20 Fevereiro 2025
"O objetivo de Musk e seus seguidores é tomar o controle do aparato do Estado, o que significa (como durante a Revolução Cultural chinesa ou as transições pós-comunistas da Europa Oriental) a purga de funcionários públicos". A reflexão é de Branko Milanovic, economista sérvio-americano e professor da Universidade da Cidade de Nova York, em artigo publicado por Ctxt, 18-02-2025.
Dizer que Trump, em sua nova encarnação, é diferente do Trump número 1 é afirmar o óbvio. O mundo e os Estados Unidos foram submetidos a uma avalanche de decretos e decisões que transformaram tanto os problemas internacionais quanto os domésticos. Foram três semanas de uma cavalgada vertiginosa que ainda não parece ter perdido fôlego e que confirmou a ideia de que o novo Trump governará de forma muito diferente do antigo.
Há duas razões para essa diferença.
Sobre a primeira razão, serei breve. Ela é menos importante e está relacionada à personalidade de Trump. Quando chegou ao poder em 2017, é evidente que nem ele esperava conseguir a nomeação pelo Partido Republicano, muito menos vencer a presidência. Assim, não estava preparado e não sabia o que faria. Sua ideologia era uma mistura confusa de coisas aprendidas ao longo de sua trajetória no setor imobiliário e no concurso de Miss Universo, e, como nunca havia trabalhado dentro dos amplos limites do governo nem sido eleito para nenhum cargo, não tinha a menor ideia de como implementar tecnicamente aquelas ideias vagas em que acreditava. Pode ser que a ideologia de Trump não tenha mudado desde então, mas, como indivíduo, ele amadureceu ao longo desses oito anos.
De fato, ninguém que tenha passado por oito anos de investigações ininterruptas, perseguição pela maioria da mídia, intermináveis processos judiciais, sendo forçado a comparecer aos tribunais por dias a fio e tendo suas falhas (reais ou imaginárias) expostas, além de ter sido alvo de dois processos de impeachment e de ao menos uma tentativa de assassinato, poderia sair dessa experiência sendo a mesma pessoa. Todas as tentativas de colocá-lo de volta em seu lugar ou de eliminá-lo politicamente falharam. Agora, ele deve pensar, como muitos em sua posição fariam, que é um homem marcado pelo destino. E, como tal, deve sentir que precisa deixar um legado duradouro.
A mudança mais importante e significativa em relação ao Trump número 1 é que agora ele conta com Elon Musk e sua animada turma de rompedores de convenções, que estão promovendo o desmantelamento do aparato estatal. O que estão fazendo sob o título de Departamento de Eficiência Governamental pode parecer algo novo para quem não tem experiência ou conhecimento sobre mudanças revolucionárias. Nos Estados Unidos, a última grande transformação desse tipo foi realizada por Roosevelt nos anos 1930, quando destruiu o antigo Estado, criou um novo e o dotou de inúmeras funções que perduraram por décadas.
É uma noção básica do marxismo que, para sobreviver, um movimento revolucionário precisa demolir o aparato estatal anterior e criar um novo. Marx escreveu sobre isso ao se referir à Comuna de Paris: “A próxima tentativa da revolução francesa [a Comuna] não será transferir de umas mãos para outras a máquina burocrático-militar, como vinha acontecendo até agora, mas demoli-la [ênfase de Marx]” (Cartas a Kugelmann, 12 de abril de 1871). Lenin mais tarde colocou essa ideia em prática ao chegar ao poder. Sem o controle do aparato estatal, toda revolução permanece incompleta e vulnerável a ser derrubada.
A revolução atual tem certas características tipicamente americanas. O Estado dos EUA se tornou uma enorme máquina burocrática, amplamente desconectada de quem está no poder. Os ideólogos da revolução trumpista perceberam que o governo continuava funcionando e produzindo os mesmos resultados independentemente de quem ocupasse a presidência. Embora isso aconteça em muitos países, nos EUA o fenômeno foi exacerbado por uma peculiaridade: grande parte das decisões políticas foi “terceirizada” ou removida do alcance direto do poder executivo e legislativo. O Departamento do Tesouro, seja sob democratas ou republicanos, é controlado por Wall Street (Paulson, Rubin, Mnuchin, Brady e companhia), o Federal Reserve é legalmente independente e os EUA, que no século XIX já eram conhecidos como “um sistema de tribunais e partidos”, voltaram a essa dinâmica, na qual o Judiciário toma muitas decisões políticas que, em sistemas parlamentares, caberiam aos políticos eleitos.
Ao juntar todos esses fatores, percebe-se que o alcance do poder executivo é bastante limitado, não apenas pelas restrições tradicionais do Congresso e do Judiciário independente, mas pelo fato de que grandes áreas da formulação de políticas — como fiscal, monetária e regulatória — estão nas mãos de burocratas independentes do partido no poder, que pouco se preocupam com sua agenda.
Os ideólogos da revolução trumpista (e aqui penso especialmente em N. S. Lyons, que produziu alguns textos ideologicamente muito claros, em particular The China Convergence e American Strong Gods) identificaram outro fenômeno que limita o alcance de sua revolução. Ao longo dos anos, o aparato estatal foi se enchendo de extremistas progressistas que claramente não compartilham a visão de mundo dos revolucionários trumpistas. Assim, a máquina do Estado ficou ainda mais isolada ideologicamente do governo trumpista.
Os revolucionários acreditam que isso aconteceu porque os progressistas dominaram a esfera intelectual, controlando as principais universidades dos EUA, os think tanks e instituições quase governamentais. Dessa forma, a visão liberal passou a predominar entre aqueles que ingressam no aparato estatal ou participam de atividades “paraestatais”. (Obviamente, as pessoas que ocupam essas posições selecionam para trabalhar com elas ou substituí-las outras que compartilham de suas ideias.) Os ideólogos atribuem a ascensão dessa Classe Dirigente Profissional (CDP) à sua superioridade na produção de conhecimento. No entanto, essa explicação não parece muito convincente, pois assume que o conflito se dá no campo ideológico, sem considerar a “infraestrutura” — o cenário de reprodução social onde ideologias mais materialistas tendem a enxergar contradições fundamentais se manifestando. De qualquer forma, a superioridade na produção intelectual se traduz, via ocupação de cargos, no controle do aparato estatal.
Se esse diagnóstico estiver correto, fica evidente que os revolucionários precisam tomar o controle e/ou destruir a estrutura estatal existente. Isso significa que a “purga” precisa ir muito além das mudanças comuns quando um novo presidente assume o poder, que geralmente se limitam aos cargos mais altos e aos indicados por livre nomeação. Para capturar o aparato estatal, a purga deve ser muito mais profunda, atingindo não apenas cargos de confiança, mas também funções técnicas comuns.
Dado que muitos órgãos governamentais já operam de forma independente do Executivo, que a “hegemonia” ideológica da direita levaria décadas para se consolidar (se é que um dia aconteceria), e que enfrentam uma máquina estatal hostil, os revolucionários trumpistas concluíram que, mesmo vencendo sucessivas eleições, conseguiriam muito pouco. Apenas a “espuma” da superfície mudaria, sem impactos reais no sistema.
Acho que isso fornece uma explicação lógica para a determinação dos revolucionários em tornar a mudança duradoura. Às vezes, de forma até risível, dizem que os revolucionários querem destruir o "Estado profundo", para então argumentar que tal Estado profundo não existe nos Estados Unidos. Essa é uma objeção ingênua que interpreta o conceito de Estado profundo no sentido original, como definido no Paquistão e na Turquia: uma instituição militar fora do controle do governo. Isso, de fato, não existe — ou pelo menos não existe plenamente — nos Estados Unidos. Pelo contrário, a tentativa de capturar o Estado é frequentemente atribuída ao mero partidarismo.
Essa crítica não faz sentido, porque o partidarismo, por definição, está presente em todas as convicções e ideologias políticas. Apenas aqueles que vivem em um mundo etéreo de fantasia podem sustentar que as decisões econômicas nacionais e internacionais são apenas uma questão de habilidade técnica. Esse é o argumento usado pelas elites para afirmar que possuem um conhecimento técnico especial que as exime de serem partidárias e que, portanto, devem ser deixadas em paz para continuar fazendo o que sempre fizeram. Ambas as críticas à ação dos revolucionários estão equivocadas.
O objetivo dos revolucionários é tomar o controle do aparato estatal, o que, nas condições específicas dos Estados Unidos, significa (assim como aconteceu durante a Revolução Cultural chinesa ou nas transições pós-comunistas da Europa Oriental) a purga de funcionários públicos. Esse objetivo não tem nada a ver com a existência ou não de um "Estado profundo" no estilo turco, nem com o partidarismo político. Tem a ver com o poder.
A batalha que estamos vendo entre Elon Musk e seus seguidores e diferentes partes do Estado americano são os conflitos normais que ocorrem quando um movimento revolucionário quer deixar uma marca profunda no futuro.