"A experiência de Deus não é monopólio de nenhuma cultura, mas dom universal que se manifesta de formas múltiplas e contextuais. Deus se comunica, se revela, habita. E o faz também nos cantos, nos mitos e nas danças dos povos indígenas".
O artigo é de Joice Alberto de Souza, Wapichana (Pimydyaba) e José F. Castillo Tapia, SJ (Duwid).
Joice Alberto de Souza, Wapichana (Pimydyaba) é indígena da etnia Wapichana; Professora e interprete de língua Wapichana e liderança da juventude indígena da Serra da Lua-RR. Licenciada em Licenciatura intercultural indígena; Mestranda em Historia indígena pela Universidade Federal de Roraima.
José F. Castillo Tapia, SJ (Duwid) é padre jesuíta espanhol. Graduado em Pedagogia pela Universidade de Granada (Espanha) e graduado em Filosofia e Teologia pela Universidade Pontifícia Comillas (Madri). Mestre em Educação pela Universidade Pontifícia de Salamanca, mestre em Espiritualidade Inaciana pela Universidade Pontifícia Comillas. Mestrado em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE (Belo Horizonte). Atualmente serve junto aos povos indígenas na Amazônia brasileira.
A proposta deste caderno nasce do desejo profundo de promover um encontro fecundo entre a cosmovisão indígena do povo Wapichana e a teologia cristã católica, à luz do diálogo intercultural que tem sido incentivado pela Igreja, especialmente nas últimas décadas. Ao reconhecer a riqueza espiritual, ética e simbólica dos povos originários da Amazônia, a Igreja também é chamada a escutar, discernir e dialogar com esses saberes ancestrais, num caminho de mútua transformação e evangelização inculturada.
Entre os diversos povos indígenas presentes na região norte do Brasil, os Wapichana ocupam um lugar singular por sua língua, seus mitos fundadores e suas práticas comunitárias. Seu território tradicional se estende entre o norte de Roraima e o sul da Guiana, em áreas de cerrado, savanas e florestas. Com uma população significativa e uma forte identidade cultural, o povo Wapichana tem resistido às múltiplas formas de violência histórica — desde a colonização até as ameaças contemporâneas — com sabedoria, espiritualidade e coesão social.
Este caderno pretende oferecer uma introdução abrangente à cosmovisão Wapichana, valorizando seus mitos de origem, sua relação com a natureza, suas práticas rituais e sua visão de mundo, sem perder de vista o horizonte de diálogo com a fé cristã. A intenção não é impor uma interpretação externa, mas buscar pontos de convergência, complementaridade e interrogação mútua, à luz do Evangelho e do Magistério da Igreja.
Inspirando-se no espírito do Sínodo para a Amazônia (2019) e na exortação apostólica Querida Amazônia do Papa Francisco, esta reflexão parte do reconhecimento de que “a fé cristã não desmantela o sonho indígena, mas o purifica e o realiza” (QA, 67). A escuta sincera da sabedoria dos povos indígenas é, portanto, parte constitutiva da missão eclesial na Amazônia. Como também nos recorda a encíclica Laudato Si’, os povos originários têm “uma maneira de viver que pode nos ensinar muito” (LS, 71), sobretudo no que se refere à relação com a terra como dom, à sobriedade de vida e à espiritualidade do cuidado.
A teologia cristã, neste contexto, é convidada a sair de si, a colocar-se em atitude de escuta e reverência diante de outras formas de perceber o mundo e de se relacionar com o mistério divino. Mais do que traduzir conceitos teológicos em linguagens indígenas, trata-se de construir uma teologia que brote da experiência concreta dos povos originários, marcada por seus territórios, seus corpos e sua memória ancestral. Uma teologia do chão, encarnada, sensível aos gritos da terra e dos pobres.
O método adotado neste caderno se baseia em três pilares: (1) a descrição respeitosa da cosmovisão Wapichana, com apoio em fontes orais e escritas; (2) a análise teológica católica, com base na Escritura, na tradição e no Magistério; e (3) a abertura ao diálogo intercultural, como espaço de encontro entre a fé cristã e os saberes indígenas. Esse itinerário busca contribuir com as comunidades de base, com os agentes de pastoral e com os estudiosos interessados em construir pontes entre teologia e cultura, fé e território.
O caderno está dividido em duas grandes partes. A primeira apresenta os principais elementos da cosmovisão Wapichana, destacando mitos fundadores como o de Tuminkary e Duwid, o papel da palavra como força criadora (puuri), a sacralidade da terra e dos animais, e os rituais de cura, dança e nomeação. Também se analisa a ética comunitária que sustenta os modos de vida Wapichana, com base em valores como reciprocidade, memória, cuidado e respeito pelos mais velhos.
A segunda parte realiza uma leitura teológica dessa cosmovisão, articulando temas fundamentais da tradição cristã — como criação, Palavra de Deus, sacramento, corpo, nome e missão — com elementos da espiritualidade Wapichana. Partindo da perspectiva católica, são discutidas as possibilidades de convergência, as tensões legítimas e os horizontes de um cristianismo verdadeiramente amazônico, enraizado na experiência concreta dos povos indígenas e capaz de dialogar com sua sabedoria milenar.
Este caderno não tem a pretensão de esgotar um tema tão vasto e delicado, mas de lançar sementes. Sementes de encontro, de respeito, de conversão e de esperança. Esperança de que a Igreja, ao mergulhar mais profundamente na riqueza das culturas indígenas, possa também redescobrir dimensões esquecidas do Evangelho e caminhar com os povos originários em direção ao Reino de Deus.
O povo Wapichana é um dos principais grupos indígenas da região amazônica setentrional, com presença histórica no estado de Roraima (Brasil) e no sul da Guiana. Sua autodenominação é Wapichana, embora em alguns registros históricos também sejam chamados de Uapixana ou Vapixana. Trata-se de um povo com identidade própria, língua viva, organização social comunitária e forte vínculo com o território ancestral.
No Brasil, os Wapichana vivem principalmente na região leste do estado de Roraima, nos municípios de Bonfim, Normandia e Cantá, em terras indígenas demarcadas, como Malacacheta, Canauanim, São Marcos, Raposa Serra do Sol e outras. Seus territórios se situam majoritariamente em áreas de savana, conhecidas localmente como lavrado, intercaladas por florestas de galeria e cursos d’água. Na Guiana, habitam regiões próximas à fronteira brasileira, especialmente no distrito do Rupununi.
O território tradicional Wapichana não é apenas uma base física de subsistência, mas um espaço sagrado, atravessado por mitos, histórias, grafismos e memórias coletivas. Os nomes dos rios, serras e caminhos carregam sentidos espirituais e cosmológicos. Essa relação com a terra vai muito além de uma dimensão econômica ou utilitária: é relacional, afetiva e ritual, como será explorado nos capítulos seguintes (ISA, 2025).
A língua Wapichana pertence à família linguística Aruak, uma das mais amplamente distribuídas nas Américas. É uma das línguas indígenas mais faladas em Roraima, com cerca de 10 mil falantes, segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA). Muitos membros do povo Wapichana são bilíngues, dominando também o português ou o inglês, o que favorece estratégias de resistência e articulação política, sem que isso implique abandono da língua ancestral (ISA, 2025).
A oralidade ocupa um lugar central na preservação da identidade cultural Wapichana. Mitos, cantos, histórias de vida, conselhos dos anciãos e práticas de cura são transmitidos de geração em geração por meio da palavra viva. A língua é também veículo da espiritualidade e da ética coletiva, pois expressa a visão de mundo, os modos de habitar o território e os códigos de convivência comunitária (Ibid.).
A história dos Wapichana, como a de muitos povos indígenas da Amazônia, está marcada por processos de colonização, expropriação territorial, discriminação e violação de direitos. Desde o contato com os primeiros colonizadores europeus, no século XVIII, os Wapichana enfrentaram tentativas de evangelização forçada, invasões de terras e destruição cultural. No entanto, ao longo dos séculos, resistiram de forma criativa, reorganizando suas comunidades, preservando suas práticas e dialogando criticamente com a sociedade envolvente.
Nos últimos anos, os Wapichana têm desempenhado um papel ativo na luta por direitos territoriais, educação escolar indígena e acesso à saúde diferenciada. Lideranças locais têm se articulado em associações e organizações representativas, defendendo não apenas a demarcação e proteção de suas terras, mas também o reconhecimento de sua cultura e espiritualidade (FUNAI, 2025).
A resistência Wapichana é, portanto, tanto política quanto simbólica. Ela se manifesta nas festas tradicionais, nos cantos em língua materna, nos grafismos corporais, nas práticas agrícolas sustentáveis e, sobretudo, na firme convicção de que seu modo de vida é portador de sentido e de dignidade (ISA, 2025).
A cosmovisão Wapichana se estrutura a partir de narrativas míticas que explicam a origem do mundo, dos seres vivos e da sociedade humana. Esses mitos não são meras histórias do passado, mas expressões vivas de um conhecimento ancestral que articula natureza, espiritualidade e ética. Entre os relatos mais fundamentais está o mito da grande árvore do mundo, com dois protagonistas: Tuminkery e Duwid.
No início dos tempos, segundo os Wapichana, “o céu morava perto e todos falavam a mesma língua, era puuri. Magia” (WAPICHANA, 2021, p.7). Esse tempo primordial era regido por uma ordem simbólica criada por Tuminkery, onde a palavra (puuri) tinha o poder de transformar a realidade. Essa árvore cósmica funcionava como eixo do mundo, unindo as dimensões celeste, terrena e subterrânea. A palavra puuri designa encantamento, indicando que a comunicação entre todos os seres possuía um caráter sagrado e mágico. A Terra encontrava-se inteiramente coberta por florestas, e entre as incontáveis árvores destacava-se uma em especial por seu tamanho e propriedades sobrenaturais: Tomoromu, conhecida como a grande árvore do mundo. Essa árvore colossal possuía um tronco de pedra gigantesco e galhos que tocavam as nuvens – “tão frondosa quanto alta, cujos galhos mais baixos ficavam entre as nuvens e os mais altos ultrapassavam o grande Sol” (Ibid., p.17). Nem mesmo as aves de voo mais elevado conseguiam ver seu topo. Como exclama o ancião na narrativa: “Nem mesmo o magnífico Anuwyn, o urubu-rei, com suas poderosas asas, consegue alcançar essa extraordinária altura, meus parentes! Tuminkery, criador de todas as coisas, com seu sopro mágico, deu propriedades especiais a essa árvore colossal” (Ibid.). Tomoromu era, portanto, uma dádiva do criador Tuminkery – uma árvore única, imbuída de magia e fonte de sustento e proteção para todos os seres.
A grande árvore do mundo cumpria a função de eixo central da vida e da cosmologia wapichana. Sob sua copa suntuosa reuniam-se animais de todas as espécies e também os humanos ancestrais, que dela retiravam alimento em abundância. Conta-se que Tomoromu produzia frutos de todos os tipos imagináveis, doces e variados. Na história, quando um pequeno cutia-macho descobre os frutos caídos dessa árvore maravilhosa, ele e o velho que cuida dele ficam maravilhados diante da fartura: diversas frutas como taxi, murici, buriti, cupuaçu, manga, caju, goiaba, banana, melancia, entre muitas outras, eram encontradas sob Tomoromu (WAPICHANA, 2021, p.19). Essa lista de frutos nativos ressalta que a grande árvore continha em si a diversidade de toda a floresta, simbolizando a plenitude da criação. Assim, Tomoromu é representada como a “mãe de todas as árvores”, generosa e nutritiva, capaz de alimentar indefinidamente todos os seres. Importa notar seu caráter cósmico: além de prover sustento, Tomoromu conectava diferentes planos do mundo – seu topo alcançava as alturas celestes e tocava Yydary’u Kamuu (o Sol), enquanto suas raízes e tronco pertenciam à terra. Trata-se claramente de um motivo da Árvore do Mundo ou Árvore Eixo, comum em narrativas cosmológicas de diversos povos, aqui expressando a ideia de que toda a vida está interligada em torno de um centro sagrado. Em suma, a seção mítica “A grande árvore do mundo” apresenta Tomoromu como a representação máxima da abundância original e da harmonia entre céu, terra e seres vivos, no amanhecer da criação segundo a teologia wapichana.
Os frutos da grande árvore alimentavam os primeiros seres humanos e garantiam harmonia entre os reinos. Ela era também um símbolo da conexão entre todos os seres e da abundância original dada pelos criadores. No entanto, essa ordem inicial seria rompida por um gesto de desobediência ou impaciência de Duwid [1], o que levou à queda da árvore. Com sua queda, céu e terra se separaram, e o mundo passou a ser como o conhecemos hoje: fragmentado, vulnerável, distante da presença direta dos criadores.
A queda da árvore marca uma ruptura ontológica, inaugurando a condição humana atual: separado de Tuminkery (Deus), lançados à história, sujeitos à morte e ao esquecimento. No entanto, os traços da ordem original ainda permanecem visíveis na natureza e nos rituais, como memória sagrada que sustenta o povo em sua travessia.
Tuminkery é considerado o principal ser criador na mitologia Wapichana. Em muitas versões do mito, é ele quem organiza o mundo, cria os animais, modela os humanos e ensina os saberes fundamentais para a vida comunitária. Em algumas comunidades, seu nome é usado para se referir ao próprio Deus cristão, o que demonstra uma abertura semântica e religiosa da figura.
A principal característica de Tuminkery é seu poder de criação por meio da palavra. Diferente de um demiurgo que molda o mundo com as mãos, Tuminkery fala, e as coisas acontecem. Sua linguagem é performativa: nomear é criar, falar é transformar. Essa concepção lembra profundamente o prólogo do Evangelho de João: “No princípio era a Palavra” (Jo 1,1).
Além de criador, Tuminkery é também legislador e educador. Ele ensina aos humanos como viver em harmonia com a terra, como plantar, colher, respeitar os ciclos da natureza e tratar os outros seres com reverência. Sua figura combina, portanto, elementos de sabedoria, transcendência e proximidade, sendo um paradigma espiritual para o povo Wapichana.
Duwid é frequentemente apresentado como uma espécie de pajé. Duwid encarna uma dimensão mais ambígua da existência. Em algumas narrativas, ele aparece como um ser brincalhão, trapaceiro, provocador, cuja ação gera desordem, mas também movimento e aprendizado.
Em wapichana moderno, o termo “Duwid” designa a coruja conhecida como “rasga-mortalha” (Tyto alba), ave noturna tradicionalmente associada a presságios de morte [2]. Isso sugere que Duwid carrega em si a simbologia do liminar, do enigmático e do transgressor. Não é um antagonista no sentido cristão de “diabo”, mas uma figura que revela a complexidade do mundo, os limites da ordem e os desafios do viver. Com Duwid, poderíamos dizer que a vida não é branca o preta, existem uma variedade imensa de cores que nos mostram a complexidade da realidade.
A relação entre Tuminkary e Duwid é de complementaridade tensa. Eles caminham juntos na criação, mas seguem lógicas diferentes. Enquanto um constrói, o outro experimenta. Enquanto um ordena, o outro desestabiliza. Essa dualidade reflete uma visão não maniqueísta do mundo, em que bem e mal não são polos absolutos, mas forças coexistentes e entrelaçadas no tecido da vida.
A derrubada de Tomoromu marca um antes e depois na cosmologia wapichana, explicando de forma mítica a origem da condição atual do mundo e da humanidade. Com a queda da grande árvore do mundo – ato que simboliza a hybris (desmedida) humana – ocorre um rompimento não apenas físico, mas também espiritual: é como se Tuminkery, o Criador, se afastasse do convívio próximo que mantinha durante o tempo mágico das origens. De um estado de abundância e comunicação direta com o sagrado, passa-se a um estado de escassez, trabalho e distanciamento do divino. Em outras palavras, consuma-se a separação entre Tuminkery e os seres humanos, fenômeno que o mito apresenta como origem da condição humana atual, sujeita a dificuldades e mortalidade.
O texto descreve com forte carga dramática o momento do abate de Tomoromu e suas consequências imediatas. Após dias e noites de machadadas incessantes – em que “cada talho sangrou e enfraqueceu Tomoromu… Enquanto a mãe de todas as árvores agonizava, seus gemidos eram ouvidos ao longe” (WAPICHANA, 2021, p.21) – a árvore do mundo finalmente tomba. O impacto desse ato repercute em todo o cosmos: Kamuu, o Sol, que “morava bem pertinho” naqueles tempos (isto é, próximo à terra), é atingido por um enorme galho e arrastado para dentro do rio Orinoco, despedaçando-se em brasas; instantaneamente, “a escuridão encheu o mundo” (Ibid., p.24). Simultaneamente, jorra água em volume descomunal “das fendas abertas no imenso tronco de pedra de Tomoromu, ameaçando inundar todo o mundo” (Ibid ). A narrativa evidencia, assim, uma catástrofe cósmica: a queda da árvore sagrada provoca o eclipse do Sol (mergulho nas trevas) e um dilúvio iminente – elementos que remetem, respectivamente, à perda da iluminação/orientação divina e ao caos desordenado das águas.
Nesse momento de crise, Tuminkery não intervém diretamente para reverter os efeitos – fato teológico de grande significado. Em vez disso, são os próprios seres terrenos (animais e humanos ancestrais) que se mobilizam para mitigar a destruição: tapam as brechas do tronco para conter as águas e resgatam as fagulhas de Kamuu do fundo do rio, numa empreitada coletiva guiada por dons menores concedidos pelo Criador. Por exemplo, Tuminkery oferece uma última assistência pontual ao designar a anta como guia na escuridão, colocando “na ponta de cada uma de suas orelhas uma faixa branca para brilhar no escuro. (Até hoje essas pequenas manchas brancas estão lá)” (WAPICHANA, 2021, p.24). Esse detalhe mitológico explica a marca branca nas orelhas da anta e simboliza um reduzido auxílio divino em meio à calamidade, reforçando, contudo, que a restauração da ordem dependerá principalmente do esforço das criaturas. De fato, após intensa busca, os animais conseguem reconstituir o Sol; Kamuu volta a brilhar, mas profundamente marcado pelo ocorrido – ele decide afastar-se: “recuperado seu esplendor… não quis nem saber de ficar perto das nuvens e foi morar no teto do céu” (WAPICHANA, 2021, p.28). Ou seja, o Sol se estabelece doravante a grande distância, assegurando luz ao mundo, porém sem a proximidade familiar de outrora. Essa imagem sintetiza a nova ordem: o sagrado se eleva a um plano distante, enquanto a Terra permanece abaixo, entregue à dinâmica natural e humana.
Consumada a separação, o mundo se transforma profundamente. O próprio texto ressalta: “O mundo mágico, puuri, foi alterado pela queda de Tomoromu e pelo trauma de Kamuu” (WAPICHANA, 2021, p.29). Aquela unidade primordial – em que tudo compartilhava a mesma língua e a mesma vida encantada – dá lugar a um mundo fragmentado e menos benigno. As consequências para os humanos e animais são inúmeras e definitivas.
Primeiro, cessa a fartura espontânea: “Restou aos homens plantar para comer. Cada árvore passou a produzir apenas a sua própria fruta” (Ibid., p.28). Isso significa que, a partir de então, a humanidade precisa trabalhar (agricultura) para obter sustento, pois já não existe a árvore universal que provê todos os alimentos. Cada espécie vegetal torna-se especializada, refletindo a perda da unidade abundante.
Segundo, ocorre uma separação dos habitats e dos papéis ecológicos: “Os animais foram distribuídos por diversos ambientes. Alguns foram morar nas águas. Outros, na terra” (Ibid.). Surge assim a distinção entre as criaturas aquáticas e terrestres, entre aves e quadrúpedes etc., ao contrário da convivência próxima e quase doméstica que havia sob Tomoromu.
Terceiro, instaura-se a realidade da predação e do conflito: “passaram a se revezar, ora como predadores, ora como predados; ora como caçadores noturnos, ora diurnos” (Ibid., p.29). Em outras palavras, inaugura-se o ciclo da cadeia alimentar e da luta pela sobrevivência, algo ausente no mundo mítico anterior onde reinava a harmonia e a partilha.
Todos esses elementos delineiam a condição humana pós-mítica, equivalente, em termos comparativos, a uma “queda” ou perda do paraíso. A humanidade agora vive num mundo dessacralizado (ou menos sacralizado): Tuminkery já não caminha ao lado dos homens; ele permanece presente apenas indiretamente, nos fenômenos naturais (o Sol distante, a chuva, as estações) e na memória ancestral. Os humanos, por sua vez, carregam o peso de sua escolha imprudente: devem cultivar a terra, enfrentar a finitude dos recursos e lidar com a presença da morte e do conflito. O mito wapichana, assim, explica teologicamente a origem das dores e desafios da existência humana – elementos universais como a necessidade de trabalho, a separação entre humanidade e natureza, e a aparente distância entre o mundo humano e o divino. Essa separação de Tuminkery não é um abandono completo, mas indica que a relação com o sagrado doravante se dará de forma mediada (pelos sonhos, pelos espíritos, pela tradição oral), e não mais em comunhão direta e cotidiana como no início dos tempos. A condição humana atual, para a cultura Wapichana, é, portanto, resultado desse processo mítico de ruptura e transformação, que ao mesmo tempo funda a realidade tal como é conhecida e impõe a necessidade de lembrar e respeitar os ensinamentos contidos no mito.
No centro da cosmovisão Wapichana está a convicção de que a palavra não é apenas um instrumento de comunicação, mas uma força viva e eficaz capaz de criar, curar, ordenar e transformar o mundo. Essa concepção se expressa no conceito de puuri, que pode ser traduzido como “fala eficaz”, “palavra verdadeira” ou “linguagem sagrada”. Mais do que som articulado, puuri é energia ativa, conectada ao mistério da origem e ao poder do espírito.
Segundo os relatos tradicionais, no início do mundo “tudo falava”: os animais, as plantas, os rios e até as pedras tinham linguagem e consciência. Céu e terra não estavam separados, e os seres se compreendiam mutuamente por meio de uma língua comum, mágica e ancestral. Esse tempo primordial, anterior à queda da grande árvore, é lembrado com reverência como a era do puuri, quando a palavra era fonte direta de transformação.
Nesse contexto, nomear era dar existência, e falar era modificar o real. Essa concepção da linguagem como princípio criador ecoa em diversas tradições religiosas, incluindo a judaico-cristã, onde a palavra divina traz à existência o universo (cf. Gn 1; Jo 1,1). Para os Wapichana, esse poder da palavra continua acessível em certas circunstâncias — especialmente nos rituais, nos cantos e nas curas — quando o puuri é invocado com respeito e conhecimento.
O puuri não é abstrato nem separado da experiência concreta. Ele se manifesta no corpo do falante, nos gestos, no ritmo da fala, no tom da voz e na intenção do coração. A palavra eficaz exige conexão com os espíritos, com a memória dos anciãos e com o espírito da floresta. Quem fala sem sabedoria pode provocar desordem; quem fala com verdade, cura e fortalece.
Por isso, os anciãos e as anciãs são considerados “guardiões da palavra”. Seus conselhos, histórias e bênçãos têm peso espiritual. Ao transmitir os mitos e os ensinamentos da vida comunitária, eles não apenas informam: eles atualizam a memória do povo e mantêm viva a conexão com os criadores.
A palavra é também profundamente ética. O Wapichana não deve mentir, enganar ou ferir com a fala. O uso da palavra implica responsabilidade social e espiritual, pois o que é dito reverbera no mundo. Essa dimensão ética da linguagem aparece nas cerimônias de nomeação, nos discursos coletivos e nos processos de reconciliação comunitária.
Embora a leitura teológica será desenvolvida mais adiante, já se pode antecipar que o conceito de puuri oferece um ponto de encontro profundo com a fé cristã. A centralidade da Palavra na criação, na revelação e na salvação é um dos eixos da teologia bíblica: “Ele disse, e tudo foi feito” (Sl 33,9); “O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14).
Nesse sentido, o puuri não é apenas uma curiosidade antropológica, mas uma categoria espiritual que pode enriquecer a compreensão cristã do mistério de Deus. A palavra que cura, que organiza o mundo e que comunica vida encontra eco tanto na tradição Wapichana quanto na mensagem do Evangelho.
A cosmovisão Wapichana é essencialmente relacional e territorial [3]. O ser humano não é concebido como separado da natureza, mas como parte de uma grande rede de vida que inclui a terra, os rios, os animais, os astros e os espíritos. Cada elemento do mundo tem um lugar no equilíbrio da existência, e as relações entre os seres são orientadas por respeito, reciprocidade e cuidado. Esta visão integradora sustenta a espiritualidade, a ética e os modos de vida do povo Wapichana, e desafia as concepções modernas baseadas na separação entre sujeito e objeto, ou entre cultura e natureza.
Para os Wapichana, a terra (dayan) não é um recurso explorável ou propriedade individual, mas uma entidade viva, geradora e sagrada. Ela é considerada mãe de todos os seres, fonte de alimento, abrigo e sabedoria. A terra guarda as pegadas dos antepassados, as marcas dos mitos e os lugares de força espiritual. Caminhar sobre ela é, portanto, um ato ritual, um gesto de comunhão e memória.
As serras, os montes, os buritis, os igarapés, as savanas, o mato... carregam nomes que remetem a histórias míticas. Determinados lugares são considerados “moradas de encantados” ou “moradas de espírito”, exigindo posturas respeitosas, silêncio ou oferendas. A violação desses espaços sagrados pode causar doenças ou desequilíbrios, que devem ser tratados por pajés/marynaunau e sábios da comunidade.
A terra também possui uma dimensão ética e política. Desmatá-la sem necessidade, contaminá-la com veneno ou usurpá-la de forma gananciosa é visto como um rompimento da ordem do mundo. A luta pela demarcação e proteção dos territórios tradicionais é, por isso, uma luta não apenas por sobrevivência material, nem política, mas por dignidade espiritual e cultural. Nesse sentido, qualquer ativismo a favor da defesa dos povos indígenas, deveria aprender a enxergar a profundeza da realidade de cada povo, levando a sério a sua espiritualidade e cosmovisão (ISA, 2025).
Os rios são veias da terra e caminhos dos espíritos. Eles não apenas abastecem de água e alimento, mas também conectam comunidades, transmitem histórias e acolhem rituais. Cada curva do rio possui um nome, uma história, uma memória. Pescar, navegar ou banhar-se exige conhecimento e cuidado.
Os Wapichana reconhecem a presença de seres espirituais nas águas — alguns protetores, outros perigosos — e transmitem às crianças o conhecimento de como se comportar diante desses mistérios. Existem cantos, orações e gestos que devem ser feitos antes de lançar redes ou entrar no rio, como forma de respeito aos donos da água.
Os animais, na tradição Wapichana, não são apenas “seres inferiores” ou “recursos naturais”, mas parentes e coabitantes do mundo. Muitos deles são considerados irmãos míticos dos humanos, transformados em tempos antigos por ação de Tuminkery ou Duwid. Assim, o jabuti, o tamanduá, a onça e a coruja não são apenas bichos: são seres com histórias, nomes e temperamentos.
Alguns animais possuem papel simbólico forte. A coruja, por exemplo, é associada a Duwid, e seu canto pode ser interpretado como presságio. Outros são respeitados por suas qualidades: o beija-flor pela leveza, o gavião pela visão, o tatu pela persistência. A caça, quando necessária, é feita com rituais e limites, reconhecendo o dom da vida que é retirada.
Essa visão gera uma ética de moderação e gratidão: não se mata por prazer, não se desperdiça carne, não se trata o animal como objeto. A vida animal é parte da totalidade sagrada do mundo, e sua presença inspira cantos, grafismos e histórias.
Na cosmologia Wapichana, os mortos não desaparecem. Eles permanecem presentes na memória da comunidade, nos sonhos, nos lugares e em certas manifestações naturais. São os “encantados”, espíritos que podem acompanhar, proteger ou advertir os vivos. Por isso, a relação com os ancestrais é contínua e dinâmica.
Existem lugares de sepultamento que não devem ser perturbados. Existem histórias que só podem ser contadas em certas épocas. Existem nomes que são dados a recém-nascidos em honra a parentes falecidos, numa espécie de continuidade espiritual.
A ancestralidade é fonte de autoridade e de sabedoria. Ouvir os mais velhos, guardar os conselhos dos antepassados, respeitar a linhagem da família e do povo são atitudes que formam o caráter e reforçam o pertencimento. A memória dos mortos é celebrada na vida dos vivos (ISA, 2025).
A vida espiritual do povo Wapichana é profundamente enraizada em práticas rituais e celebrações coletivas que envolvem canto, dança, pintura corporal, jejum, partilha e silêncio. Essas práticas não apenas reforçam a coesão comunitária, mas também atualizam a memória mítica, fortalecem o vínculo com os ancestrais e mantêm o equilíbrio com o mundo espiritual. O corpo, nesse contexto, não é separado da dimensão religiosa: ele é lugar de expressão do sagrado e mediador das relações com o cosmos (ISA, 2025).
Diferente da visão ocidental que frequentemente separa corpo e espírito, a tradição Wapichana reconhece o corpo como centro de sensibilidade, memória e presença espiritual. O corpo é pintado com grafismos que evocam histórias, curas, forças protetoras e identidades clânicas. Ele dança, canta, jejua e se recolhe, como forma de conexão com os deuses, com a terra e com os outros seres.
As crianças aprendem desde cedo os gestos corretos, as posturas respeitosas e os rituais apropriados para cada ocasião. O corpo é educado para viver em harmonia com o grupo e com os ritmos da natureza. O silêncio, por exemplo, é valorizado como espaço de escuta e de interiorização, especialmente em momentos de passagem, como luto ou iniciação.
A vida ritual Wapichana é marcada por um calendário que acompanha os ciclos da natureza — como o início das chuvas, a colheita do milho ou a pesca do peixe grande. As festas mais importantes reúnem famílias de diferentes comunidades e envolvem vários dias de preparação, jejum e canto. São ocasiões de reafirmação da identidade coletiva e de renovação do pacto com o sagrado.
Entre essas festas, destaca-se o Parixara, uma dança tradicional que envolve música, batidas de pés, trajes especiais e forte carga simbólica. O Parixara não é apenas entretenimento: é memória viva dos tempos ancestrais, expressão de força espiritual e meio de ensino intergeracional. Durante a dança, os participantes reencenam elementos míticos e agradecem aos criadores pelos dons da vida.
Além das festas coletivas, há também rituais de passagem, como o nascimento, a puberdade, o casamento e a morte. Cada um desses momentos é acompanhado por ritos específicos, que incluem cantos, benzeduras, banhos de ervas, pinturas e restrições alimentares. A função desses ritos é garantir proteção espiritual, ensinar valores e situar o indivíduo dentro do coletivo (ISA, 2025).
O Marynau, na tradição espiritual do povo Wapichana, é simultaneamente guia espiritual, curador e guardião do conhecimento ancestral. Sua atuação é essencial nos rituais de cura, nos quais ele adentra os planos invisíveis para buscar a alma perdida do doente ou confrontar a entidade causadora da enfermidade. Seus cantos não são apenas narrativas simbólicas: são verdadeiros instrumentos de ação espiritual. Ao entoá-los, o Marynau engaja-se diretamente na batalha pela restauração da vida e do equilíbrio, reconduzindo a alma ao corpo e reestabelecendo a harmonia entre o mundo visível e o invisível.
Ao lado do Marynau, há também os Kapurinhau, rezadores e benzedeiros especialistas em puuri (orações tradicionais), que não exercem o papel de pajés em estado de transe, mas desempenham funções espirituais de grande importância. Por meio do maruwaib (defumação), eles detêm vastos repertórios de orações voltadas à cura, à proteção, ao êxito na caça e à vida comunitária. Sua sabedoria expressa-se em palavras sagradas que, mesmo sem recorrer ao transe, possuem força espiritual capaz de sustentar a saúde física e espiritual do povo.
Os marynaunau (pajés), os kapurinhau (benzedeiros) as parteiras e os mais velhos são guardiões de saberes de cura que integram corpo, espírito e natureza. As doenças não são vistas apenas como falhas físicas, mas como desequilíbrios relacionais ou espirituais. O tratamento envolve plantas medicinais, palavras sagradas (puuri), gestos ritualizados e acompanhamento espiritual.
A cura é entendida como restauração da harmonia, e não apenas como eliminação de sintomas. Por isso, envolve a família, a comunidade e até o território. Um lugar profanado, uma promessa não cumprida, uma palavra mal dita — tudo isso pode ser causa de enfermidade. A espiritualidade Wapichana, assim, é profundamente terapêutica, pois articula ética, ecologia e religião.
Com o passar dos anos, muitas comunidades Wapichana passaram a acolher elementos do cristianismo em suas práticas rituais, sem abandonarem completamente suas tradições. Celebrações de batismo, casamentos e missas comunitárias são, por vezes, realizadas com cantos em Wapichana, com uso de grafismos e com inserção de elementos simbólicos tradicionais.
Esse processo de inculturação não deve ser visto como sincretismo, mas como expressão da vitalidade cultural e da capacidade do povo de integrar o Evangelho à sua própria experiência espiritual. A Igreja, ao reconhecer e valorizar esses rituais, contribui para um anúncio mais encarnado e coerente com a vida do povo.
A sociedade Wapichana é marcada por uma organização comunitária horizontal, cooperativa e relacional (sob a liderança do tuxaua). Não se trata de uma sociedade hierarquizada segundo padrões autoritários, mas de uma estrutura social sustentada por vínculos familiares, solidariedade entre gerações, respeito aos mais velhos e partilha dos bens. A ética que emerge desse modo de organização está enraizada na vivência cotidiana, nos rituais e na memória coletiva. Ela não se expressa principalmente em códigos escritos, mas em atitudes transmitidas oralmente e performadas em comunidade (ISA, 2025).
A célula básica da vida social Wapichana é a família extensa, que inclui pais, filhos, avós, tios e primos convivendo em arranjos interdependentes. As decisões importantes não são tomadas de forma individual, mas discutidas em grupo, com escuta dos mais velhos e consulta aos líderes tradicionais. Essa forma de viver promove um senso de pertencimento e corresponsabilidade que fortalece o tecido social.
Cada membro da comunidade possui um papel definido, seja nas tarefas do campo, na organização das festas, na educação das crianças ou na resolução de conflitos. O trabalho é distribuído segundo critérios de idade, gênero e experiência, mas sempre com base na colaboração e na ajuda mútua. Não há espaço para o acúmulo excessivo nem para o individualismo competitivo. O bem comum deveria prevalecer sobre os interesses particulares.
A liderança nas comunidades Wapichana é exercida por meio do respeito conquistado e da escuta atenta. Os líderes, chamados de tuxauas, não impõem sua vontade, mas orientam com base na sabedoria e no diálogo. São escolhidos por sua trajetória, seu exemplo e sua capacidade de articular a comunidade frente aos desafios. Além dos tuxauas, os anciãos e as anciãs exercem forte influência moral e espiritual, sendo consultados em decisões importantes e reconhecidos como portadores da memória do povo.
Essa forma de autoridade participativa inspira modelos alternativos de organização política e eclesial, que valorizam o discernimento coletivo, a escuta dos pequenos e a confiança no processo. Em muitas comunidades Wapichana, as assembleias são espaços sagrados de fala, escuta e decisão, funcionando como verdadeira “liturgia da vida”.
Entre os valores mais importantes para o povo Wapichana estão o respeito, a reciprocidade, a generosidade, a escuta e a memória. O respeito se manifesta nas relações com os mais velhos, com a natureza e com os espíritos. A reciprocidade orienta o trabalho, a partilha dos alimentos e a cooperação mútua. A generosidade é sinal de nobreza e de sabedoria espiritual: quem acumula ou retém em excesso é visto com desconfiança.
A escuta é fundamental para o equilíbrio comunitário. Espera-se o momento certo de intervir, o tom adequado, a palavra justa. Essa ética da escuta valoriza o silêncio como meio de comunhão e sabedoria. Já a memória garante a continuidade da tradição, sendo constantemente atualizada por meio dos ritos, dos nomes e das narrativas.
Outro valor central é o cuidado com os mais frágeis: crianças, doentes e idosos são prioridade na vida comunitária. Essa ética do cuidado não se limita ao humano, mas se estende ao território, aos animais e às fontes de água, como expressão de uma espiritualidade que une justiça, gratidão e responsabilidade.
A ética Wapichana é também uma forma de resistência diante da imposição de modelos coloniais de vida. Frente à lógica capitalista, consumista e individualista, o modo de vida comunitário Wapichana preserva uma visão do mundo mais equilibrada, sustentável e justa. Essa ética da vida boa (kaimem) se expressa nas pequenas ações do cotidiano e oferece uma alternativa simbólica e prática ao paradigma dominante.
Para a teologia cristã, essa ética comunitária representa não apenas um desafio pastoral, mas uma interpelação evangélica. Os valores Wapichana coincidem, em muitos aspectos, com os valores do Reino de Deus anunciados por Jesus: partilha, cuidado, escuta, serviço e humildade. Por isso, o diálogo com essa ética pode enriquecer profundamente a ação evangelizadora da Igreja na Amazônia.
No universo simbólico Wapichana, os nomes não são apenas rótulos identificadores, mas expressões da história, da espiritualidade e da missão de cada pessoa. Nomear é um ato sagrado, carregado de memória ancestral e força espiritual. Ao receber um nome, a pessoa não apenas entra na comunidade: ela recebe uma missão, uma identidade e uma bênção. Essa concepção do nome contrasta com a visão ocidental moderna, na qual o nome é muitas vezes arbitrário ou burocrático.
O processo de nomeação entre os Wapichana costuma ser coletivo, cuidadoso e cheio de sentido. O nome pode vir dos ancestrais, de sonhos, de acontecimentos importantes, da natureza ou de uma experiência espiritual marcante. Frequentemente, nomes são dados por pessoas mais velhas — avós, benzedeiros ou pajés — que reconhecem algo especial na criança recém-nascida.
Esse modo de nomear revela uma profunda teologia da pessoa: o nome não é algo externo, mas expressão do mistério de quem se é diante do mundo e diante do espiritual. Um nome carrega energia, história e destino. Ele diz de onde a pessoa vem, a quem ela pertence e o que ela carrega em si como dom ou tarefa.
Os nomes também funcionam como dispositivos de memória. Ao nomear uma criança com o nome de um ancestral, a comunidade reafirma sua continuidade e mantém viva a história dos que já partiram. Nesse sentido, o nome é ponte entre os vivos e os mortos, entre o presente e o passado. Ele insere o indivíduo em uma genealogia espiritual da natureza que transcende o tempo.
Por isso, o nome deve ser tratado com respeito. Não se pronuncia o nome de certos ancestrais em qualquer momento. Alguns nomes são considerados “fortes” e exigem preparo ou discernimento para serem transmitidos. Quando alguém pronuncia o nome de uma pessoa querida que faleceu, pode-se invocar sua presença ou proteção espiritual.
O nome também é um chamado. Ele aponta para o que a pessoa é chamada a ser no mundo. Se uma criança recebe o nome de um grande guerreiro, espera-se que ela seja corajosa; se recebe o nome de uma planta medicinal, espera-se que traga cura e equilíbrio. Essa expectativa não é uma imposição, mas um reconhecimento espiritual que acompanha a trajetória da pessoa e a inspira.
Essa concepção aproxima-se da tradição bíblica, na qual o nome carrega missão e revelação. Abrão torna-se Abraão, pois será “pai de muitas nações”; Simão é chamado Pedro, porque será a “pedra” da Igreja. No batismo cristão, o nome é também sinal de filiação e vocação. Como veremos na leitura teológica posterior, há pontes profundas entre essa visão indígena e a antropologia cristã do nome.
Em algumas comunidades Wapichana, é costume que pessoas não indígenas — especialmente missionários que vivem com o povo — recebam um nome Wapichana. Esse gesto não é decorativo nem protocolar: é sinal de acolhimento, reconhecimento e aliança. Ao dar um nome, a comunidade reconhece que aquela pessoa estrangeira passou a fazer parte da história coletiva. Nomear é, aqui, um gesto de reciprocidade cultural e espiritual.
Receber um nome indígena exige responsabilidade. Significa estar disposto a escutar, aprender, respeitar e caminhar junto. Significa também ser portador de uma mensagem, de um modo de viver e de uma relação de confiança que se constrói com o tempo.
O diálogo com as culturas indígenas não é uma concessão periférica, mas uma exigência profunda da missão evangelizadora da Igreja no mundo contemporâneo. A teologia católica, especialmente a partir do Concílio Vaticano II, tem desenvolvido uma compreensão cada vez mais aberta à pluralidade cultural e religiosa, reconhecendo que o Espírito de Deus já atua nos povos e em suas tradições antes mesmo do anúncio explícito do Evangelho. O encontro com a cosmovisão Wapichana deve ser, portanto, iluminado por essa teologia do diálogo, que é ao mesmo tempo uma atitude pastoral, uma postura epistemológica e um caminho espiritual (CIMI, 2025).
O Concílio Vaticano II representa um ponto de inflexão na relação da Igreja com as culturas e as tradições não cristãs. No documento Gaudium et Spes (1965), a Igreja se declara “solidária com toda a família humana” e comprometida com a escuta dos “sinais dos tempos” (GS, 1; 4). No que diz respeito às religiões e culturas indígenas, o decreto Ad Gentes afirma que “os discípulos de Cristo devem conhecer bem as tradições nacionais e religiosas” e que a evangelização deve levar em conta “os elementos de verdade e de graça” já presentes entre os povos (AG, 11).
Essa atitude de escuta e de reconhecimento prepara o terreno para uma teologia que não parte da superioridade, mas da humildade evangélica. Evangelizar não é colonizar; é testemunhar o Cristo vivo com respeito pela história do outro. Como afirmou São João Paulo II aos povos indígenas no Canadá (1984): “A Igreja exorta vocês a manterem vivos os seus costumes, as suas tradições, a sua língua, e as suas terras.”
Nos últimos anos, o Papa Francisco tem aprofundado essa teologia do diálogo, especialmente em contextos latino-americanos e amazônicos. Na exortação apostólica Evangelii Gaudium (2013), ele afirma que “a realidade é mais importante que a ideia” e que “o todo é superior às partes” (EG, 231–237), chamando a atenção para a valorização das culturas locais como lugares teológicos, ou seja, espaços onde Deus já se manifesta.
Na encíclica Laudato Si’ (2015), Francisco reconhece explicitamente a sabedoria dos povos indígenas: “É indispensável escutar tanto o clamor da terra quanto o clamor dos pobres” (LS, 49). Ele afirma que os indígenas “quando permanecem nos seus territórios, são precisamente eles que melhor os cuidam” (LS, 146), e que seu modo de viver é uma alternativa às lógicas de dominação e destruição ambiental.
Já no documento Querida Amazonia (2020), fruto direto do Sínodo para a Amazônia, Francisco apresenta quatro sonhos: social, cultural, ecológico e eclesial. O sonho cultural é expresso com clareza: “Sonho com uma Amazônia que preserve a riqueza cultural que a distingue, onde brilha de modos tão diversos a beleza humana” (QA, 7). E mais adiante, o Papa afirma: “É possível recolher, de maneira inculturada, os símbolos autênticos, sem os reduzir a elementos folclóricos” (QA, 78).
Essa teologia do diálogo não é relativista, mas profundamente evangélica. Ela exige discernimento: escutar com respeito, reconhecer o que é do Espírito e purificar o que for necessário à luz do Evangelho. Como afirma o Documento de Aparecida (2007), a evangelização deve ser inculturada, ou seja, “capaz de expressar a fé cristã nas linguagens e símbolos próprios das culturas” (DAp, 479).
No contexto Wapichana, essa teologia convida a Igreja a escutar os mitos, os rituais, os nomes e os símbolos, não como obstáculos, mas como mediações possíveis do encontro com Deus. O diálogo não é mera estratégia pastoral, mas caminho de conversão mútua: a Igreja se deixa interpelar pela sabedoria dos povos indígenas e, ao mesmo tempo, oferece o dom de Cristo com humildade e alegria.
A espiritualidade Wapichana, construída a partir de mitos fundadores, práticas rituais e uma profunda relação com o território, revela intuições religiosas que, à luz da fé cristã, podem ser reconhecidas como sementes do Verbo (semina Verbi), ou seja, vestígios da presença divina na história dos povos. Ao escutar com atenção a cosmovisão Wapichana, é possível encontrar ressonâncias com temas centrais da tradição bíblica, especialmente no que se refere à criação, à força da palavra e à presença discreta, mas constante, de Deus na história humana.
Na Bíblia, o relato da criação em Gênesis 1 apresenta um Deus que cria o mundo com amor e ordem: “Deus viu tudo o que havia feito, e era muito bom” (Gn 1,31). A criação não é fruto do acaso nem de uma luta entre forças caóticas, mas obra de um Deus que chama o ser à existência por meio da palavra. Essa visão encontra eco profundo na tradição Wapichana, segundo a qual Tuminkary criou o mundo por meio do puuri, a palavra viva e eficaz.
O mito da grande árvore que sustentava o céu e unia todos os seres expressa de forma simbólica a harmonia original da criação, similar ao jardim do Éden (Gn 2), onde o ser humano vivia em comunhão com os outros seres, sem vergonha, dominação ou morte. A queda da árvore no mito Wapichana marca a ruptura dessa ordem primordial — uma espécie de “queda” cósmica — que também aparece nas Escrituras como consequência da desobediência e da pretensão humana (Gn 3).
Ambas as tradições, bíblica e indígena, reconhecem que o mundo atual carrega as marcas dessa ruptura, mas também conserva sinais da bondade original. A terra, os rios, os animais e os ciclos da natureza ainda são fontes de revelação, beleza e comunhão, se forem acolhidos com gratidão e respeito.
O Evangelho de João inicia com uma afirmação teológica que ilumina toda a reflexão sobre a linguagem sagrada Wapichana: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. […] Tudo foi feito por meio dele” (Jo 1,1–3). O Verbo, ou Logos, é a Palavra eterna que cria, revela e salva. Esse Verbo se fez carne em Jesus, assumindo nossa condição para redimir o mundo desde dentro.
A noção Wapichana de puuri — a palavra que cria, cura e ordena — se aproxima, em chave simbólica, dessa realidade teológica. Tuminkery fala, e o mundo acontece. A palavra não é mera representação, mas ação. Ela transforma, abençoa, orienta e corrige. O mesmo se pode dizer da Palavra de Deus nas Escrituras, que nunca volta sem produzir efeito (cf. Is 55,11).
Essa aproximação não significa identidade plena, mas permite reconhecer que, desde sua própria tradição, os Wapichana intuem algo da lógica do Evangelho: um Deus que cria com ternura, que fala com verdade e que permanece presente por meio de sua Palavra.
Na espiritualidade Wapichana, após a criação, Tuminkary se retira para um plano invisível, deixando aos humanos a responsabilidade de manter a ordem do mundo com base na memória, na palavra e nos rituais. Essa ausência do criador, no entanto, não é abandono: é presença velada, manifestação simbólica, mistério acessível pela escuta e pela sensibilidade espiritual.
De modo análogo, a tradição bíblica conhece o silêncio de Deus, sua presença discreta e sua ação oculta na história. O livro de Jó, os Salmos de lamento e os momentos de exílio e desolação mostram um Deus que nem sempre fala claramente, mas que caminha conosco, muitas vezes de forma invisível. A encarnação do Verbo em Jesus é, nesse sentido, a revelação mais próxima e concreta do Deus escondido, que “armou sua tenda entre nós” (Jo 1,14), tornando-se acessível no cotidiano.
Os Wapichana, ao reconhecerem os sinais dos criadores na natureza, nos sonhos, nos nomes e nos animais, desenvolvem uma espiritualidade do discernimento e da escuta, que se aproxima da lógica do Reino de Deus descrita por Jesus: um Reino presente, mas oculto; pequeno como um grão de mostarda, mas cheio de potência (cf. Mc 4,30–32).
Esses ecos bíblicos não autorizam uma fusão superficial entre tradições, mas indicam pontos de convergência que podem ser aprofundados pastoral e teologicamente. A revelação cristã, ao encontrar-se com a sabedoria Wapichana, não anula sua originalidade, mas pode ser enriquecida pela escuta atenta e reverente dessa espiritualidade.
Como afirmou o Papa Francisco: “Quando os missionários chegaram a uma terra, deveria se pedir: onde está o Espírito Santo já presente aqui? E não: como vamos trazer o Espírito Santo?” (Discurso no CELAM, 2013). Isso vale também para a teologia: antes de explicar, ela deve escutar. Antes de ensinar, deve aprender.
A cosmovisão Wapichana nos ensina que a criação é dom, que a palavra tem poder, que Deus é mistério e que a presença espiritual se manifesta na natureza e na memória. Esses ensinamentos, se acolhidos com humildade, podem iluminar a fé cristã e renovar a missão da Igreja na Amazônia.
A relação com a terra está no centro da experiência espiritual dos povos indígenas e constitui também um ponto fundamental da tradição bíblica e da teologia cristã. Para os Wapichana, como vimos, a terra é mãe, memória, fonte de vida e lugar de relação com os ancestrais e com os espíritos (FUNAI, 2025). Essa visão, longe de ser puramente utilitária, revela uma compreensão teológica implícita: a terra é dom e mistério. Essa concepção encontra importantes ressonâncias na tradição cristã, especialmente nas Escrituras, na espiritualidade franciscana e no magistério contemporâneo da Igreja.
Na Sagrada Escritura, a terra é constantemente descrita como dom de Deus. Desde o livro do Gênesis, ela é apresentada como criação boa, confiada ao cuidado do ser humano (Gn 1,28–31). A terra não pertence ao homem, mas ao Senhor: “A terra é minha, e vós sois estrangeiros e hóspedes junto a mim” (Lv 25,23). Essa consciência de pertença divina impede uma visão possessiva e destrutiva do território e chama o povo à gratidão, à justiça e ao cuidado.
A terra também é sinal de aliança. Para o povo de Israel, ela representa a promessa de Deus, mas essa promessa está sempre condicionada à fidelidade ética e espiritual. Quando o povo se afasta da justiça, a terra geme, torna-se estéril, e os exílios se tornam advertências proféticas. Assim, a relação com a terra é sempre teológica: depende da fidelidade a Deus e ao próximo.
Essa visão bíblica ressoa fortemente com a cosmovisão Wapichana, para quem a terra não pode ser apropriada, comprada ou vendida. Ela é recebida dos ancestrais e cuidada para as gerações futuras. Destruir a terra é quebrar uma aliança, violar uma relação sagrada. O vínculo com o território é espiritual, não apenas territorial.
A espiritualidade cristã encontra em São Francisco de Assis um modelo privilegiado de relação com a criação. No Cântico das Criaturas, Francisco chama a terra de “nossa irmã e mãe”, que nos sustenta e governa com ternura. Sua sensibilidade ecológica não é romântica, mas profundamente teológica: ao reconhecer a fraternidade de todos os seres, ele afirma que tudo foi criado por amor e para o louvor do Criador.
A teologia indígena, mesmo que não utilize esses termos, vive algo semelhante. O respeito pela terra, pelos rios, pelos animais e pelas árvores revela uma espiritualidade do cuidado, da comunhão e da gratuidade. Há uma afinidade profunda entre o olhar franciscano e a vivência cotidiana Wapichana: ambos veem a terra como reflexo do rosto de Deus.
Essa convergência foi reconhecida pelo Papa Francisco em sua encíclica Laudato Si’, onde afirma: “Os povos indígenas não são uma simples minoria entre outras, mas devem ser os principais interlocutores” na defesa da terra, pois possuem “uma cultura com um cuidado peculiar pelo território” (LS, 146).
O território tradicional Wapichana não é apenas cenário da vida, mas sujeito espiritual. Certas colinas, nascentes, clareiras e árvores são moradas de encantados ou lugares de memória sagrada. Essa percepção do espaço como “teofania” — lugar da manifestação divina — desafia a teologia cristã a ampliar seu conceito de sacramento e de lugar sagrado.
De fato, a teologia católica reconhece que Deus se comunica por mediações concretas: a água, o pão, o vinho, o óleo, a palavra. Também reconhece que certos lugares tornam-se “santuários” por causa da experiência comunitária da fé. Quando a comunidade Wapichana canta, dança e reza diante de uma serra ancestral, ela não está apenas fazendo cultura: ela está reconhecendo e atualizando a presença do sagrado.
A teologia do território, desenvolvida por muitos teólogos latino-americanos e indígenas, reforça essa dimensão: a terra é lugar de revelação e de cuidado; é espaço de espiritualidade e de missão. A Igreja, ao reconhecer isso, é chamada a defender a integridade dos territórios indígenas não só por razões sociais ou ambientais, mas também por coerência com sua própria fé.
A tradição Wapichana nos apresenta o conceito de puuri como a palavra viva e eficaz, capaz de criar, curar, ordenar e transformar a realidade. Essa visão da linguagem como força espiritual não apenas se opõe à concepção meramente instrumental da fala, mas também aponta para uma dimensão mística e sacramental do verbo. No horizonte cristão, essa intuição encontra sua máxima expressão no mistério do Verbo encarnado: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (Jo 1,1). A relação entre puuri e o Logos cristão abre um fecundo espaço de diálogo teológico e espiritual.
No relato da criação do Gênesis, Deus cria o mundo por meio da palavra: “Deus disse: ‘Faça-se a luz!’ – e a luz se fez” (Gn 1,3). Cada novo ato criador é precedido por um verbo divino que dá forma ao caos e estabelece a ordem. A palavra, nesse sentido, é princípio de vida, luz e sentido. Ela não é um som vazio, mas uma energia criadora que comunica o próprio ser de Deus.
Entre os Wapichana, o puuri possui função análoga: Tuminkary, o criador, não molda o mundo com as mãos, mas com a palavra. Ele fala e os seres vêm à existência. Esse paralelismo, ainda que pertencente a sistemas culturais distintos, revela uma percepção compartilhada da linguagem como mediadora entre o invisível e o visível, entre o espiritual e o concreto.
Além disso, o puuri é também palavra de cuidado. Ele é usado nas benzeduras, nos cantos de cura, nas mediações de conflitos e nos ensinamentos dos anciãos. O que é dito com verdade e sabedoria tem poder de restaurar o equilíbrio. Essa ética da palavra nos recorda a própria missão de Jesus como Verbo de Deus: suas palavras curavam, libertavam, anunciavam o Reino e transformavam os corações.
O prólogo do Evangelho de João oferece uma das formulações mais profundas da teologia cristã: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). O Verbo divino não permanece distante, mas assume nossa condição humana, nossa linguagem, nossa cultura e nossos limites. Deus fala conosco por meio de uma vida concreta, encarnada, localizada. Isso confere dignidade à existência humana e santifica o cotidiano.
Essa encarnação do Verbo, no contexto do diálogo com os povos indígenas, assume uma dimensão particular: o Verbo pode se fazer “palavra indígena”, pode ressoar no puuri, pode encontrar morada nas narrativas, cantos e danças dos povos originários. Como afirmou o Papa Francisco, “a fé cristã não desmantela o sonho indígena, mas o purifica e o realiza” (Querida Amazônia, 67).
A teologia da encarnação convida a uma evangelização que não destrói as culturas, mas que reconhece nelas lugares de acolhida do Verbo. Quando um pajé proclama palavras de vida sobre um doente, ou quando uma avó ensina uma história sagrada às crianças, pode-se perceber ali, em chave teológica, a presença discreta do Verbo que continua a se comunicar no coração dos povos.
A palavra puuri, nesse contexto, pode ser vista como uma categoria teológica nativa — isto é, um conceito cultural que carrega potencial para expressar mistérios cristãos de forma inculturada. Assim como os primeiros concílios usaram conceitos gregos (como Logos, ousía, hypóstasis) para falar de Deus, hoje é legítimo perguntar: que conceitos indígenas podem nos ajudar a expressar a fé? O puuri é um deles.
Essa mediação, porém, exige discernimento e diálogo. Não se trata de sincretismo, mas de inculturação: o Evangelho se encarna nas linguagens e símbolos do povo, iluminando-os e sendo por eles iluminado. A palavra criadora, tanto em Tuminkery quanto no Cristo, aponta para um Deus que fala, se comunica, se doa e se faz próximo.
A tradição Wapichana compreende o corpo humano como espaço sagrado, mediador entre o mundo visível e o invisível, entre a terra e os espíritos. Nas festas, nas danças, nas pinturas e nos rituais, o corpo é agente de celebração e de memória. A expressão corporal não é acessório cultural, mas elemento essencial da espiritualidade. Essa concepção encontra forte ressonância com a liturgia cristã, onde o corpo, os gestos, os símbolos e os sentidos têm papel central na relação com o mistério de Deus.
Para os Wapichana, dançar não é apenas divertir-se. É rezar, narrar, evocar, agradecer. A dança tradicional do Parixara, por exemplo, atualiza histórias míticas, celebra a colheita, invoca proteção espiritual e reafirma a identidade do povo. Cada passo, cada canto, cada batida de pé no chão carrega sentido ritual. As danças coletivas são verdadeiros atos litúrgicos: elas organizam o tempo, unem as gerações e colocam o povo em sintonia com os ciclos da natureza e da vida.
Essa dimensão ritual da dança evoca, na tradição cristã, a teologia do corpo e da festa. A liturgia cristã também é corporal: ajoelha-se, levanta-se, caminha-se em procissão, faz-se o sinal da cruz, canta-se com o corpo. Os Salmos, por sua vez, convidam a “dançar para o Senhor” (Sl 149,3), reconhecendo a corporeidade como linguagem de louvor.
A Bíblia afirma que “o corpo é templo do Espírito Santo” (1Cor 6,19). A encarnação do Verbo em Jesus reafirma a dignidade do corpo humano, tornando-o lugar de revelação e de comunhão. Essa antropologia cristã encontra paralelos na visão Wapichana, na qual o corpo é portador de grafismos sagrados, canal de forças espirituais e sede da memória comunitária.
Nas celebrações indígenas, o corpo é preparado com pintura, colares, cocares e perfumes naturais. Esses adornos não são apenas estéticos: eles protegem, comunicam pertencimento, expressam alegria e estabelecem pontes com o mundo dos encantados. De modo semelhante, a Igreja reveste seus ministros, embeleza seus espaços litúrgicos e utiliza o óleo, a água, o pão e o vinho como mediações do sagrado.
Assim como a pintura corporal pode marcar o rito de passagem de uma criança à puberdade, o batismo cristão marca, com água e palavra, o nascimento espiritual de alguém para a vida em Cristo. Ambos os ritos expressam uma transformação existencial, uma entrada em nova relação com o mundo e com a comunidade.
A teologia litúrgica contemporânea reconhece que “a liturgia deve ser inculturada”, ou seja, capaz de assumir formas simbólicas que brotam da cultura do povo, sem perder a fidelidade ao mistério cristão. O Diretório sobre Liturgia e Cultura (1994) da Congregação para o Culto Divino afirma que “a liturgia deve assumir o que nas culturas humanas é verdadeiro, bom e belo”.
Nesse sentido, a dança, os instrumentos indígenas, as línguas originárias e os gestos rituais dos Wapichana podem — e devem — encontrar espaço na celebração cristã. Não se trata de folclore nem de concessão cultural, mas de expressão legítima da fé encarnada em uma história concreta. O corpo Wapichana, ao dançar e cantar sua fé, também proclama o Evangelho com sua própria linguagem.
O nome é uma das expressões mais profundas da identidade humana. Nas culturas indígenas, como entre os Wapichana, nomear é reconhecer, acolher, conferir missão e inserir a pessoa em uma rede de vínculos espirituais, familiares e territoriais. Essa visão está em sintonia com a antropologia cristã, que entende o nome como dom, vocação e sinal da dignidade única de cada pessoa diante de Deus. O batismo, como sacramento da iniciação cristã, está profundamente ligado à identidade pessoal e à nomeação.
Na Bíblia, os nomes têm peso espiritual e histórico. Eles revelam a vocação, o caráter e, muitas vezes, o destino das pessoas. Deus muda o nome de Abrão para Abraão (Gn 17,5), de Jacó para Israel (Gn 32,29), e Jesus dá a Simão o nome de Pedro, a “rocha” (Mt 16,18). O nome expressa quem a pessoa está chamada a ser. E Deus conhece cada um pelo nome: “Eu te chamei pelo nome, tu és meu” (Is 43,1).
Essa valorização do nome, enquanto identidade dada por Deus, ressoa fortemente com a prática Wapichana de nomear com discernimento, baseando-se em sonhos, linhagens ou sinais espirituais. Para os Wapichana, o nome não é apenas funcional: ele liga a pessoa à sua história e à sua missão no mundo.
O batismo cristão é o sacramento que marca o nascimento de uma pessoa para a vida em Cristo. Nele, a pessoa é acolhida na comunidade eclesial e recebe um nome, se ainda não tiver. Este nome, além de cultural ou familiar, passa a ser entendido à luz da filiação divina: a pessoa se torna filha de Deus, membro do Corpo de Cristo e templo do Espírito Santo.
O batismo é, portanto, um rito de passagem e de pertencimento. Como nas cerimônias de nomeação tradicionais, ele envolve a invocação de um nome, gestos simbólicos (água, unção, vela, veste branca) e a introdução numa nova rede de relações — com Deus, com os santos e com a comunidade cristã. O nome batismal torna-se, assim, sinal de uma vocação única e sagrada.
Em muitas comunidades indígenas, o batismo cristão é vivido como um segundo momento de nomeação, complementando ou dialogando com o nome tradicional. Há famílias que pedem que a criança receba tanto um nome Wapichana quanto um nome cristão, às vezes escolhendo o nome de um santo ou de alguém querido. Esse gesto pode ser visto como sinal de dupla pertença: à tradição ancestral e à fé em Cristo.
Para a pastoral inculturada, esse é um espaço fecundo de diálogo. O nome indígena pode ser valorizado na celebração, mencionado pelo ministro, reconhecido como expressão da identidade profunda da pessoa diante de Deus. O batismo, por sua vez, pode ser entendido como plenificação daquilo que já é intuído na tradição: a vida como dom, o nome como missão e a comunidade como lugar de bênção.
Num mundo marcado pela despersonalização e pela perda de identidade cultural, resgatar o valor do nome — tanto na tradição cristã quanto na indígena — é um ato de resistência espiritual. Nomear é reconhecer a dignidade única de cada pessoa, afirmar seu lugar no mundo e garantir sua visibilidade na história. O Evangelho nos recorda que Deus “chama suas ovelhas pelo nome” (Jo 10,3). Esse chamado continua vivo também na voz dos anciãos e anciãs que nomeiam os filhos da terra com sabedoria ancestral.
A escuta atenta da cosmovisão Wapichana, articulada com a reflexão teológica cristã, revela a necessidade e a urgência de uma teologia indígena católica: um modo de fazer teologia que não apenas fale sobre os povos indígenas, mas que fale a partir deles — de seus territórios, de suas memórias, de seus símbolos e de sua experiência de Deus. Essa teologia não nega a tradição católica; ao contrário, deseja aprofundá-la por meio de um encontro fecundo com a alteridade, numa fidelidade criativa ao Evangelho.
Tradicionalmente, a teologia católica utilizou o conceito de inculturação para expressar o processo de adaptação do Evangelho às diversas culturas. Esse conceito foi importante para superar a visão eurocêntrica que associava evangelização à uniformidade. No entanto, o contexto atual exige um passo adiante: da inculturação à interculturalidade.
A interculturalidade pressupõe não apenas a entrada do Evangelho em uma cultura, mas o diálogo mútuo entre culturas e tradições. Supõe que a cultura indígena não seja mero receptáculo, mas sujeito ativo do processo teológico. A teologia indígena católica nasce quando os próprios povos refletem, rezam, escrevem e interpretam a fé a partir de sua realidade.
O Documento de Aparecida (2007) já apontava nessa direção ao afirmar que “a Igreja deseja assumir e valorizar a religiosidade e a sabedoria dos povos indígenas” (DAp, 530). O Sínodo para a Amazônia e a exortação Querida Amazônia deram novo impulso a esse caminho, convocando teólogos, missionários e comunidades indígenas a construir uma Igreja “com rosto amazônico e indígena” (QA, 6).
Uma teologia indígena católica precisa partir do território, não apenas como espaço geográfico, mas como lugar teológico. O chão, os rios, os nomes, os mitos, os saberes e os modos de vida não são “ambientação” da fé, mas matéria teológica. O território é sacramento do Reino, lugar de revelação e de missão.
Essa teologia também deve ser teologia da escuta. Escuta da terra, da comunidade, dos anciãos, dos espíritos, dos lamentos e dos cantos. É uma teologia que se faz em roda, não em cátedra. Que aprende com o silêncio, com o corpo e com os rituais. É uma teologia sensível à narrativa, à memória e ao ritmo do tempo natural.
Por fim, essa é uma teologia do corpo: corpo que dança, que sofre, que resiste, que celebra. Corpo pintado, corpo ferido, corpo em comunhão. O corpo de Cristo não está apenas na hóstia consagrada, mas também nos corpos ameaçados dos povos indígenas, que gritam por justiça e dignidade.
A construção de uma teologia indígena implica mudanças concretas na pastoral e na formação eclesial. É necessário promover espaços de escuta e de protagonismo para os teólogos e líderes indígenas; apoiar a produção de materiais litúrgicos, catequéticos e teológicos em línguas originárias; incluir temas indígenas nos currículos dos seminários, casas de formação e universidades católicas.
Também é fundamental reconhecer a espiritualidade indígena como fonte legítima de sabedoria cristã, sem reduzi-la a superstição ou folclore. O Espírito sopra onde quer (Jo 3,8) — e sopra também entre os povos originários, com sua beleza, sua resistência e sua visão de mundo.
Como afirmou o Papa Francisco, “é possível assumir um símbolo indígena sem o considerar necessariamente como idolatria. Um mito carregado de sentido espiritual pode ser utilizado com vantagem e até evangelizado” (Querida Amazônia, 79). A teologia indígena católica é, portanto, um caminho de renovação eclesial, de fidelidade ao Evangelho e de justiça histórica para os povos nativos.
O horizonte que se abre com essa reflexão é o de uma Igreja com rosto indígena, enraizada no território e aberta ao diálogo com todas as culturas. Uma Igreja que celebra com tambores e cantos em Wapichana, que reconhece o valor dos pajés e anciãos, que protege os rios como dom de Deus e que proclama o Evangelho com palavras e grafismos que brotam do chão.
Essa teologia não será feita sozinha. Ela é tarefa de muitos: indígenas, missionários, teólogos, catequistas, bispos e comunidades. É um caminho que exige escuta, humildade, coragem e discernimento. Mas é, sobretudo, um caminho de esperança. Pois, como diz o profeta: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5).
Este caderno procurou ser uma ponte entre dois mundos: a cosmovisão do povo Wapichana e a tradição teológica cristã católica. Ao longo de suas páginas, caminhamos com humildade e reverência entre mitos, palavras, rituais, nomes, territórios e símbolos sagrados que configuram o modo Wapichana de estar no mundo. Em seguida, aproximamos essa realidade das fontes da fé cristã: a Sagrada Escritura, a tradição teológica, a liturgia, os sacramentos e o magistério da Igreja. O que encontramos não foi oposição ou confronto, mas ecos, ressonâncias e possibilidades de um diálogo fecundo.
Essa aproximação nos leva a afirmar, com convicção e esperança, que a experiência de Deus não é monopólio de nenhuma cultura, mas dom universal que se manifesta de formas múltiplas e contextuais. Deus se comunica, se revela, habita. E o faz também nos cantos, nos mitos e nas danças dos povos indígenas. Como afirmam os documentos da Igreja, o Espírito Santo já estava presente entre os povos originários antes mesmo da chegada dos missionários, preparando seus corações para o encontro com Cristo.
A espiritualidade Wapichana nos ensinou que a terra não é coisa, mas sujeito. É mãe, é morada dos ancestrais, é espaço de presença divina. Essa percepção, que brota da experiência milenar de convivência respeitosa com o território, interpela fortemente a teologia cristã, sobretudo em tempos de crise climática e devastação ambiental (FUNAI, 2025).
Assumir a terra como dom de Deus — como o fazem tanto os Wapichana quanto os textos bíblicos — significa comprometer-se com sua defesa, com sua cura e com sua justiça. A terra não é apenas um cenário, mas um lugar teológico, onde Deus se manifesta e onde a fé se encarna. A teologia indígena católica, por isso, será sempre também uma teologia ecológica e profética.
O conceito de puuri — palavra viva, eficaz, criadora — ressoou com potência no diálogo com a teologia cristã da Palavra. Tuminkary, o criador Wapichana, fala e tudo existe. A Bíblia diz: “Deus disse: Faça-se a luz! – e a luz se fez”. O Evangelho afirma: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós”. A palavra, em ambas as tradições, é mediação do divino, caminho de cura, fonte de sabedoria.
Recuperar o poder da palavra — na liturgia, na catequese, na evangelização — é também tarefa teológica. Escutar o puuri é também aprender a proclamar a Palavra de Deus de forma encarnada, com o corpo, com o canto, com o silêncio. A palavra que cura é aquela que escuta primeiro.
A dimensão corporal da espiritualidade Wapichana nos recorda que a fé não é ideia, mas experiência. O corpo dança, canta, reza, cura. A celebração não é apenas ato ritual, mas expressão da vida em sua totalidade. O corpo pintado, o ritmo da música, o gesto partilhado — tudo isso comunica a presença do sagrado.
Essa percepção se aproxima da visão sacramental da Igreja: os sinais sensíveis da graça, os gestos que revelam o mistério. Dançar em Parixara pode ser tão sagrado quanto entrar em procissão. Pintar o corpo pode ser tão sagrado quanto fazer o sinal da cruz. O desafio é reconhecer essas expressões como legítimas, como lugares possíveis de encontro com Deus.
O nome indígena, cheio de significado espiritual, mostra que cada pessoa é chamada a ser alguém, e não apenas algo. O nome é dom e missão. No batismo cristão, recebemos também um nome novo: filhos de Deus, membros do Corpo de Cristo. A teologia cristã encontra, no valor simbólico do nome, uma ponte para dialogar com a antropologia indígena.
Reconhecer os nomes, respeitá-los, celebrá-los, é parte de uma pastoral que valoriza a cultura local e ajuda a afirmar a dignidade e a vocação de cada pessoa, segundo o coração de Deus.
Ao final deste caderno, não apresentamos conclusões definitivas, mas caminhos abertos. A teologia indígena católica está em construção, e precisa ser feita em diálogo com os próprios povos, em escuta respeitosa, com discernimento espiritual e com abertura pastoral. Trata-se de uma teologia que nasce da vida e volta para a vida, nutrida pela Palavra de Deus, pelo chão da terra e pela sabedoria dos ancestrais.
A Igreja, para ser fiel a seu Senhor, deve ser sempre uma Igreja em saída, que caminha com os povos, aprende com eles, se deixa evangelizar por sua fé e seus modos de ver o mundo. Como dizia Dom Pedro Casaldáliga: “A missão não é levar Deus aonde Ele já está, mas descobrir como Ele já se revela ali” (CIMI, 2025).
Por fim, este caderno quer ser um instrumento de formação, de reflexão e de celebração. Ele pode ser usado por agentes de pastoral, catequistas, lideranças, missionários e educadores. Pode servir como base para encontros, círculos bíblicos, estudos comunitários ou momentos de oração.
[1] Conforme a comunidade e a voz que o narra — seja de anciãos, lideranças, pajés ou benzedeiros — o mito apresenta nuances distintas. Em certas versões, Tuminkery e Duwid são irmãos; em outras, Duwid é descrito como homem, como relata Cristino Wapichana. Há relatos em que ambos derrubam a árvore primordial, e outros em que Duwid é quem restaura a ordem após o corte. Em todo caso, a narrativa aponta para aquele início em que, sob o aparente caos, reinava uma harmonia primordial.
[2] Um ancião da comunidade de Tabalascada (Serra da Lua-RR) testemunhou que, à noite, Duwid assume a forma de uma coruja e traz presságios para a comunidade.
[3] Os relatos essenciais sobre a natureza, os rios e os animais pertencem à tradição oral e são transmitidos de geração em geração. A professora Joice ouvia — e ainda ouve — as histórias que seu avô conta à noite. Essas narrativas só podem ser compartilhadas depois do pôr-do-sol; os anciãos alertam que, se forem contadas às pressas ou em plena luz do dia, as crianças envelhecerão muito depressa.
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Povos Indígenas no Brasil: Wapichana. Disponível aqui. Acesso em: 7 ago. 2025.
CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO (CIMI). Cosmovisão indígena e modelo de desenvolvimento. Disponível aqui. Acesso em: 7 ago. 2025.
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Diretório sobre Liturgia e Cultura (1994).
DOCUMENTO DE APARECIDA. (2007). V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe.
FRANCISCO, Papa. Querida Amazônia.
_________, Exortação apostólica Evangelii Gaudium.
_________, Carta Encíclica Laudato Si’.
_________, Discurso no CELAM, 2013.
FUNDAÇÃO NACIONAL DOS POVOS INDÍGENAS (FUNAI). Para os indígenas a terra não é um bem econômico, mas um dom gratuito de seus antepassados, afirma Papa Francisco. 3 set. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 7 ago. 2025.
NARRATIVAS tradicionais sobre Tuminkary e Duwid (versões locais em Roraima). Roraima, 2024-2025. Informação oral (manuscrito não publicado).
RELATOS orais coletados em contexto pastoral com comunidades Wapichana. Roraima, 2024-2025. Informação verbal (arquivo pessoal dos autores).
WAPICHANA, Cristino, A árvore do mundo, São Paulo: Rodopio, 2021.