19 Dezembro 2024
A maior bandeira de Milei na campanha eleitoral de 2023 foi varrer do Estado argentino o que ele chama de “casta”, incrustada no poder segundo ele; nada mais nocivo à sociedade, pelo que não raras vezes exalta-se nos já acalorados discursos, levando ao delírio massas de indivíduos longe de apresentar grandes engenharias intelectuais, estando Elon Musk e Donald Trump entre os mais ilustres representantes da mediocridade.
O artigo é de Edu Montesanti, jornalista, professor, tradutor e escritor, enviado ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Em solenidade para entrega de medalhas no Colégio Militar de Buenos Aires no último dia 17, o presidente argentino Javier Milei voltou a falar como o ex-presidente Carlos Menem (1989-1999) de péssima memória, esforçando-se para esconder crimes de Estado além de contradizer completamente sua própria marca retórica, desde a campanha presidencial no ano passado.
Embora a Argentina seja, nas palavras de ninguém menos que Noam Chomsky, “modelo regional” na condenação de ex-ditadores militares, ainda faltam ser encontrados e devidamente punidos muitos criminosos de Estado, tanto quanto netos raptados, por estes mesmos criminosos, de seus pais “desaparecidos” e assassinados pelas ideias progressistas que possuíam.
Trata-se aqui de mais uma tentativa de se evadir a justiça – sempre quando certos setores estão envolvidos -, com aspecto pacífico. Contudo, não se requer graduação em leis nem grande conhecimento na área de direitos humanos, para se ter ciência de que sem justiça não pode haver paz. Para isso mesmo, a justiça foi desenvolvida e diante dela, não deve existir exceções – o que ocorre em ditaduras. Ou quais vidas valem mais?
O célebre jurista argentino Nicolás Avellaneda (1837-1885) foi sábio ao observar que “o povo que esquece seu passado está condenado a vivê-lo novamente”. O Brasil é patético exemplo disso.
Pois onde está, aqui e sempre em casos como este dentro e fora da Argentina, o declarado, profundo amor dos ideólogos de direita pela família e pela vida, e a bem (mal e porcamente) conhecida “fúria” por promoção de justiça contra criminosos? Quais vidas valem mais? Era tudo mais um grande engodo, então? Neste caso, por que e defendendo os interesses de quem?
Ou o que mais é necessário esperar acontecer, até quando manteremos certas “papas” na língua ao abordar esse tipo de ideologia que traz em suas raízes ódio, discriminação e violência? Aos que ainda tinham alguma dúvida, Milei trata de evidenciar isso (de novo).
Precários sinos de direita que novamente se fazem bem claros, golpeando agressivamente a Argentina nestes dias. Reabrindo feridas, intensificando o choro de vítimas e familiares de vítimas de terror de Estado dos mais cruéis que a história humana teve conhecimento.
Milei reforça neste caso marca de seu estridente governo para certos discursos, e dos ideólogos de direita em todos os cantos do planeta: ressentimento e deleite sobre os manjares do Estado.
A histeria de direita é incapaz de perdoar seus “inimigos” por meras diferenças no campo das ideias. Na Argentina, que viveu a ditadura militares mais sanguinária da América Latina, região mais violenta do mundo, esses “inimigos”, na maioria jovens universitários, professores, jornalistas e escritores, foram torturados e mortos das maneiras mais cruéis.
Muitos deles, sedados com pés e mãos amarrados com arame, acabaram jogados vivos e seminus pelos militares do alto dos aviões ao mar ou ao Rio da Prata a fim de se tentar ser mais eficiente nos crimes de lesa-humanidade, ocultando assim a barbárie mais covarde.
Filhos destas vítimas que tiveram mais sorte, foram sumariamente sequestradas e, ainda bebês, levadas aos familiares dos ditadores militares. Falsamente apresentados como se fossem seus. Assemelha-se a algo como um romance macabro tudo isto, não?
Tudo aquilo, enquanto lá embaixo o massacre passeava livre e soberano sob ordens dos milicos, do alto-empresariado e das cúpulas "religiosas". Bem dissimulado por toda a Argentina interrompendo sonhos, levando famílias inteiras ao indizível desespero e destruição, material e psicológica.
Mas fizeram com que a verdade viesse à tona o implacável tempo – e as ondas do mar trazendo corpos de volta. Expondo o caráter “pró-liberdade” e “família”, enfim, todo o propalado senso de justiça da ditadura militar.
Sempre que os mares da história agem neste sentido, a covardia da casta dominante e dominadora não se constrange em usar e abusar do cinismo para, então, falar em “reconciliação”. Tudo o que passam a desejar, então, é "paz". Sob entusiásticos aplausos de seus seguidores que condenam nos outros, o que aprovam para si.
O que está por detrás deste tipo de "pacificação" sem justiça é, invariavelmente, a intensificação ou o retorno da dominação. Temer e Bolsonaro no Brasil são dois exemplos mais recentes disso; Menem na própria Argentina, foi outro.
A maior bandeira de Milei na campanha eleitoral de 2023 foi varrer do Estado argentino o que ele chama de “casta”, incrustada no poder segundo ele; nada mais nocivo à sociedade, pelo que não raras vezes exalta-se nos já acalorados discursos, levando ao delírio massas de indivíduos longe de apresentar grandes engenharias intelectuais, estando Elon Musk e Donald Trump entre os mais ilustres representantes da mediocridade.
Pois como a tragicomédia não tem limites para alguns, exatamente a manutenção desta casta tem sido regra no governo de Milei. Precisamente isto, motivo de certas divisões nos altos escalões de sua administração "libertária".
Repetindo no Colégio Militar contradições descaradamente insistentes ao longo do ano que completa na Casa Rosada, Milei reforça o já grande poder da casta argentina além de evidenciar, uma vez mais, a verdadeira, inequívoca essência dos setores reacionários mundo afora, reverberando-os perfeitamente em solo argentino nestes sombrios dias: garantia de liberdade irrestrita, sim, para os seus. Aos “inimigos”, todo o rigor da lei.
Não sem razão esta casta de ideólogos fanáticos e oportunistas, marcados pelo monólogo mais "animado", depende raivosamente da ausência de pensamento e questionamento.
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‘Reconciliação’ entre Forças Armadas e sociedade argentina: a casta de fanáticos de Milei. Artigo de Edu Montesanti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU