10 Dezembro 2024
"Essa vida sofrível possui um agente, o capital, e uma forma, a agência do desespero reprimido na base do constrangimento compulsório sobre nossos desejos de bem viver com dignidade, que resulta em uma miríade de recalques; mais tarde ou mais cedo, nunca de forma amena, eles se converterão em uma péssima felicidade, que conhecemos como fetichização das mercadorias", escreve José Manuel de Sacadura Rocha, doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e professor do NEJ - Núcleo de Ética.
Em 2010, na 3ª edição do livro Mudar o mundo sem tomar o poder, John Holloway escreveu um epílogo, com o subtítulo “Moving Against-and-Beyond – Reflections on a Discussion”[1] (Movendo-se contra e além – reflexões sobre uma discussão). Nele o autor procura responder, afinal, depois de perguntas e críticas que surgiram nos últimos dois anos: “Tudo bem, mas o que diabos fazemos? De todas as perguntas e críticas que surgiram nos últimos dois anos de discussão esse é o que mais pulsa na mente” (HOLLOWAY, 2010, p. 216).[2]
Nós não estamos em condições de mudar a “catástrofe” do capitalismo, mas estamos em condições de mudar nossos comportamentos e a nós mesmos fazendo isso neste mundo de insanidade e horror.
Muito diferente do que achamos, o mais absoluto lirismo revolucionário sempre tem nos afastado de nossos propósitos de justiça e liberdade, simplesmente porque ficamos esperando tais ou quais condições objetivas (amadurecimento da consciência dos trabalhadores, crises estruturais do capitalismo) nos levarem por inércia, quando não por omissão, à revolução. Nisto está, quiçá, a pior condição objetiva à esquerda de nossa utopia socialista: a inércia e a omissão de nosso poder-fazer, que se dá paradigmaticamente na reprodução cotidiana do capitalismo, como sugestão para uma alienação sistêmica controlada pelo incentivo ao produtivismo e consumismo de coisas-mercadorias, que nos retira toda a potência do saber-querer-poder-fazer.
Ficar à espera da justiça, da igualdade de condições materiais, e imateriais, para a revolução, é mais ou menos como Kant nos alertava para a equidade: “O direito mais estrito é a maior injustiça” (Introdução à doutrina do direito, apud MORRIS, 2002, p. 241-242).[3]
Assim, quanto maior for a compulsão dirigida pelo capitalismo para o crescimento material e o consumo, ao contrário, mais difíceis se tornam as condições objetivas contidas tradicionalmente no pensamento revolucionário, mas não a certeza da catástrofe e da barbárie que ele nos promete. É isso que temos que resgatar no sistema desde já: por força de uma dialética materialista que além das condições ditas objetivas, nos proporciona esse pulsar de possibilidades de saberes e fazeres a emanar precisamente dos estertores mais avançados do desenvolvimento capitalista; lá do fundo de nossas almas brota irrefreável nosso “grito”, que assim visto, não se coloca puramente a partir do espírito, mas da realidade que vivenciamos diuturnamente de forma bem concreta e opressora. Por que o movimento avançado do capitalismo é paradoxal não é o caso aqui, aliás sabemos isso de sobra, esse não é o nosso problema, explicá-lo simplesmente, explicá-lo academicamente, intelectualmente ao infinito, mas fazer dele nosso Fazer, a qualidade da dialética materialista não se dá pela exasperação da teoria, mas pela imanência prática, quer dizer, social, coletiva, histórica de nosso querer-poder-fazer (Karel Kosik, Dialética do concreto, 1976). Ou como em Sartre (2002, p. 214-215): "e fazendo-me o que sou, descubro-os tais como eles se se fazem, isto é, como seu trabalho os produz [...] realizo-me como membro de uma sociedade definida que decide as possibilidades e objetivos de cada um; para além de sua atividade presente, redescubro sua própria vida, a relação das necessidades com o salário e, para além de tudo, os dilaceramentos sociais, as lutas de classe".[4]
Quando Sartre anunciou que o Ser tinha que se efetuar existencialmente em escolhas diárias e imediatas, frente ao Nada (Jean-Paul Sartre, “O Ser e o Nada”, 2015), pode-se entender que descobriu um pequeno, mas substancial véu na filosofia de nosso viver: o capitalismo é um idealismo, uma idealização, materialmente uma manipulação do espírito por uma mente que aprende, e nisso tende a colapsar aquilo que menos sofrimento proporcionar e maior certeza possível lhe der de sucesso, usufruído como compensação de uma luta tenaz contra a incerteza e a infinitude de possibilidades razoáveis para nosso agir. Basta dizer, por enquanto, que essa “idealização material” é a produção de mercadorias na base de tempo de trabalho abstrato, com máxima roteirização produtivista e consumista que realiza o capital e seu regime de acumulação.
Não cabe aqui alargar o entendimento sobre a incidência da teoria de espaço-tempo proposta por Einstein; basta entender que nossa vontade, isto é, nossas escolhas são mediadas por uma mente que seleciona das infinitas possibilidades um leque de opções, até onde nosso espírito possa dar conta de escolher e não se perder em incomensuráveis possibilidades, diante de ilimitadas (pelo menos para nós) informações espectrais contidas nessa “caixa” do tempo-espaço. Desta monta, para não nos perdermos em tais incomensurabilidades de infinitas possibilidades, escolhemos de um leque dado pela nossa cognição, e essas escolhas são sempre determinações rumo a futuros previsíveis (mesmo que não conscientes), quer dizer, são sempre “deixar” de lado outras múltiplas opções: escolher é sempre duvidoso, escolher é sempre um não escolher prematuro, um salto no escuro e no insondável, que requer, como única condição do viver coletivo, a liberdade, a máxima possibilidade política pela qual luta a humanidade desde sempre. Nietzsche (A Gaia Ciência, 2012) dizia que se a quantidade de energia no universo é finita, então existe uma quantidade finita de matéria pelas quais as coisas podem se organizar de formas diferentes em um tempo infinito: no tempo infinito de escolhas finitas, ou melhor, de escolhas que finalizamos, teremos que retornar (eterno retorno). Melhores!
Isto para dizer que nossas escolhas advindas da intolerância e desigualdade provocadas pelo capitalismo, levam a um Grito, que se expressa da melhor forma possível diante de contextos sofríveis e horrores sistêmicos mercantis, mas é um grito real, e que contém as possibilidades de um querer-fazer diferente, agora, contra e além desse mundo. Paradoxalmente, pelo menos com algum sentimento de emanação livre do espírito, podemos ordenar, mesmo no limitado espaço de nossa mente, que se obrigue a fazer como uma recusa ou negação daquilo que nos nega a vida (por ex., com mais racionalidade e menos compulsão industrial, como, segundo Holloway (Fissurar o capitalismo, 2013), “negação da negação”; como em Marx, nos “Manuscritos Econômico-filosóficos”, de 1844). Paradoxalmente ao escolher, recusamos o capital e saltamos adiante do capitalismo. O capitalismo é a “não escolha”. Este fazer existencial é uma escolha por igualdade e justiça social, uma voz de identidade que seja, que cresce, então uma constelação de vozes ao bem comum, à solidariedade, à cooperação, ao coletivo; isto não chega a ser mais ideal que nossa utopia revolucionária não realizada e sempre postergada, pelo contrário, é um Fazer que dá à dialética materialista, dá à razão dialética, a racionalidade perdida em finanças, recupera uma liberdade de fazer bem e melhor, projetando um Bem Viver para todos(as).
Acontece, porém, que essa vida sofrível possui um agente, o capital, e uma forma, a agência do desespero reprimido na base do constrangimento compulsório sobre nossos desejos de bem viver com dignidade, que resulta em uma miríade de recalques; mais tarde ou mais cedo, nunca de forma amena, eles se converterão em uma péssima felicidade, que conhecemos como fetichização das mercadorias. Mas o pior, no mais profundo de nosso Ser, mudamos intransigentemente, e até por gosto, nossa liberdade por nossa igualdade no consumo – este consumo, maior, quanto maior, pelo menos na narrativa de mercado, nossa destreza em produzir. No fundo, bem no fundo, em suas entranhas o modo de produção histórico do capitalismo não é de fato um fenômeno real material, mas um epifenômeno subliminar de orientação de desejos a compulsões de escolha por Ter coisas. Esta diferença tão substantiva dos modos de comportamento em nossas vidas, esta sublimação das coisas por sobre nossos Seres, não respeita liberdade alguma, ao contrário do que afirmam os neoliberais, ainda que, por sua lógica, precise demonstrar que os eleitos somos “todos(as)” a gozar as coisas materializadas da produção, as mercadorias, algo como Erich Fromm (1982, p. 56) conclui em seu Ter ou Ser: “Buda, o Desperto, conclama o povo a despertar e libertar-se da ilusão que faz ansiar por coisas que levem à felicidade.”[5] Mas Fromm era um existencialista?
Estamos sempre por aqui esperando o que não pode acontecer por si só: em um reino de justiça e igualdade ainda assim teremos que fazer escolhas. Em todos os casos, claro, a condição política mais importante, a única que sustenta de fato uma comunidade de iguais, já não seria a igualdade, mas a Liberdade. Ao fim e ao cabo, a política se define por ela, e isto é o socialismo que esperamos um dia a humanidade possa experimentar como comunidade ou Comunismo, e ainda assim, como Marx disse (2008, p. 114), esse não é nosso objetivo:
O comunismo é a posição como negação da negação, e por isso o momento efetivo necessário da emancipação e da recuperação humanas para o próximo desenvolvimento histórico. O comunismo é a figura necessária e o princípio enérgico do futuro próximo, mas o comunismo não é, como tal, o termo do desenvolvimento humano – a figura da sociedade humana.[6]
E qual seria então? O homem e um entendimento de si superior, elevado em sabedoria e fincado no sólido solo da dignidade social e da gestão coletiva.
Mas isso não é possível no capitalismo - então construímos a ideia que temos que acabar com o capitalismo primeiro e voltamos ao mito de Sísifo que rola a pedra encosta acima para ela cair de novo, infinitamente. E voltamos às condições ideais objetivas, a política pela tomada de poder, à conquista do poder do Estado, para depois começarmos a falar das virtudes do homem comunista, nas razões práticas do socialismo, etc. Nada disso!, diz Holloway em seu “Epílogo” de 2010: existe bastante revolução em nossos fazeres desde que nosso querer comece em qualquer lugar e de qualquer forma a se rebelar, ir contra os parâmetros e predicados do capital em seu regime de acumulação privada em torno de 1% da humanidade. O que não vemos bem é que o socialismo é um processo que se desenvolve nas e pelas entranhas do capitalismo, em suas crises e por elas, mas, fundamentalmente, em suas fissuras já expostas, e as novas, que nossas condutas como fazedores podem angariar em nós mesmo e em nossa volta. E por que isto estaria errado? Esperar pelo quê?
A luz que o jovem Wilhelm Meister (personagem/alter ego de Goethe) procura em seus anos de aprendizado, ou o grito de Jonathan Swift (“As Viagens de Gulliver”) no leito de morte, “quero mais luz, deixem a luz entrar”, como a recusa de Kierkegaard (“Temor e Tremor”) pela extrema unção em seu leito, “afastem-se de mim hereges, santos de ocasião, que eu converso com Deus”, e pulou da cama! - todos esses “prenúncios” são à sua maneira revolucionários em nossa dialética materialista, precisamos expandir isso, alargar nosso olhar contra as compulsões especializadas do capitalismo, normalizadas, precisamos de uma “ética da personalidade” tanto quanto de uma “ética política” (Agnes Heller, “Além da Justiça”, 1998).
Somos muito bons em entender bem o capitalismo, mas demasiado convenientes para fazer de cada ação trivial uma resposta socialmente promissora contra ele. Para a Justiça (igualdade) a Liberdade de escolher só tem seu sentido maior nos atos reais dos que fazem, em seus fazeres cotidianos como crítica do capital. Quando me perguntam o que é o comunismo eu não sei responder, acho que ninguém de verdade sabe – saberá um dia? Mas eu sei que, afinal, só nós humanos somos capazes de fazer certas coisas: Bach's air on the G string: Stokowski, 6:57. Um passo a mais!
[1] HOLLOWAY, John. “Change the World Without Taking Power: the meaning of revolution today”. New Edition. 3. ed. Londres: Pluto Press [Get Political]; Puebla: Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades - Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, 2010.
[2] No original: “Fine, but what on earth do we do? Of all the questions and criticisms that have come up in the last two years of discussion that is the one that throbs in the mind most of all.” (trad. nossa).
[3] MORRIS, Clarence. “Os grandes Filósofos do Direito”. Trad Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
[4] SARTRE, Jean-Paul. “Crítica da Razão dialética”. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
[5] FROMM, Erich. “Ter ou Ser?”. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1982.
[6] MARX, Karl. “Manuscritos Econômico-filosóficos”. São Paulo: Boitempo, 2008.
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Coreografias do impossível: O existencialismo no "epílogo" posterior de "Mudar o mundo de John Holloway". Artigo de José Manuel de Sacadura Rocha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU