19 Agosto 2025
Após mais de 22 meses de guerra e 62 mil mortos na Faixa, parece que os números já não importam, mas tanto para a dignidade dos palestinos quanto para a guerra de propaganda de Israel, eles continuam sendo cruciais.
A informação é de Francesca Cicardi, publicada por El Salto, 17-08-2025.
Cerca de 62 mil vítimas fatais. Mais de uma centena de crianças mortas por desnutrição. 156 mil feridos de guerra. Cerca de 220 jornalistas assassinados e aproximadamente 1.600 profissionais de saúde. Mais de 16.600 viúvas e 2.200 órfãos.
Estes são alguns dos números do genocídio de Israel em Gaza. Mas depois de mais de 22 meses de bombardeios, bloqueio quase total, deslocamento forçado, destruição e fome, parece que os dados frios perderam seu impacto. À medida que os números trágicos foram crescendo, até se tornarem multimilionários, a surpresa, o repúdio e o horror que provocavam diminuíram.
Amnesty International accused Israel of deliberately starving Gaza’s population, calling it a grave crime against civilians. Testimonies from displaced families and doctors confirm that children are dying from hunger due to the blockade and restricted aid.
— Quds News Network (@QudsNen) August 18, 2025
The organization urged… pic.twitter.com/x0Q05ozoRX
Do lado de fora, nós, observadores, nos acostumamos a esses dados assustadores que, nos primeiros meses, dominavam manchetes e posts em redes sociais. Ultrapassamos o marco de 50 mil mortos há muito tempo e o de 60 mil recentemente; esses números já não representam um feito.
Chegamos a um ponto em que nos parece normal que uma centena de habitantes de Gaza seja assassinada todos os dias por diferentes motivos. Em poucas semanas, desde o final de maio, aceitamos a ideia de que centenas de pessoas percam a vida enquanto tentam obter a escassa ajuda humanitária que Israel permite distribuir na Faixa — depois de ter provocado uma fome ao cortar todos os suprimentos por quase três meses.
Nós nos habituamos a todas as formas de barbárie e, talvez porque os números são tão avassaladores, não conseguimos ter empatia com as pessoas que estão por trás das cifras, com seu sofrimento e seus sentimentos, seus sonhos e aspirações, suas necessidades mais básicas.
"Precisamos que o mundo não nos veja apenas como números ou manchetes, mas como seres humanos que tentam sobreviver em um lugar onde tudo nos foi tirado", diz Aseel Abdelsalam Salama, uma jovem de 25 anos, do campo de deslocados de Al Mawasi, no sul de Gaza. Ela e sua família vivem em uma barraca depois de terem que abandonar sua casa na cidade de Rafah, a primeira vez em maio de 2024 e a segunda e definitiva, em abril de 2025. A estudante universitária conta ao elDiario.es que lhe faltam as coisas mais básicas: "Água limpa, comida e remédios." E "dignidade".
Podemos devolver ao menos a dignidade aos habitantes de Gaza como Aseel e sua família se lhes dermos um rosto e uma alma, se deixarem de ser números anônimos. O pai de Aseel, de 53 anos, tem hipertensão e precisa de uma cirurgia no coração: ele é um dos mais de 10 mil pacientes que a Organização Mundial da Saúde estima que devem sair de Gaza para receber tratamento médico e que, se não o fizerem, suas vidas correm perigo. Por trás desse número, há medo e preocupação, como os que Aseel sente porque na Faixa quase não há medicamentos nem assistência médica. "Gostaria de fazer um milagre para que meu pai pudesse viajar", diz, desanimada.
🇵🇸🇮🇱 Menina palestiniana que transportava água para a família, executada por um míssil de precisão de Israel. Não eceitemos mais nenhuma lição de moral de quem nestes dois anos não condenou o que se está passando em Gaza. pic.twitter.com/zMX6g4tk5f
— geopol•pt (@GeopolPt) August 17, 2025
Nos números que nos chegam da Faixa, há muitas histórias como a de Aseel que, em meio à tragédia, ainda está viva, uma vida que foi interrompida pela brutal ofensiva de punição que Israel lançou contra a população de Gaza após os ataques de 7 de outubro de 2023. A jovem iria concluir seus estudos de Literatura Inglesa em 2024, mas sua formatura foi adiada sine die, assim como o futuro de centenas de milhares de jovens de Gaza (cerca de metade da população da Faixa é menor de 18 anos).
Quase dois anos se passaram desde o início da guerra e jamais pensamos que duraria tanto e seria tão devastadora, mas quanto mais longa e horrível, menos noticiosa. Em muitas ocasiões desde outubro de 2023, a atenção do mundo se desviou de Gaza e só volta a se concentrar no que acontece na Faixa quando as imagens do sofrimento são macabras demais para serem ignoradas.
A passagem do tempo não joga a favor dos palestinos e de sua sobrevivência; os meses também são números vazios que se somam e causam cansaço, tédio, indiferença, frustração e desinteresse. Mas desumanizar as vítimas e transformá-las em cifras sem alma é precisamente o que Israel quer, que, além disso, faz todo o possível para que as imagens e as vozes dos palestinos que está aniquilando pouco a pouco, sem pausa, não cheguem até nós. Por esse motivo, entre as cifras mais brutais deste conflito está a de jornalistas assassinados, parte deles em ataques seletivos enquanto estavam cobrindo as notícias ou em suas casas com suas famílias.
Esta semana, um bombardeio do exército israelense matou seis jornalistas, cinco deles funcionários da emissora de televisão catariana Al Jazeera. Todos tinham menos de 35 anos. Não são simples cifras, mas contam a tragédia de uma geração de jovens jornalistas palestinos que estão sendo massacrados por relatarem o extermínio de seu povo ao vivo. Em muitos casos, não são jornalistas profissionais, mas têm um celular ou uma câmera e a coragem de contar nas redes sociais o que está acontecendo, quando dispõem de conexão à internet (Israel também interrompe as telecomunicações em alguns momentos).
Nenhum deles escolheu este destino cruel, mas todos assumiram a missão de informar como inevitável, já que Israel não permitiu, nos últimos dois anos, o acesso da imprensa internacional a Gaza e eles se tornaram indispensáveis para que o resto do mundo saiba o que ocorre na Faixa. Simplesmente para honrar seu trabalho, não podemos ignorar ou esvaziar de sentido a informação que nos transmitem, a qual é tão valiosa que Israel os mata por ela. Tão valiosa é a tarefa dos funcionários que ainda trabalham no enclave palestino para registrar os danos humanos e materiais, para documentar cada morte e cada um dos crimes israelenses.
Em Gaza, também se trava uma guerra de propaganda e, no âmbito dessa luta para convencer a opinião pública mundial, os números são importantes. Se nos primeiros meses serviam para chocar consciências, agora não podem deixar de fazê-lo simplesmente porque já não são tão novos, tão impactantes, porque nos tornamos insensíveis. As cifras continuam sendo escandalosas, se pararmos para olhá-las e imaginarmos o que significam, o que contam e o que sugerem.
Com as imagens, é mais fácil ter empatia, e foram precisamente as das crianças emaciadas que fizeram o mundo acordar novamente há algumas semanas, quando começaram a chegar fotografias dos pequenos desnutridos, esqueléticos, doentios. Ainda assim, o que nos dá uma ideia da dimensão da fome são os números: 112 crianças morreram por desnutrição, desde que as autoridades de saúde da Faixa começaram, em meados de julho, a contabilizar essas mortes separadamente das mortes violentas. Um total de 263 pessoas pereceram de fome, segundo dados do Ministério da Saúde.
Israeli soldiers, when you take off your uniform, think of this:
— Francesca Albanese, UN Special Rapporteur oPt (@FranceskAlbs) August 16, 2025
Many of you are just snipers firing at civilians, often kids, running for their lives, after your army has made them homeless, hungry, orphans.
You are stepping into the abyss. It is never too late to stop this. https://t.co/PszVY9AY6h
Para entender a importância das cifras, basta dizer que Israel rejeitou desde o primeiro momento as estatísticas de mortos e feridos do Ministério da Saúde palestino — que são consideradas confiáveis pela ONU, organizações independentes e cientistas que validaram a metodologia utilizada pelo Ministério para coletar os dados.
O Ministério da Saúde publica periodicamente as listas de todas as vítimas, com seus nomes completos, sexo, idade e número de identidade. Nessas listas detalhadas (atualizadas pela última vez em 31 de julho), aparecem 973 bebês com menos de um ano que morreram desde outubro de 2023. Nas primeiras 200 páginas, estão todos os dados pessoais das 9.560 crianças menores de 10 anos que foram assassinadas. Não são apenas números, são pequenos seres humanos.
Israel tenta tirar a alma desses números para que sejam meros "danos colaterais" de sua guerra em Gaza, na qual cerca de metade das vítimas fatais são menores de idade e mulheres, o que leva a deduzir que não eram combatentes do grupo islâmico Hamas.
Desde que as agências das Nações Unidas e outras organizações deram o alarme sobre a fome generalizada em Gaza, Israel também se esforçou para refutar as evidências, tanto os relatórios dos especialistas quanto as imagens. E também os dados dos mortos por desnutrição.
A entidade israelense que coordena a chegada da ajuda humanitária a Gaza (COGAT) disse que os números de mortos por desnutrição são manipulados pelo Hamas, que governava a Faixa de Gaza e que continua exercendo certo controle sobre o que resta das instituições no enclave. "Uma revisão exaustiva realizada pela defesa expõe como o Hamas está deturpando as mortes por condições médicas preexistentes como se fossem desnutrição para avançar sua agenda política", afirmou esta semana.
Os médicos de organizações humanitárias internacionais que trabalham na Faixa consideram que os números de mortes por desnutrição — e também de mortes violentas — são provavelmente muito inferiores aos números reais, que talvez nunca venhamos a conhecer por sua magnitude e pela impossibilidade de documentar de forma sistemática cada óbito e suas circunstâncias em meio a um conflito dessas dimensões.
Tanto para a impunidade de Israel quanto para a dignidade dos palestinos, as cifras realmente importam.