08 Março 2025
"Não nego a inquietação que sinto com a hipótese de um possível retorno à “psiquiatria repressiva”, que sempre foi uma ferramenta usada por regimes de todos os matizes para se livrar dos “pesos mortos da sociedade” ou dos dissidentes", escreve Gianluca Nicoletti, jornalista e escritor italiano, em artigo publicado por La Stampa, 28-02-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Para o presidente Milei, eu deveria começar a chamar meu filho autista de “imbecil”. Pelo menos se viajássemos juntos para a Argentina, qualquer pessoa teria o direito legal de chamá-lo de imbecil.
Gostaria que qualquer um que tenha proximidade com deficiência mental refletisse sobre isso, para além de qualquer convicção política ou afiliação ideológica. Acho que essa é realmente a antecâmara da barbárie, não apenas porque me afeta pessoalmente, mas, acima de tudo, porque estou profundamente convencido de que a desconstrução sistemática de toda forma de “civilidade lexical” não é uma batalha contra a hipocrisia, mas sim o pretexto para iniciar a supressão de direitos conquistados com muito esforço ao longo de anos de lutas. Esse é o objetivo real que querem alcançar os heróis sem mancha, engajados na gloriosa demolição do pensamento woke.
Esse cavalheiro com serra elétrica e costeletas, por quem nossos mais altos cargos governamentais se desmancham, decidiu dar um golpe definitivo contra este “câncer a ser erradicado da sociedade”, que seria então a simples forma de falar como pessoas que respeitam a dor alheia e não como toscos. Assim, desde 14 de janeiro, por decreto, uma nova escala de definições para classificar os portadores de deficiência intelectual foi publicada no Diário Oficial, como parte de uma revisão dos regulamentos sobre a atribuição de pensões por invalidez. O órgão em questão é a Agencia National de Discapacidad (ANDISS), que é um departamento que lida com deficiência, subordinado ao Ministério da Saúde. Os critérios usados até então estavam de acordo com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela ONU em 2008, que tinha valor constitucional na Argentina. No entanto, para o governo de direita, aquele regulamento talvez tenha sido considerado demasiado “politicamente correto” e, portanto, afeito a ser reformado rapidamente e de acordo com o novo curso ideológico.
Na Argentina, portanto, foi exumada a definição de “retardados mentais”, subdividida da seguinte forma: o status de “idiota” corresponde àqueles que não são autônomos em suas funções fisiológicas. Depois vem o “imbecil”, que só consegue atender suas necessidades básicas e realizar tarefas rudimentares. Por fim, há o “débil mental”, que pode ser profundo, moderado e leve. Mas não basta. Em minha opinião, a parte mais perigosa é o anexo do decreto, que diz: “Em alguns casos, o diagnóstico pode não exigir a participação de um especialista, uma vez que os parâmetros clínicos serão soberanos, ou seja, evidentes para todos”. Isso quer dizer que, se estendermos o princípio, que não precisaremos mais de um critério de diagnóstico baseado em evidências científicas para estabelecer uma deficiência mental, qualquer um poderia teoricamente ser definido como “retardado” se uma autoridade decidir que é evidente que o seja.
Não nego a inquietação que sinto com a hipótese de um possível retorno à “psiquiatria repressiva”, que sempre foi uma ferramenta usada por regimes de todos os matizes para se livrar dos “pesos mortos da sociedade” ou dos dissidentes. Pensem nisso aqueles que, a essa notícia levantarem a taça para brindar ao “novo que está avançando”. Hoje, o imbecil, o idiota ou o retardado a ser discriminado pode ser meu garoto, eu mesmo ou quem quer que, nessa questão, pense como eu. Depois dos diferentes, dos sexualmente heterodoxos e também dos cérebros rebeldes, como categorias de “parasitas” a serem penalizadas em seu direito de serem, pelo menos, definidos com dignidade, poderiam vir também aqueles que, por enquanto, se sentem seguros à sombra do comboio dos vencedores.