08 Agosto 2025
"O fim da continuidade do genocídio em Gaza exige mais do que apelos indignados: requer medidas concretas e imediatas."
O artigo é de Paulo Sérgio Pinheiro, publicado por A Terra é Redonda, 07-08-2025.
Paulo Sérgio Pinheiro é professor aposentado de ciência política na USP; ex-ministro dos Direitos Humanos; relator especial da ONU para a Síria e membro da Comissão Arns. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras)
Não há ‘crise humanitária’ em Gaza, há genocídio industrializado. E cada país que mantém laços com Israel é cúmplice dessa máquina de morte
A presença do historiador Ilan Pappé no Brasil é motivo de honra. Sua trajetória intelectual e sua corajosa denúncia da opressão ao povo palestino servem de referência para todos que, como nós, defendem os direitos humanos e denunciam, com clareza, o genocídio em curso na Faixa de Gaza.
Não há mais espaço para eufemismos. O governo supremacista e racista de Israel conduz, diante dos olhos do mundo, uma política de extermínio e limpeza étnica. Trata-se de uma ofensiva sustentada não apenas pelo aparato militar israelense, mas também pelo apoio expresso da maioria da população daquele país.
Desde outubro de 2023, lideranças políticas e militares israelenses deram início a uma escalada de desumanização dos palestinos e incitação explícita ao genocídio. As declarações oficiais, somadas aos atos concretos de destruição em massa, resultam em uma constatação incontornável: Israel comete um crime de genocídio contra o povo palestino – um crime que persiste até hoje, graças à omissão (ou conivência) de grande parte da comunidade internacional.
O massacre de civis em Gaza vai muito além dos bombardeios aéreos. Soldados israelenses, em ações no solo, cometeram atrocidades, muitas vezes documentadas e, hoje, até celebradas em redes sociais. Sob o pretexto de uma guerra contra o Hamas, Israel promoveu a destruição sistemática da estrutura social, política e cultural da região.
Segundo dados recentes, cerca de 92% dos edifícios residenciais de Gaza e 69% de todas as suas estruturas foram destruídos ou severamente danificados. Hospitais, escolas, redes de saneamento, fontes de água potável e todo o sistema de saúde foram desmantelados. A fome é usada como arma de guerra: dois milhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar grave.
A situação descrita pelo diretor da UNRWA, Philippe Lazzarini, é de puro horror: “As pessoas em Gaza não estão nem mortas nem vivas. São cadáveres ambulantes”.
Hoje, 87,7% da Faixa de Gaza está sob controle das Forças de Defesa de Israel (IDF). Cerca de 2,1 milhões de pessoas estão encurraladas em áreas devastadas, sem acesso a alimento, água, medicamentos ou qualquer perspectiva de vida. Esse isolamento não é efeito colateral – é um plano estratégico deliberado de aniquilação de um povo.
Não estamos diante de uma crise humanitária. Estamos diante de um projeto político de destruição. Não há erro. Não há acidente. Há método. Há intenção.
Diante desses crimes hediondos, a pergunta que se impõe é: o que exige o direito internacional?
A Convenção da ONU para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (1948) obriga os Estados a prevenir o genocídio e a não serem cúmplices. Manter relações diplomáticas, comerciais, militares ou tecnológicas com Israel – especialmente após a abertura da investigação formal por genocídio na Corte Internacional de Justiça, em Haia – representa uma afronta direta a essa convenção.
Países que têm poder para agir, mas optam pela omissão, estão manchados por essa cumplicidade. Não há mais desculpas. Quem mantém acordos, financia o genocídio, como bem apontou Francesca Albanese, relatora especial da ONU para os territórios palestinos ocupados. Quem não rompe, compactua.
Se realmente quisermos deter o massacre em Gaza, é urgente que os Estados-membros da ONU rompam imediatamente todas as relações com o Estado de Israel. Isso inclui embargo total de armas, suspensão de acordos comerciais, tecnológicos e de investimentos. Essa é, infelizmente, a única linguagem que o regime israelense entende.
O governo brasileiro, sob a liderança do presidente Lula, tem adotado posições importantes: denunciou o genocídio, aderiu à investigação da Corte Internacional de Justiça, suspendeu exportações de materiais militares e se retirou da chamada International Holocaust Remembrance Alliance (IHRA), entidade que manipula a definição de antissemitismo para silenciar críticas ao Estado de Israel – uma agenda hoje promovida, no Brasil, por setores de extrema direita e endossada por instituições como a PUC-SP.
Mas o momento histórico exige mais. É hora de o Brasil romper todas as relações diplomáticas e comerciais com Israel.
Não apenas por coerência com os princípios de nossa política externa, mas por um imperativo moral e jurídico. O genocídio não pode ser relativizado. Não pode ser ignorado. Não pode ser normalizado.
No último mês, a escalada da violência em Gaza atingiu um patamar sem precedentes. O número de palestinos mortos em operações militares israelenses chega a 60 mil, milhares de crianças, com número alarmante de vítimas feridas pelos bombardeios. Hospitais, escolas, abrigos da ONU foram completamente destruídos. Desde março de 2025 há bloqueio a ajuda humanitária, sendo envios intermitentes e muito abaixo das necessidades.
A fome tem sido usada como arma de guerra, legitimada entre a população israelense. Cerca de 80% das estruturas hidráulicas foram destruídas e a população é torturada pela sede em pleno verão. O número de crianças com menos de cinco anos em estado de desnutrição aguda triplicou. Gaza, hoje, tem o maior número de crianças amputadas per capita no mundo.
A imagem mostra uma mulher sentada, vestindo uma roupa longa e escura, segurando uma criança magra em seu colo. A criança tem a pele visivelmente magra e está voltada para a mulher, que parece estar olhando para ele com uma expressão de preocupação. O ambiente ao fundo é simples, com paredes de cor clara e alguns objetos ao fundo que sugerem uma situação de vulnerabilidade.
O governo supremacista de Israel, com o apoio ou a indiferença da maior parte da população – que não vê as imagens dos horrores em Gaza, censuradas pela mídia – avança seu projeto de tornar a Faixa de Gaza inabitável por meio de sua destruição total e de promover uma limpeza étnica contra os palestinos. Sem nenhum constrangimento, o ministro da Defesa anunciou que pretende concentrar, inicialmente, 600 mil palestinos no Sul, na destruída cidade de Rafah, em uma “cidade humanitária” – campo de concentração, como afirmou o ex-primeiro-ministro Ehud Olmert –, que seria a primeira etapa para a transferência dos palestinos a outros países.
Entre janeiro e março de 2024, a Corte Internacional de Justiça emitiu medidas cautelares contra Israel, reconhecendo o risco plausível de que estejam sendo cometidos atos de genocídio contra a população palestina. O que antes era plausível, hoje é, segundo um número crescente de especialistas em estudos sobre genocídio e direito internacional – inclusive israelenses –, uma conclusão inescapável: as ações de Israel em Gaza configuram um genocídio contra o povo palestino.
Na mesma direção apontam os relatórios de Francesca Albanese, relatora especial da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados, que, já em março de 2024, afirmava que Israel conduz uma campanha genocida (razão pela qual se tornou alvo de sanções dos EUA). O que ocorre em Gaza, lembra Albanese, não é um conflito entre iguais, mas uma campanha de extermínio contra uma população sitiada, colonizada e impedida de viver com dignidade.
Trata-se de uma situação de longa duração, sistemática e estrutural – e não de um conflito episódico ou de uma autodefesa circunstancial, ficando claro que apelos indignados às práticas genocidas de Israel em Gaza estão condenados ao fracasso. O próprio secretário-geral da ONU, António Guterres, criticou recentemente a comunidade internacional por ignorar o sofrimento dos palestinos famintos na Faixa de Gaza, classificando a situação como “uma crise moral que desafia a consciência global”.
A Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio impõe obrigações a todos os Estados signatários. Entre elas, o dever de prevenir o genocídio e de não ser cúmplice. Manter relações diplomáticas, comerciais, tecnológicas e militares com um Estado sob investigação por genocídio é, no mínimo, uma flagrante violação da devida diligência que os Estados-membros da ONU têm perante o direito internacional.
Aos Estados, especialmente os aliados de Israel que jamais interromperam sua ajuda militar, mas que agora pedem que cesse a “catástrofe humanitária” em Gaza e que Israel suspenda o bloqueio à ajuda humanitária, deles exigem-se ações muito além de palavras indignadas. Se quiserem pôr fim imediato à carnificina em Gaza, os meios existem e são amplamente conhecidos pela comunidade internacional.
Soa a hora de sanções – políticas, diplomáticas, econômicas e culturais. Os países verdadeiramente indignados com Israel devem ser consequentes: romper relações com um Estado que promove um genocídio, impor um embargo total de armas e suspender acordos de comércio e investimentos.
O fim da continuidade do genocídio em Gaza exige mais do que apelos indignados: requer medidas concretas e imediatas.