Ele morreu aos 88 anos. Ele se projetou como um estadista e líder mundial. Ele nunca perdeu sua simplicidade, pregando em favor dos pobres e descartados, promovendo o diálogo e criticando o modelo econômico predatório e excludente. As mudanças que ele fez na Igreja e o que ele deixou pendente.
O artigo é de Washington Uranga, jornalista, professor e pesquisador de comunicação, publicado por Página12, 22-04-2025.
Francisco, o papa latino-americano que "os cardeais foram buscar no fim do mundo", como ele mesmo afirmou, entra na história da Igreja Católica e da humanidade como aquela pessoa que, exercendo uma liderança firme, dentro e fora das fronteiras institucionais, soube compreender os desafios da sociedade, a partir de seu lugar, ensaiou as respostas ao seu alcance e, acima de tudo, ele tinha a capacidade de atrair moradores e estranhos com sua mensagem profundamente humana.
Dessa forma, Jorge Bergoglio conseguiu deixar sua marca na vida de muitas pessoas, inclusive grande parte daqueles que não o reconheciam como seu líder espiritual ou religioso. No palco de um mundo contemporâneo marcado por conflitos e guerras e, ao mesmo tempo, carente de vozes e referências que iluminem os caminhos da fraternidade entre as pessoas e os povos, Francisco marcou a sua presença.
Como componente essencial de sua missão, o Papa pregou e colocou em prática o que ele mesmo chamou de "cultura do encontro". Porque, como ele escreveu em sua autobiografia recentemente publicada sob o título "Esperanza", "somente aqueles que constroem pontes saberão como seguir em frente; aquele que constrói muros acabará preso pelos muros que ele mesmo construiu. Em primeiro lugar, seu coração ficará preso."
Projetou-se como estadista e líder mundial, sem perder a simplicidade característica da história pessoal deste porteño ("dentro da minha alma me considero um homem de marfim"), o mais velho de cinco irmãos, todos nascidos no bairro de Floresta, em Buenos Aires, e que mesmo no Vaticano continuava a se reconhecer como um "corvo" por seu carinho por San Lorenzo. No entanto, quando foi anunciado que em seu retorno à Avenida La Plata o novo estádio poderia ser chamado de "Papa Francisco", ele disse claramente que "a ideia não me entusiasma".
A eleição como papa mudou a vida de Jorge Bergoglio. Mas uma vez que ele se tornou Francisco, ele fez todo o possível para manter os traços de humanidade e do homem comum que o fizeram continuar a viajar de metrô para seu escritório na cúria de Buenos Aires e, já um cardeal. "Gosto de andar pela cidade, aprendo na rua", disse ele. Sua nova condição o obrigou a muitas restrições, mas em vez de morar em um palácio do Vaticano, ele escolheu morar na residência Santa Marta, uma espécie de hotel religioso que recebe bispos e padres que viajam a Roma por motivos eclesiásticos. Lá ele até comoveu muitos de seus públicos, especialmente quando se encontrou com as pessoas mais próximas a ele por motivos pessoais ou pastorais. Santa Marta era sua casa. Lá ele foi pego nos sapatos "gomicuer" que pediu a seus amigos que o trouxessem de Buenos Aires depois de descartar os sapatos vermelhos usados por seu antecessor Bento XVI. Também de lá, ou de qualquer lugar do mundo que ele estivesse visitando, todos os domingos à noite Francisco fazia um telefonema para Buenos Aires para sua irmã María Elena, a única sobrevivente de sua família. Ela disse que não ver sua irmã é um dos destacamentos mais difíceis.
Ele se reconheceu como um amante da música e do tango. "A melancolia tem sido uma companheira na vida, embora não constantemente (...) faz parte da minha alma e é um sentimento que me acompanhou e que aprendi a reconhecer".
Desde 1990, como resultado de uma promessa religiosa, ele não voltou a assistir televisão e foi mantido informado por outros meios de comunicação.
A eleição de Bergoglio como Papa Francisco, que mudou a vida da Igreja Católica, também mudou profundamente a forma como o catolicismo se relaciona com a sociedade, no mundo e em cada país e região.
Nem mesmo os mais próximos a ele, aqueles que conheciam seus pensamentos e que acompanharam sua carreira, teriam sido capazes de imaginar em 13 de março de 2013 o "plano de governo" que Jorge Bergoglio tinha em mente quando foi ungido como a mais alta autoridade da Igreja Católica. Talvez essa possibilidade não tenha passado por sua cabeça, apesar da experiência acumulada em seus anos como superior provincial dos jesuítas na Argentina (1973-1979), em meio à ditadura militar, ou em seu trabalho como bispo auxiliar (1992-1998) e depois como arcebispo de Buenos Aires (1998-2013).
Não são poucos os que sustentam que a vida de Bergoglio deu uma guinada fundamental devido à sua participação na Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano (Aparecida, Brasil, 2007), na qual o então arcebispo de Buenos Aires recebeu um banho de "latino-americanidade" em seu contato com seus colegas bispos da região e, em particular, com os do Brasil. Foi isso que o levou a escrever em suas memórias que "minhas raízes também são italianas, mas sou argentino e latino-americano. No grande corpo da Igreja universal, onde todos os carismas 'são uma maravilhosa riqueza de graça', aquela Igreja continental tem características especiais de vivacidade, notas, cores, nuances que também constituem uma riqueza e que os documentos das grandes assembleias dos episcopados latino-americanos manifestaram".
Até então, o "porteño" Bergoglio, como boa parte dos argentinos, havia permanecido distante da América Latina. Também em termos eclesiásticos por causa de sua proximidade com a "teologia da cultura" que aprendeu com seu professor Juan Carlos Scanonne e mais distante de teólogos da libertação como o peruano Gustavo Gutiérrez ou o brasileiro Leonardo Boff. Ele conheceu os dois e se abraçou mais tarde, quando estava no Vaticano. Bergoglio tornou-se latino-americano em Aparecida. E com essa bagagem chegou ao consistório que o elegeu Papa.
Poucos dias antes de sua morte, a teóloga argentina Emilce Cuda, que o papa trouxe a Roma como uma de suas colaboradoras mais próximas, foi enfática ao apontar que a teologia de Francisco tem sido "teologia" por direito próprio, resgatando as raízes do pensamento cristão ao longo da história para colocá-lo em diálogo com os desafios atuais da Igreja e do mundo.
O tempo e, sobretudo, os gestos de Francisco deixaram clara a proposta e os traços que o primeiro papa latino-americano queria estabelecer como marca em sua administração. Foi assim que sua primeira viagem político-pastoral o levou a Lampedusa, para encontrar imigrantes ilegais expulsos de seu território que fugiam desesperadamente em busca da vida. A eles e ao mundo, reafirmou com um gesto de proximidade e solidariedade a sua pregação em favor dos pobres, dos descartados e dos seus direitos.
A partir daí, sem abandonar sua marca religiosa, o Papa começou a construir seu status de referência mundial além das fronteiras da Igreja Católica, tornando-se um interlocutor de chefes de Estado, líderes sociais, políticos e culturais. Em um mundo com liderança em crise e enfrentando os desafios da realidade, Francisco escolheu o caminho do diálogo e do encontro com aqueles que são diferentes, partindo da realidade dos pobres e reivindicando seus direitos.
Suas ideias foram refletidas em muitos de seus documentos e discursos públicos, mas especialmente nas encíclicas Laudato Si (2015), sobre "a casa comum", as mudanças climáticas e o cuidado dos recursos naturais, e Fratelli Tutti (2020) sobre amizade e fraternidade social.
Em sua jornada, Francisco se tornou um porta-voz dos descartados e dos pobres, mas também um aliado daqueles que saíram em defesa dos direitos dessas pessoas e comunidades. Pode-se dizer que o discurso proferido em 9 de julho de 2015 pelo Papa à audiência plural dos movimentos sociais reunidos em Cochabamba (Bolívia), cujo eixo foi a proclamação dos "três T's" (terra, abrigo, trabalho), constitui uma espécie de síntese doutrinal que, em outro tom e com diferentes desdobramentos, Francisco expressou de forma sistemática e com base teológica na Laudato Si. Uma grande soma que, contra a corrente das forças do capitalismo mundial, se levantou em favor dos pobres e suas organizações, criticou as potências hegemônicas e lançou um apelo à paz. Uma militância pacifista que Bergoglio apoiou com suas ações e as do Vaticano em todos os lugares de conflito em todos os cantos da terra. Nessa tarefa, os movimentos sociais foram escolhidos permanentemente como aliados e interlocutores, convocados e sentados à mesa de conversações com o Papa.
Por meio de suas ações, Francisco também consolidou sua ideia de que as grandes religiões monoteístas do mundo e seus líderes têm a responsabilidade de encontrar soluções para a guerra mundial traduzida em uma infinidade de conflitos limitados ou guerras regionais sobre disputas territoriais, questões de soberania, confrontos políticos, étnicos ou raciais. "Não existe guerra inteligente; a guerra só sabe causar miséria; armas, apenas a morte", disse ele.
Em outubro de 2022, ele organizou uma grande reunião de líderes religiosos mundiais pela paz em Roma. Mas antes e depois de se encontrar no Iraque, com o Grande Aiatolá Sayyid Ali Al-Husayni Al-Sistani, líder da comunidade xiita do país, em Ulaanbaatar com onze líderes de diferentes religiões e, mais recentemente, na Indonésia com o Imã Nasaruddin Umar visitou o "Túnel da Amizade" que liga a mesquita Istiqlal à Catedral de Nossa Senhora da Assunção.
Dentro da própria Igreja Católica, o Papa Francisco promoveu muitas linhas que se conectam diretamente com iniciativas inauguradas no Concílio Vaticano II (1962-1965), promovidas pelo Papa João XXIII (1958-1963) e continuadas por Paulo VI (1963-1978), mas que tiveram freios e retrocessos com João Paulo II (1978-2005) e Bento XVI (2005-2013).
Desta forma, Bergoglio insistiu na ideia de "uma igreja de portas abertas" com capacidade de acolher a todos, sem restrições, em diálogo com a sociedade e enfrentando problemas comuns. Isso também implicou profundas reformas nas estruturas eclesiásticas, com mais espaço para os leigos e em particular para as mulheres, mas também a partir de uma perspectiva eclesiológica que buscava desempenhar um papel de liderança no "sacerdócio comum dos fiéis" mesmo antes do sacerdócio ministerial.
Com essa intenção, Francisco fomentou, por meio dos sínodos (universais e regionais), uma Igreja mais participativa que colocou em crise o modelo estritamente hierárquico, piramidal e romanocêntrico. Isso também trouxe consigo a decisão de enfrentar os problemas de abuso, pederastia e corrupção dentro da estrutura eclesiástica.
Colégio dos Cardeais que foram em busca de um papa latino-americano e escolheram um argentino porque ele era o "mais parecido" com os europeus ficaram frustrados em suas expectativas.
Em mais de uma ocasião, os setores mais conservadores rasgaram suas vestes diante do que consideraram concessões excessivas de Bergoglio, tanto em suas mensagens quanto em seu estilo pastoral. Francisco não estava muito preocupado com isso. Ele continuou a tomar decisões com consciência dos problemas que enfrentava e até usou a energia e o apoio que vinham de fora para travar batalhas dentro da própria Igreja.
Ele sempre pareceu convencido da tarefa que tinha que enfrentar: avançar e aprofundar a reforma da Igreja em direção a uma forma mais sinodal, mais horizontal e plural de governo e participação que renovasse a vida do catolicismo.
Embora tenham sido dados passos substanciais nessa direção, talvez essa seja a tarefa inacabada que Francisco deixa e que será deixada nas mãos de quem o suceder no pontificado. Uma nomeação que dependerá de uma eleição incerta e sem candidatos à vista, mesmo levando em conta a profunda renovação que Bergoglio fez no Colégio dos Cardeais que escolherá o novo papa.