09 Março 2024
Secretária-geral do Movimento de Mulheres Indígenas, do Conselho Indígena de Roraima (CIR), que representa 465 comunidades no estado, ela conta como está sendo a trajetória no combate à violência de gênero e afirma que é inspirada por outras ‘guerreiras’ que hoje comandam grandes cargos no país.
A entrevista com Kelliane Wapichana é de Jullie Pereira, publicada por InfoAmazonia, 08-03-2024.
Em janeiro de 2023, Kelliane Wapichana, 32 anos, assumiu, pela primeira vez, um cargo de liderança e passou a dirigir a Secretaria Geral do Movimento de Mulheres, do Conselho Indígena de Roraima (CIR), organização independente que representa indígenas de 465 comunidades no estado. Ela é responsável por desenvolver atividades de conscientização, de formação de líderes femininas e de combate à violência. Como referência, cita o trabalho de outras mulheres no comando de cargos de poder no país, como Joenia Wapichana, Sonia Guajajara, Célia Xakriabá e Marizete Macuxi.
Fez parte da primeira turma do curso de Gestão Territorial, do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena — uma instituição exclusiva para atender às demandas educacionais dos povos originários no estado —, da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Depois, passou a fazer parte da equipe do CIR e, hoje, tem o objetivo de acolher mulheres indígenas que denunciam agressões, compartilham suas vivências e lutam por seus espaços.
Kelliane entende que faz parte de uma geração de mulheres indígenas que optou por estudar desde cedo e, por isso, vive uma realidade diferente de outras gerações com quem dialoga. “Falo com mulheres que têm toda uma bagagem maior que a minha. Então, eu tenho que saber escutar e ir devagar”, explica.
No último ano, ela ensinou as mulheres da comunidade sobre o direito de serem respeitadas, de denunciarem violências, e de não aceitarem apenas trabalhos domésticos. A InfoAmazonia conversou com Kelliane no início de janeiro em um evento que ocorreu na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Às mulheres presentes, ela explicou que não se deve aceitar agressões físicas, assim como o fato de que algumas atitudes comuns por parte dos companheiros, como puxar o cabelo, empurrar ou bater, não são aceitáveis.
Os ensinamentos são repassados pela oralidade, uma metodologia de ensino que é ancestral e respeitada pelos povos indígenas. Quando uma líder fala, elas param para escutar. Dessa forma, com palestras, seminários, encontros em rodas de conversas, é que ela ensina o que é a violência física, patrimonial, psicológica e sexual.
Nesta entrevista, Kelliane Wapichana conta como tem sido esse trabalho desafiador de combate à violência de gênero, faz um balanço do primeiro ano no cargo, e explica de que forma as comunidades indígenas estão desenvolvendo suas próprias leis para proteção das mulheres, com ajuda de advogadas, anciãs, pajés, e também dos homens.
Como você avalia a luta das mulheres indígenas em Roraima?
Hoje, ao longo do processo de 54 anos de muita luta, conquista e resistência, da nossa organização, nunca nenhuma mulher coordenou o Conselho Indígena de Roraima. Então, um sonho é ver, quem sabe, uma mulher liderando a nossa organização. Apesar disso, os coordenadores homens sempre trabalharam em conjunto com as mulheres nessas temáticas. Nós trabalhamos muito a autoestima da mulher, levando informações para que elas entendam os direitos que elas têm. Isso é muito importante e precisa chegar nos territórios.
Nós temos grandes mulheres, grandes lideranças aqui, que hoje são tuxauas, são professoras, são agentes de saúde. Elas ocupam vários cargos, né? Temos mulheres no GPVTI [Grupo de Proteção e Vigilância Territorial Indígena], temos mulheres brigadistas. Nesse último ano, fizemos muitos seminários, conversamos com elas. Cada povo tem sua cultura, modos diferentes de viver. Então, a gente chega devagar com essas informações, para elas saberem que temos leis que nos protegem, que podemos nós mesmos fazer nossas leis indígenas, nossos regimentos internos.
Você falou sobre as mulheres estarem em vários espaços, isso mudou muito desde que você era adolescente?
Hoje, é muito magnífico você olhar e observar as mulheres ocupando os espaços. Aqui em Roraima, nós temos, pela primeira vez, uma mulher coordenadora da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas], que é a Marizete [do povo Macuxi]. Quando poderíamos imaginar que uma mulher indígena estaria ocupando o cargo de coordenadora da Funai no nosso estado?
Isso já é um grande avanço. Isso incentiva ainda mais as mulheres a estarem ocupando mais espaços. Vemos que as ações vão se concretizando e que nós podemos ser fortalecidas. A Joenia é uma grande inspiração para nós. É uma mulher muito guerreira. Ela saiu do seu estado [Roraima] para batalhar pelo seu povo, ficou no Congresso ao longo dos quatro anos, no pior mandato de um presidente, e Joenia foi essa força de mulher ali no Congresso Nacional.
Nós temos a Célia [Xakriabá] que também é uma mulher assumindo pelo estado de Minas. Hoje, se criou o MPI [Ministério dos Povos Indígenas], que assumiu a Sonia Guajajara. Nós, mulheres indígenas, estamos trilhando nossos caminhos inspiradas por outras guerreiras.
Kelliane, você também falou sobre os regimentos internos. Sei que vocês têm leis próprias para punir casos de agressões contra mulheres. Pode explicar isso melhor?
Hoje, cada região tem um modo diferente de se organizar. As comunidades fazem seus regimentos internos, enviam para o nosso jurídico fazer uma análise, e vamos criando as nossas leis indígenas para que possamos também defender nossas mulheres.
Aqui, na Raposa Serra do Sol, por exemplo, nós temos um centro de mediação de conflitos. Esse centro é composto por pessoas das comunidades, que são responsáveis por cuidar de cada caso. Às vezes, pode ser que decidam afastar da comunidade alguém que cometeu delito e, se for muito grave, a gente faz uma denúncia formal [na delegacia do estado]. Isso é decidido em conjunto, avaliando cada situação, as pessoas envolvidas, o que conhecemos sobre elas. Para isso, nós temos também as nossas forças sagradas, a nossa sabedoria ancestral para conduzir as situações. Pedimos conselhos às nossas pajés e pedimos muita força para acolher nossas mulheres.
É um processo que vamos aprendendo juntos. Eu tenho 32 anos, não sou casada e não tenho filhos, e falo com mulheres que já têm toda uma bagagem maior que a minha. Então, eu tenho que saber escutar e ir devagar, falando para elas entenderem o que é de direito.
Em geral, pelos relatos que vocês recebem, que agressões as mulheres mais denunciam?
A maioria são as violências físicas dentro do território. São muitos casos que a gente fica sabendo e ainda não consegue tomar atitude, mas vemos que as palestras estão ajudando várias mulheres a serem fortalecidas.
Percebemos que, depois dos seminários, as mulheres que não tinham coragem de denunciar acabam indo, denunciam e procuram a melhor forma de resolver essas problemáticas. Porque algumas ainda acreditam que a cultura indígena é agressiva, e isso não é verdade, essas são ideias racistas que colonizadores fizeram da gente. Então, chegar com esse tema hoje é um grande desafio para as mulheres indígenas.
Também porque a maioria dos líderes são homens, né? Então, você tem que conduzir juntamente com eles, para que também sejam conscientes e participem levando essas informações. Para que eles não tenham aquele olhar de que mulher só é para estar na beira do fogão, de ele chegar na ‘hora do momento’, e querer fazer relação sem ela querer.
Então, até ele entender isso… mas as nossas oficinas têm ajudado bastante. Estamos preparando um grande seminário para fazer um encontro de mulheres para que possamos abordar esses temas com todos, que é importante para tantas mulheres e também para os homens.
Sei que antes de entrar na secretaria de mulheres, você desenvolveu um trabalho importante voltado para a identificação de mudanças climáticas nos territórios da região Raposa Serra do Sol. Como foi?
Eu entrei como gestora territorial, dentro do Departamento de Gestão Territorial e Ambiental. Passei quatro anos ali, acompanhando a elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental e também o estudo de caso de mudanças climáticas da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
O trabalho era procurar saber como nós estamos sofrendo hoje com as mudanças do clima. A gente fez entrevista com cada um dos moradores de algumas regiões, aquelas pessoas com mais experiências de roçados.
Por exemplo, teve sementes que não deram numa época que antes era certa. Antigamente não era pelo calendário que eles analisavam, era pela questão das estrelas, da lua. Não era o mês que definia, era o período da chuva. Era um calendário ecológico, né? Então tudo sobre tudo isso fazemos a coleta de informações, eles desenham os processos históricos de como fazer farinha, usar a mandioca, qual a diferença se a terra estiver muito quente. Então, eu acompanhei tudo isso.
Qual o papel das mulheres na luta contra essa crise?
A gente percebe que existe um distanciamento dessa conversa com a realidade indígena. Para você debater qualquer tipo de tema, qualquer tipo de assunto, você tem que chamar de fato os povos originários para ecoar a sua voz, porque quem sofre mais em relação a tudo isso são os povos indígenas. E as mulheres muito mais. Por que cuidam dos filhos, cuidam da comida. Elas sabem o que está diferente, o que falta. Como falar de um tema sem escutar verdadeiramente os filhos deste país? Como querem discutir internacionalmente, se não querem escutar os nossos povos? Os territórios estão se preparando com documentos, estudos e protocolos. Já estamos dando grandes sementes nessa discussão.
A dona Sinéia, por exemplo, é uma mulher, uma grande liderança, com quem eu estive no Departamento de Gestão Territorial, e hoje representa nossos povos na COP, nos debates sobre clima, fazendo todo esse trabalho. Ela é um grande fruto que está disseminando sementes e isso é muito importante para a nossa organização e principalmente para os territórios indígenas no estado de Roraima.
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“Estamos trilhando nossos caminhos inspiradas por outras guerreiras”. Entrevista com Kelliane Wapichana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU