo alternativas sustentáveis à crise global. Seus sistemas de governança e conhecimentos ancestrais fazem parte de uma economia política para o cuidado do planeta e de suas futuras gerações.
Em consonância com o Parecer Consultivo OC-32/23 da Corte Interamericana de Direitos Humanos — que reconhece a natureza como sujeito de direitos e obriga os Estados a proteger e restaurar os ecossistemas de danos irreversíveis — o Pacto Pan-Amazônico propõe que o financiamento climático priorize o bem-estar das populações e a integridade ecológica, rejeitando a mercantilização da natureza e estabelecendo salvaguardas ambientais, sociais e culturais. O clima como direito humano e a natureza como sujeito de direitos são pilares de uma nova ética para a ação climática.
Perspectivas indígenas sobre as mudanças climáticas, como as do líder Yanomami Davi Kopenawa, oferecem chaves para a indigenização da lei e a análise da crise a partir de perspectivas amazônicas. Elas nos convidam a compreender que a emergência climática não é recente: começou há séculos com invasões, desapropriações territoriais e a ruptura dos equilíbrios ecológicos. Como argumenta o filósofo Kyle Whyte, o aquecimento global, a perda de biodiversidade e o colapso hidrológico são capítulos recentes em uma longa história de rupturas.
Nessa perspectiva, a justiça climática na Amazônia deve incluir a restauração, o consentimento livre, prévio e informado de seus povos e o fortalecimento de seus sistemas de governança. O antropólogo Arturo Escobar aponta que cada território faz parte de um pluriverso: um mundo de muitos mundos onde humanos, não humanos e espíritos negociam a vida de forma interconectada. Proteger a Amazônia também implica defender as relações existenciais que sustentam modos de vida que desafiam a modernidade capitalista por meio da justiça multiespécies.
Se acompanhada de ações concretas e transformadoras, a Declaração de Belém pode ser o ponto de partida para uma nova arquitetura política regional. A Rede de Redes da Amazônia propõe um caminho duplo: uma visão estrutural de longo prazo que articule compromissos internacionais com ações locais, e uma visão imediata para que os Estados adotem medidas ousadas e coordenadas na cúpula.
Nada disso será possível sem vontade política. Vivemos hoje uma ruptura profunda em nossa relação com o planeta e com outras formas de vida. Superá-la exige transformar nossas formas de habitar e governar a Amazônia. O conhecimento para isso já existe: reside na ciência e na sabedoria dos povos que protegem este território há gerações. Ouvi-los e agir coletivamente é uma responsabilidade. O ponto ecológico sem retorno é também um limite político: cruzá-lo pela inação significaria renunciar, como região e como humanidade, a um futuro compartilhado.