17 Março 2025
"As possibilidades de revolucionar o capitalismo a 'partir de fora', quer dizer, a partir de 'homens conscientes', de consciência de classe, de organização da classe trabalhadora ou mesmo dos desempregados e as massas de indivíduos excluídos e marginalizados, não é suficiente para a superação do modo de produção capitalista mesmo diante de suas grandes contradições e resultados destrutivos que promovem ciclicamente crises", escreve José Manuel de Sacadura Rocha, doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e professor do NEJ – Núcleo de Ética.
No cenário de lutas existe contemporaneamente um conjunto de visões críticas que envolvem diretamente os escritos e o pensamento dos marxismos ocidentais[1], que chamamos de Novos Marxismos. Um ponto em comum destas correntes é a crítica à centralidade do trabalho como categoria analítica dado que se considera que o trabalho não vai voltar, ou seja, o subemprego e o desemprego global são estruturais do próprio capitalismo e fazem parte de seu dinamismo, destarte a ação humana nas lutas pelo emprego e por direitos trabalhistas.
Entretanto, estes marxismos se afastam em relação à direção em que se deve operar ante o desenvolvimento das forças produtivas e suas consequências no mundo produtivista-consumista; nomeadamente, quanto às possibilidades da superação do capitalismo em outro modo produtivo, o foco ou está nas ações das massas, ou na imanência antagônica da experiência capitalista. Destacamos, de forma sintética, duas dessas correntes, a Teoria Crítica do Valor [2] e o Operaísmo Cognitivo. [3]
A primeira corrente, a Teoria Crítica do Valor, tem preferência pelo estudo da dinâmica econômica própria do capitalismo: enfatiza as circunstâncias que rondam a diluição das atividades econômicas nas atividades fictícias – do ponto de vista da estrutura produtiva real, ao tempo em que o trabalho abstrato deixa de protagonizar a criação do valor. O que o demonstra a extrema financeirização da economia, o excesso de liquidez alavancado pelo crédito, as bolhas de valores voláteis embasados em negociações de papeis sem lastro, os altos índices de endividamento dos governos, o desemprego altíssimo e a impossibilidade da mão de obra ser absorvida pelos empregos formais; e, além de tudo, a extrema concentração global de renda nos países tecnologicamente desenvolvidos e nas grandes fortunas oportunistas e especuladoras.
Nesta corrente, as possibilidades de revolucionar o capitalismo a “partir de fora”, quer dizer, a partir de “homens conscientes”, de consciência de classe, de organização da classe trabalhadora ou mesmo dos desempregados e as massas de indivíduos excluídos e marginalizados, não é suficiente para a superação do modo de produção capitalista mesmo diante de suas grandes contradições e resultados destrutivos que promovem ciclicamente crises. Isto porque o capitalismo apresenta em seu dinamismo duas categorias intrínsecas: o trabalho abstrato e o fetichismo das mercadorias. Enquanto essas categorias forem presentes na forma mercadoria, o “sujeito automático”, que é o valor, isto é, a transformação de dinheiro em mais dinheiro ou capital (D-M-D’), estará presente no produtivismo e no consumismo, que por sua vez incentivam sempre o fetiche do trabalho (e sobretrabalho = lucro do trabalho), e as suas desumanizações no ciclo vicioso do capitalismo.
Mas o valor esgota-se, não por acaso, ou voluntariamente, mas porque a concorrência leva cada capital a empregar tecnologias que substituem a força de trabalho dos produtores diretos: se, por um lado, isto traz vantagens imediatas para um capitalista sujeito à concorrência, por outro lado, diminui a produção de valor, de sobretrabalho e de lucro em escala global. Este é, por assim dizer, o foco da Teoria Crítica do Valor, a dinâmica capitalista é “autofágica”, como diriam seus intérpretes. Esta ênfase à “regressão” ou incapacidade do sistema manter a reprodução do valor pela forma mercadoria, é crucial para eles e alimenta a perspectiva de superação do capitalismo - para além das possibilidades de organização dos produtores diretos ou marginalizados do sistema, seus autores podem ser classificados com forte viés “economicista”, embora eles recusem explicitamente uma interpretação determinista da base, que Anselm Jappe critica nos grupos de esquerda e que chama de “economismo” (JAPPE, 2019, p. 23-24).
Como se vê, o fato é que existe aqui uma prevalência das categorias fenomênicas capitalistas sobre a ação revolucionária dos homens, nenhuma “espontaneidade do povo”, pelo menos neste momento e estádio de desenvolvimento do sistema. Mas isto não significa que estejam a defender a permanência do capital contra os trabalhadores, mas ao contrário, opta por ver nas contradições do sistema melhores opções de sua superação, a não se correr riscos quanto às iniciativas “vanguardistas” que podem ser cooptadas por interesses dentro daquilo que em política chamamos de “fisiologismo”. É inegável que ao optarem por condicionantes para o capital, como trabalho abstrato (gerador de valor) e o fetiche das mercadorias, a Teoria Crítica do Valor dá um recado direto para as iniciativas dos sujeitos, populares, de negação do capital: tanto o trabalho abstrato como a fetichização das mercadorias, reificadas cada vez mais, aliado ao automatismo cada vez mais desenvolvido, indicaria que essas ações estariam propensas ao fracasso diante do dinamismo absorvente do capitalismo, do que a qualquer resistência profícua e emancipação humana de suas garras. No limite, pressupõ-se uma transformação insignificante por vias das fissuras subjetivas cotidianas no sistema. E, assim, seja por força das categorias econômicas extraídas da economia política, ou pelas experiências sociopolíticas desastrosas anteriores, esta corrente do marxismo atual pensa uma operacionalidade tardia de vanguarda, fetichizada, com o perigo de fisologismo a alimentar mais as forças do capital em seu próprio terreno. Por outro lado, se o dinamismo alienante e desumanizante do capitalismo impede reações eficientes, ao mesmo tempo ele próprio contém as contradições de seu próprio desfecho “autofágico”.
Anselm Jappe (2019), no apêndice “Alguns pontos essenciais da crítica do valor”, que consta ao final de sua obra “A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição”, apresenta uma síntese da Teoria Crítica do Valor, que aqui reproduzimos, que diz respeito e fortalece a tese de derivação econômica (economicista) e “autonomia” do próprio capitalismo em uma espiral de autodestruição (autofágica):
O papel histórico do movimento operário consistiu sobretudo, para além das suas intenções proclamadas, em promover a integração do proletariado. Isso revelou-se efetivamente possível durante a longa fase de ascensão da sociedade capitalista, mas hoje já não é possível. É preciso retomar a crítica da produção, e não apenas da distribuição equitativa de categorias pressupostas (dinheiro, valor, trabalho) (p. 330).
O triunfo do capitalismo é também a sua falência. O valor não cria uma sociedade viável, mesmo injusta, ele destrói as suas próprias bases em todos os domínios. Em vez de se continuar a busca de um “sujeito revolucionário”, é preciso ultrapassar o “sujeito automático” (Marx) em que se baseia a sociedade mercantil (p. 330).
Convém evitar o entusiasmo enganador dos que adicionam todas as formas atuais de contestação para disso deduzirem a existência de uma revolução já em ação. Algumas dessas formas podem ser recuperadas pelos defensores da ordem estabelecida, outras podem conduzir à barbárie. O capitalismo realiza ele próprio a sua abolição, a abolição do dinheiro, do trabalho, etc. – mas depende de uma ação consciente que a consequência disso não seja pior (p. 333).
Não há nenhum modelo do passado a reproduzir tal e qual, nenhuma sabedoria ancestral que nos guie, nenhuma espontaneidade do povo que com certeza nos salve (p. 334).
O Operaísmo Cognitivo também afirma que a radical alteração nas forças produtivas é acelerada pela concorrência entre empresas e entre capitais globais, criando forte precarização do trabalho e o desemprego em massa. Mas, nesta corrente, o aumento da miserabilidade global de “multidões” faz com se organizem os trabalhadores e os marginalizados, excluídos e não representados, em movimentos sociais, na luta por direitos, trabalho, assistência, educação e moradia (NEGRI; HARDT, 2006). A marginalização generalizada seria a consequência do alto desenvolvimento tecnocientífico da produção nos empregos, que levaria à extrema acumulação do capital monopolizado por empresas e especuladores, por consequência, com extrema concentração de renda. Ainda que não se proponha, nesta corrente, uma luta de classes aos moldes dos estádios anteriores do fordismo, por outros meios e aparatos as “multidões” pauperizadas, sem perspectivas econômicas-sociais e políticas, têm motivos suficientes para se arregimentarem e lutarem contra a negação da vida e desumanidade das sociedades de mercado atuais. Diferentemente da Teoria Crítica do Valor, o Operaísmo Cognitivo foca a atividade insurgente das massas, não apenas dos trabalhadores, mas de todos os grupos precarizados, pauperizados, marginalizados; em algumas vertentes o cognitivismo propõe que as atividades insurgentes sejam estendidas às atividades cotidianas nas “fissuras” do capitalismo (HOLLOWAY, 2003).
Para esta corrente, as condições de exclusão das “multidões” empobrecidas, de um lado, e a concentração de capital e consumo como privilégio de poucos, é o verdadeiro motivo a revolucionar o sistema capitalista e superá-lo mundo afora; portanto, ainda que não desconsiderem as contradições imanentes do desenvolvimento econômico do capitalismo, o foco passa a ser as massas insurgentes, quer dizer, os homens, os indivíduos não conformados das sociedades mercantilistas. A crítica, aqui, costuma vir da incerteza que se observe uma consciência revolucionária a par dos infortúnios e a negatividade do sistema; contudo, seus autores acreditam que a crítica à facticidade dessa “consciência revolucionária” já não é tão imprescindível para o enfrentamento ao capital, ou pelo menos não no grau teorizado pela tradicionalidade ou pelas narrativas das demais correntes neomarxistas.
Tanto a Teoria Crítica do Valor como a corrente do Operaísmo Cognitivo são aderentes à dialética materialista histórica: para a afirmação “as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias” (MARX, 1983, p. 204); aquela foca “as circunstâncias”, enquanto esta, “os homens”.
Os desdobramentos da corrente cognitivista, levaram, depois de intenso debate sobre o Derivacionismo de Estado nos anos 1980[4], a formulações teórico-práticas que reagruparam as possíveis ações revolucionárias para o pós-fordismo e pós-vanguardismo. Temos, então, duas ideias fundamentais no Operaísmo Cognitivo: o poder-fazer dos indivíduos que se organizam, e a negação da democracia burguesa como provedora de direitos e dignidade.
A teoria materialista cognitiva de autores como John Holloway ou Hardt & Negri, parte da mesma base econômica da produção pós-fordista, que se desenvolve até hoje, mas afirma as possibilidades de os indivíduos nas sociedades de pós-capitalistas poderem agir criticamente contra o sistema: Hardt e Negri de forma organizada, enquanto Holloway enfoca a autonomia e as subjetividades nos modos de fazer cotidianos. [5]
Já os grupos atrelados à Teoria Crítica do Valor, mais afastados da proposta de uma troca revolucionária a partir de ações subjetivas, definem-se como a “crítica a uma sociedade que se baseia na produção de mercadorias, no trabalho abstrato e na valorização do valor e está sujeita a uma dinâmica histórica independente que culmina no atual processo de crise” (KRISIS). [6]
Para John Holloway, no entanto, os modos de fazer tão radicalmente transformados possibilitam um “afastamento” do homem industrial da “unidimensionalidade” (MARCUSE, 1982) e fetiches de mercado, em grupos separatistas ou através de subjetividades revoltosas. Partindo de uma visão dialética materialista, o trabalho concreto está tão presente como o trabalho abstrato – as possibilidades estão no reverso da moeda (como trabalho concreto, valor de uso) que se apresenta também para esse dinamismo das atividades imediatas, não apenas à espera das condições “ideais” futuras da revolução. Importa o movimento (n’o processo) mais do que os níveis de uma consciência apurada ou mesmo o grau de radicalidade. Holloway vê como essencial que a premissa para o trabalho deve se ajustar ao Bem Viver: o trabalho de forma geral deve ser considerado saudável e humanizante quando os indivíduos em seu cotidiano podem executar tarefas e atividades longe da automação especializada das fábricas e dos escritórios, e exigir ao capital, ou mesmo renunciarem completamente a ele, quando escolhem se insubordinarem exigindo menos jornada de trabalho, ambientes sustentáveis, não comparecerem para trabalhar, dedicarem-se a atividades lúdicas, familiares, recreativas, pequenos fazeres cotidianos que resgatem a subjetividade, como nos grupos de atividades solidárias ou comunitárias. Nenhuma destas atitudes, no entanto, são excludentes da luta organizada dos trabalhadores e trabalhadoras, dos movimento sociais, dos grupos autônomos separatistas, dos enfrentamentos com o Estado e as forças policiais e/ou paramilitares (no caso de campesinos autônomos cooperados). Todos estes momentos e formas de luta disruptivos provocam “fissuras” no sistema, porém, exigem autonomia e tempo (tempo de trabalho disponível). Citando John Holloway (2011, p. 213):
A diferença (com o operaísmo de Negri ou o grupo Krisis) reside na completa ausência de uma análise do caráter dual do trabalho, ou seja, em não mencionar o fazer concreto como existindo no antagonismo presente em-conta-e-mais-além do trabalho abstrato. O resultado é que a atividade emancipadora aparece só como uma possibilidade futura viciada de todo fundamento real na sociedade de hoje. Sem uma concepção da atividade emancipada como uma luta do presente, os membros da sociedade do trabalho parecem os cachorros de Pavlov, dos que só nos passaria a esperança de que de alguma maneira possam romper seu condicionamento.
Seja como for, o tempo de trabalho disponível e a “expansão das lutas” constitui a luta política desde as atividades cotidianas, e visa politicamente o “fim” correlato e inevitável do poder e do Estado, isto é, da luta de classes. A problemática da instauração do socialismo não é a luta de classes em si mesma, no capitalismo, mas a sua permanência no socialismo. Arriscamos dizer que tal problema não foi adequadamente considerado pela vertente leninista-marxista do “Estado e da Revolução”[7]. No entanto, este momento político revolucionário é inegável no pensamento de Marx e Engels: “A classe trabalhadora substituirá, no curso de seu desenvolvimento, a antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes e o seu antagonismo, e não haverá mais poder político propriamente dito, já que o poder político é precisamente o resumo oficial do antagonismo dentro da sociedade civil” (MARX, 1983, p. 219).
A organização revolucionária e a realização de eventos que neguem a negação do capitalismo sobre nossas vidas, têm origem no desenvolvimento das forças produtivas gestadas no próprio capitalismo; isto vale para as lutas de classes organizadas, os grupos separatistas, as massas, e as subjetividades ativistas. Por exemplo, as transformações profundas na “composição orgânica do capital” dispensa ou afasta as classes assalariadas dos protocolos e dos sistemas de gestão direta do capital: o tempo de trabalho disponível hoje é essencial para as atividades revolucionárias e para a tomada de consciência das massas contra a negação/destruição sem precedentes do capital. Nessa tomada de consciência são tão importantes as associações sindicais, as greves, como as comunidades associadas, e as atividades alternativas comunitárias de sua sobrevivência. O que é importante é o sentido do movimento e a captura dos momentos em que o capital pode ser “rachado” ou já se encontra “fissurado”, por suas contradições imanentes ou pelo acúmulo das lutas que o negam e preparam sua superação.
A organização, mais ou menos estruturada, orgânica ou voluntária, que recolha em seu movimento o mesmo “querer-fazer” disruptivo contra a especulação e a vida hipotética do capitalismo, não precisa levar, necessariamente, à tradicional organização das lutas pelo poder; em si mesmo o movimento de muitos excluídos, marginalizados, paupérrimos, desempregados e subempregados constituem o mesmo “exército industrial de reserva”[8] com muitas poucas chances de sobreviverem dignamente nas sociedades mercantilizadas hoje. Nem tampouco a sua “falta” de consciência dita revolucionária é especificamente imprescindível, tomando por pressuposto que a vida concreta dos indivíduos engendra as formas disponíveis de luta e de tomada de consciência. A negação do capitalismo é tão desumana e brutal que muitos podem se associar e trocar experiências de sobrevivência contra o poder e os seus governos, nos coletivos, nas comunidades, nos movimentos sociais: a organização das lutas pode ser aparentemente desorganizada, mas isto é uma prevenção contra os poderes sempre almejados. Como os zapatistas afirmam: “perguntando se vai além”, “indo além se aprende, no próprio movimento”, “se obedece questionando o que se deve obedecer”. [9]
Na história é bem certo que o Ocidente teve como grandes exemplos que a queda de uma sociedade antiga foi perpetrada por uma outra dominação de classe que a ela se seguiu, como o caso da Revolução Francesa (1789) ou a Revolução Russa (1917) – a questão entre os revolucionários sempre foi, logicamente, a tomada do poder para revolucionar a sociedade. Na China da história clássica, até a instauração da República (1912), as dinastias se sucederam na derrubada das famílias imperiais que estavam no poder – uma sucessão de poder derrubando o poder da família e estamento que governava. Aconteceu no alvorecer da história moderna europeia, quer dizer, na passagem para a propriedade privada capitalista, uma revolução de “estamentos de cidadãos” que se ergueram contra a aristocracia rural, contra a propriedade feudal da terra. Inicialmente, entretanto, os servos da gleba e os servos versados em algum ofício, ao se libertarem de seus antigos senhores, a seu modo, também assumiram a forma feudal: mas eles se libertavam “não como classe, mas isoladamente”. Como se sabe, aqui, as formas de sobrevivência e as relações sociais do tipo feudais ainda se estenderam fortemente como a propriedade privada individual (nos ofícios e nas guildas), até a burguesia modificar completamente as relações sociais antigas e desenvolver as forças produtivas industriais para tal.
Assim, claramente existe uma realidade que serviu de base para a construção dos marxismos de nosso tempo que, contudo, inicialmente, não conseguiram ou não puderam se desnvecilhar das condicionantes do poder para a nova sociedade socialista, a da propriedade individual cooperativa. O cooperativismo também existe na sua forma burguesa de propriedade privada no capitalismo. O fato que se repetem inicialmente algures na sociedade nova as mesmas características e modos de realizar na forma anterior da vida social, serviu em uma série de casos para a naturalização de formas de viver sob o domínio anterior do capital, tanto na teoria como na realidade do socialismo que chegou ao poder. A mudança a longo prazo nunca aconteceu; de fato nunca houve preparação para isso. A cooperação e os fazeres alternativos das formas de viver que querem recuperar o sentido, a dignidade e a racionalidade de nosso viver são fundamentais para se “desobstruir” do capitalismo e ir se preparando a forma socialista – e ainda, “ir além”. [10]
As sociedades de mercado atingiram tal grau de desenvolvimento tecnológico e científico hoje que o tempo humano desloca-se do tempo de produção para o tempo da ociosidade criativa que, se comporta alguma fragilidade quanto à consciência revolucionária e a organização das lutas, por outro lado dá aos indivíduos uma potência que não tinham antes – a começar por tempo e espaço – para se revoltarem contra os governos que não os representam e lhes negam os direitos da vida digna; em muitos casos, o tempo disponível lhes abre possibilidades de atividades disruptivas em torno de comunidades e subjetividades que se negam a ser subsumidas pelo capital, ou de ações solidárias e comunitárias, ampliando o espectro da sociabilidade cooperativa que se agigantará no Socialismo.
A derrubada dos poderes instituídos não precisa ser exclusivamente pela via da tomada do poder: o que é importante é que as “fissuras” e “rachaduras” da sociedade doentia do capitalismo sejam aprofundadas continuamente. A luta de classes continua tão importante como antes, mesmo com novas roupagens ou novas facetas antagônicas ao capital. O problema, o verdadeiro problema, foi que elas não se extinguiram no socialismo! Como escreveram Marx e Engels: “Quer isto dizer que após a queda da sociedade antiga haverá uma nova dominação de classe, culminando num novo poder político? Não” (1983, p. 218).
Para o Comunismo a condição de libertação dos homens é a abolição de todas as classes por intermédio da classe trabalhadora e das massas despossuídas e marginalizadas, o que, inegável, implica consciência suficiente contra o capitalismo a ponto de se recusarem ao trabalho desumanizado e sem sentido[11] e aos fetiches da produtividade e do consumo instrumentalizados em função do capital. Quando todos são excluídos temporária ou definitivamente pelo capitalismo e se encontram, devido a ele, marginalizados e na miséria, todos de certa forma são “proletários conscientes” e organizam o enfrentamento à negação e destruição do capitalismo. Se as condições objetivas e subjetivas[12] revolucionárias se engendram no interior do desenvolvimento do capitalismo, elas estão fortemente presentes, e a vontade de luta e o desejo de derrubá-lo também deriva e se engendram nele, como for possível lutar, por “grandes” ações ou “pequenas” atividades cotidianas.
As lutas hoje são as preparações do movimento ao socialismo, pelo humano e pela dignidade nele, e além, no comunismo. Mas não são lutas que necessariamente almejam poder, dado que o fim das classes no socialismo devem igualmente acabar com o Estado e a organização política estatal para a República popular: uma coisa poderia ser a tomada do poder, outra bem diferente, seria acabar com ele, para falar o mínimo. “A classe trabalhadora substituirá, no curso de seu desenvolvimento, a antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes e o seu antagonismo, e não haverá mais poder político proriamente dito, já que o poder político é precisamente o resumo oficial do antagonismo dentro da sociedade civil” (MARX; ENGELS, 1983, p. 219).
A sociedade civil pode existir por seu autonomismo e organização autogestionária cooperativa e comunal. Embora a governabilidade pareça distante e pareça ser especialidade do Estado, é nas atividades cotidianas dos agentes sociais que ela se realiza. As atividades que negam a negação do capitalismo, todas elas, são, pois, a preparação para a vida no socialismo; e são imprescindíveis não apenas para a superação daquele, como para sua manutenção exitosa. Apesar da transparência de propósitos e definição política da nova organização social ao socialismo, as experiências parecem demonstrar que se os meios e as formas que levam ao poder são do tipo armamentistas e sob o domínio da violência e terror, acaba-se por reproduzir as guerras sanguinolentas perpetradas pelo capital em seu espiral de dominação e colonização infames sobre as populações e os povos, nacionais ou estrangeiros.
Antes não era possível uma participação em atividades de maior alcance porque a “superpopulação relativa de assalariados” mantinha-se concentrada e altamente dependente de sua funcionalidade para a criação e definição do valor, o que efetivamente levava a supor, até às condições fabris fordistas, que os operários eram os únicos que podiam desenvolver uma consciência de enfrentamento ao capital. Mas à medida que foram despedidos dessas funções, sendo substituídos por tecnologias e máquinas – sempre mais produtivas e automatizadas –, passaram a engrossar as massas de marginalizados e entraram em contato com outras frações de classe, perfazendo uma troca de experiências e de modos de vida que alteram profundamente as lutas contra o capitalismo, em seu seio, por muitos meios que não eram viáveis anteriormente. As novas “composições de capital orgânico” para as atividades produtivas, ou não produtivas, contemporâneas, o crescimento financeirizado como modo de reprodução fictício do capital, as formas de vida cada vez mais automatizadas, o desenvolvimento das forças produtivas, de um lado, e o crescimento da instrução, dos conhecimentos tecnicocientíficos, e as vias de comunicação acessíveis a quase toda a humanidade, propiciam uma nova Era que não era possível anteriormente, para a percepção/consciência disseminadas da desumanidade e barbárie mercantilista, e, consequentemente, para o transbordamento em ações de contestação e modos de fazer viver alternativos e autônomos por todo o globo.
BASQUET, Jérôme. Adeus ao capitalismo. São Paulo: Autonomia Literária; GLACO Edições, 2021.
CALDAS, Camilo Onoda. A teoria da derivação do estado e do direito. São Paulo: Outras Expressões, 2015.
ENLACE ZAPATISTA. Manifesto Por un mundo donde quepan muchos mundos. Disponível aqui.
HARDT, Michael; HOLLOWAY, John. Criando o Comum e Fraturando o Capitalismo - uma troca de cartas entre Michael Hardt e John Holloway. Revista Lugar Comum, no. 39, 15/03/2022.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. 8ª. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 2006.
HIRSCH, Joachim. Poder e antipoder sobre o livro de John Holloway Mudar o mundo sem tomar o poder. Revista Lutas Sociais, (17/18), 197–205.
HOLLOWAY, John. Mudar o mundo sem tomar o poder. São Paulo: Viramundo, 2003.
HOLLOWAY, John. Agrietar el capitalismo. El hacer contra el trabajo, Buenos Aires, Argentina: Ediciones Herramienta, 2011.
HOLLOWAY, John. Hope in hopeless times. Londres, Inglaterra: Pluto Press, 2022.
HOLLOWAY, John; LÖWI, Michael. A questão do poder colocada em debate (Intercâmbio entre Michael Löwy e John Holloway). Revista Herramienta, 19/06/2009.
JAPPE, Anselm. A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. Lisboa, Portugal: Antígona, 2019.
KRISIS. Quem somos. Disponível em: https://www.krisis.org/navi/portugues/; https://www.krisis.org/who-we-are/. Acesso em: 20 de fevereiro de 2025.
MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. 6ª. ed. Rio de Janeiro, RJ: Zahar Editores, 1982.
MARX, Karl. Miséria da filosofia. In: Florestan Fernandes (org.), Marx & Engels, História: K. Marx: a libertação da classe oprimida. Coleção Grandes Cientistas Sociais, n.36. São Paulo: Editora Ática, 1983.
MARX, Karl. O Capital. v.1, cap. 23, item 3. São Paulo: Boitempo, 2015.
MUSSE, Ricardo. Trajetórias do marxismo europeu. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2023.
SWEEZY, Paul; BETTELHEIM, Charles. Sociedades de transição: luta de classes e ideologia proletária. Porto, Portugal: Portucalense Editora, 1971.
[1] Sobre a ideia de vários marxismos como tipicidade do pensamento da dialética materialista histórica, diz Ricardo Musse: “Afinal, dependendo do período enfocado, ora a vitória, ora a derrota da revolução proletária ocupou o horizonte do marxismo ocidental. [...] Independentemente das premissas ou das perspectivas adotadas, as tentativas de reconstruir o marxismo ocidental como um bloco monolítico parecem fadadas a recair em parcialismos e aporias.” (MUSSE, 2023, p. 208).
[2] Autores: Moishe Postone, Robert Kurz, Anselm Jappe, Norbert Trenkle, Roswitha Scholz.
[3] Autores: Antonio Negri, Michael Hardt. Desdobramentos: 1) John Holloway, Bob Jessop; 2) Giorgio Agamben, Michael Walzer.
[4] Veja-se CALDAS, Camilo Onoda. A teoria da derivação do estado e do direito. São Paulo: Outras Expressões, 2015.
[5] Veja-se para este tópico: 1. HIRSCH, Joachim. Poder e antipoder sobre o livro de John Holloway Mudar o mundo sem tomar o poder. Revista Lutas Sociais, (17/18), 197–205; 2. HOLLOWAY, John; LÖWI, Michael. A questão do poder colocada em debate (Intercâmbio entre Michael Löwy e John Holloway). Revista Herramienta, 19/06/2009. 3. HARDT, Michael; HOLLOWAY, John. Criando o Comum e Fraturando o Capitalismo - uma troca de cartas entre Michael Hardt e John Holloway. Revista Lugar Comum, no. 39, 15/03/2022, p. 203-211.
[6] “Para nós, crítica ao capitalismo significa: crítica a uma sociedade que se baseia na produção de mercadorias, no trabalho abstrato e na valorização do valor e está sujeita a uma dinâmica histórica independente que culmina no atual processo de crise. Essa crise tem um caráter fundamental. Não só mina os fundamentos da valorização capitalista, mas ao mesmo tempo ameaça as condições de convivência humana em geral e, portanto, levanta a questão de uma abolição emancipatória do capitalismo com nova urgência.” (Aqui.).
[7] A propósito veja-se: SWEEZY, Paul; BETTELHEIM, Charles. Sociedades de transição: luta de classes e ideologia proletária. Porto (PT): Portucalense Editora, 1971.
[8] Um certo contingente de trabalhadores(as) assalariados(as) se constituem à margem de seus empregos, desempregados ou subempregados ou mesmo os que buscam um primeiro emprego: são chamados por Marx de “exército industrial de reserva”. No capitalismo a mão de obra é parte dos ativos produtivos capazes de produzir riqueza ao capitalista, mas ela é “flutuante”, é, portanto, capital variável que pode crescer ou diminuir conforme a necessidade de regulação da produção: p. ex., quando existe superprodução ou estoques elevados, ou baixo consumo nas crises de inflação ou períodos de sazonalidade, entre outros, as empresas demitem ou suspendem as atividades regulares de seus trabalhadores. Com isso, os patrões também controlam os valores da força de trabalho pela concorrência dos salários e controlam igualmente os interesses dos trabalhadores lutarem por seus direitos e melhores condições de trabalho, pelo medo de ficarem sem emprego. Ver: MARX, Karl. O Capital, v.1, cap. 23, item 3: Produção progressiva de uma superpopulação relativa ou exército industrial de reserva. Boitempo, 2015.
[9] Nas palavras deles: “Creemos y retomamos los siete principios zapatistas y del CNI: 1) Proponer y no imponer, 2) convencer y no vencer, 3) obedecer y no mandar, 4) representar y no suplantar, 5) bajar y no subir, 6) servir y no servirse, 7) construir y no destruir". (Aqui). Para manifesto e programa geral do movimento: aqui.
[10] Seguindo a lógica do materialismo histórico dialético, procurando agregar um modelo conceitual para os estágios principais do desenvolvimento histórico dos modos de organização produtiva e cultural societária, podemos intuir a seguinte correlação: capitalismo – pós-capitalismo – socialismo – comunismo – “ir além”.
[11] Segundo Jérôme Basquet, “Aproximadamente metade da força de trabalho atualmente mobilizada se consagra às tarefas que se pode admitir que sejam reconhecidas como perigosas e inúteis” (BASQUET, Jérôme. Adeus ao capitalismo. São Paulo: Autonomia Literária; GLACO Edições, 2021).
[12] Na tradição do marxismo ocidental, as “condições objetivas” estão ligadas à dinâmica estrutural de determinada forma social produtiva, primordialmente a partir da contradição entre o desenvolvimento do conjunto entre as forças produtivas e as relações a elas correspondentes; tanto os modos relacionais ao nível das produção como os derivados correspondentes para a totalidade faz formas sociais, superestruturais, tendem a se modificarem tardiamente em relação ao aparato técnico-científico devido ao “caráter” simbólico e linguageiro, portanto, cultural em geral (Cf. MARX, Prefácio, Crítica da Economia Política [1859]. Já as “condições subjetivas”, na literatura marxista, podem ser consideradas do ponto de vista da “luta de classes” que é imanente da divisão social do trabalho (cf. MARX; ENGELS, Manifesto do Partido Comunista [1848]), como o capitalismo, cuja autonomia e práticas revolucionárias estão imbricadas no movimento dado pelas “contradições objetivas”, portanto, conforme a dialética materialista, sofrem determinações da base e, possivelmente, sobre ela exercem sobredeterminações quanto à reflexão teórica e práticas que podem acelerar ou retardar, agravar ou diluir as rupturas inerentes às contradições estruturais. Isto significa, portanto, que a filosofia pode ser equiparada às determinações econômicas de base, agindo ativamente sobre a realidade social assim compreendida como totalidade. Assim, nos diz Ricardo Musse sobre Korsch: “No combate a esse “marxismo vulgar” (que considera apenas como importante a junção econômica estrutural) que pretende suprimir, sem mais, a filosofia, Korsch procura restabelecer alguns princípios do materialismo dialético, em especial a doutrina que afirma que as formações espirituais devem ser concebidas, teoricamente, e tratadas, na prática, como realidades sociais” (MUSSE, 2023, p. 158).