23 Novembro 2024
O escritor britânico reflete sobre a vitória de Donald Trump e como os conservadores mobilizaram teorias como a psicologia evolutiva para renovar suas posições e lançar uma batalha cultural em fóruns online ou redes sociais.
A entrevista é de Ekaitz Cancela, publicada por El Salto Diario, 22-11-2024.
Nos encontramos com Hari Kunzru (Londres, 1969) na varanda de um hotel com vista para os vulcões Misti e Chachani, em Arequipa. O renomado romancista, ativista favorável à causa palestina e ensaísta de esquerda está no Peru, no contexto do Hay Festival, para apresentar seu último livro traduzido para o espanhol, Píldora roja (Caja Negra, 2024). Trata-se de um dispositivo de ficção científica no qual ele disseca como a nova direita americana está mobilizando as redes sociais e os novos dispositivos culturais digitais para vencer a batalha política. A politização das gerações mais jovens e a organização em fóruns online no segundo triunfo de Donald Trump, embora remonte a quase uma década atrás, é um bom exemplo disso. Como a esquerda deveria entender esse fenômeno?
Comecemos com um artigo que você escreveu na The Yale Review, onde coloca o papel da psicologia evolutiva no centro do debate intelectual sobre como a ultradireita vence as guerras culturais nos Estados Unidos. Como você percebe sua influência no estado neoliberal das coisas e como reflete isso em seu último romance?
Faz parte de um longo debate entre explicações sociológicas e biológicas. Durante muito tempo, os biólogos rejeitaram a ideia de que existem modos de conhecimento que não podem ser reduzidos à ciência que praticam, ou seja, aos fatos sociais. Na década de 1970, os argumentos passaram a girar em torno do que então se chamava sociobiologia. O biólogo Edward Wilson propôs que os fenômenos sociais de alto nível, os fenômenos culturais, as interações interpessoais, podem, em última instância, ser explicados pela biologia. E ele tinha uma visão bastante simplificada dessa ciência. Acreditava que os traços individuais estavam “programados” biologicamente em nós. Ele se referia aos temas clássicos sobre a humanidade que a direita frequentemente problematiza, como gênero ou raça.
Mais tarde, surgiu uma nova disciplina, a psicologia evolutiva (EvoPsych), argumentando que não é tanto que haja uma biologia totalmente programada, mas que existem certos comportamentos que foram selecionados pela evolução e que equivalem a módulos. Existiriam, então, pequenos “mecanismos” no cérebro que causam e explicam vários tipos de comportamento social, o que, em última instância, sustenta que as pessoas em países pobres são menos inteligentes e, portanto, não devem se reproduzir como os brancos.
E essa posição se tornou muito popular, como você certamente sabe, entre a direita nos espaços digitais. A EvoPsych tem sido usada para argumentar que as mulheres não podem ser boas programadoras ou que as pessoas negras são mais propensas à violência, ao crime, e assim por diante. Em última instância, esses argumentos tentam afirmar que as mudanças sociais não fazem sentido porque, no final das contas, você está lutando contra a biologia. O que dizem, em última análise, é que não pode haver uma força de trabalho não hipermasculinizada em ciências da computação porque as mulheres simplesmente não são capazes de programar corretamente.
A cultura de Silicon Valley compartilha grande parte de seu DNA intelectual com a EvoPsych, especialmente no que diz respeito às teorias sobre informação, retroalimentação e controle. James Damore não é, de longe, o primeiro jovem engenheiro a utilizar a EvoPsych. Ele tenta se opor à ideologia liberal da diversidade, questionar as teorias pós-modernistas sobre a construção social do conhecimento ou fornecer uma explicação simples da natureza humana que promete ajudar qualquer indivíduo a se abrir caminho pelas complexidades incomensuráveis do mundo social.
Ou seja, a direita branca identitária tem oferecido uma resposta sobre como os indivíduos se relacionam com a sociedade moderna.
Sim, e tem reforçado a afirmação de que as pessoas brancas estão cultural e biologicamente predispostas a ser a norma; reivindicando toda uma série de valores associados à Ilustração, como a democracia e a liberdade de expressão. Iniciar essa discussão pode parecer complicado, pois envolve temas complexos relacionados com a evolução humana, mas até o momento a fonte das explicações sociais tem vindo da direita e tem servido para deslegitimar vários pontos de vista da esquerda, como o construtivismo.
No final das contas, se você quer promover uma mudança política, precisa acreditar que existe uma certa plasticidade no sujeito humano que tornaria possível essa mudança. Acredito que a esquerda tem sido arrogante demais sobre as posições conservadoras relacionadas com a natureza humana, em vez de dar a batalha diretamente a partir de suas próprias categorias. De maneira geral, como estilo de argumentação, pelo menos na esquerda dos Estados Unidos representada pelo Partido Democrata, tem sido muito comum o “fascismo é só fascismo, já sabemos onde isso leva, a eugenia já foi deslegitimada pelos nazistas, bla, bla, bla, Cala a boca”. Isso produziu a ideia de que certos tipos de explicações psicológicas e evolutivas se tornam conhecimentos proibidos na esfera pública, o que acaba tornando esses argumentos ainda mais atraentes. Fez parecer que, se você faz parte do "submundo" dos fóruns conservadores online, você também está contra um tipo de liberalismo anticientífico que não quer debater e que não tem uma base real sobre a qual sustentar seus argumentos. Acho que isso tem sido um desastre para a esquerda, especialmente para os jovens. Acabamos de ver nas eleições dos Estados Unidos que os homens da Geração Z votaram em massa em Donald Trump. E isso se deve, em parte, a essa narrativa de que certos tipos de verdades sobre o mundo estão sendo suprimidas pelo liberalismo dominante. Esse é o argumento da píldora roja, não?
De fato, o que a novela realmente aborda é a questão da liberdade de expressão reivindicada por esses setores da sociedade, que se opõem à censura do politicamente correto. Talvez, devido à centralidade das identidades de classe na construção da hegemonia cultural, os inimigos da esquerda têm atacado e ressignificado teorias como as de Gramsci ou o conceito de "marxismo cultural" de Raymond Williams para travar essa batalha, pois entendem o potencial emancipador da cultura ou da identidade, mas o utilizam para fins reacionários. Como esse fenômeno se expressa nos Estados Unidos?
Existem duas tradições nesse debate. Uma delas é, acredito, uma apropriação bastante clara das ideias gramscianas sobre a hegemonia. Eles utilizaram a análise marxista e a transformaram em uma ferramenta para seus próprios fins políticos. E acho que isso tem dado frutos. Eles entenderam, por exemplo, que a educação é um espaço político e que as universidades podem incubar um pensamento de esquerda, e por isso têm sido muito agressivos com os professores.
Paralelamente, há uma tradição muito mais conspiratória: a ideia de que a comunidade judaica está mobilizando intelectualmente o "marxismo cultural" para enfraquecer as energias da nação americana. Sob essa teoria antissemita, que segue o velho modelo fascista, o judeu é o inimigo último da sociedade, e o marxismo cultural é a ferramenta para destruí-la. É o mesmo argumento que sustenta que os judeus controlam a imigração com o objetivo de importar eleitores não brancos. A ideia que se tenta transmitir é que as pessoas racializadas são incapazes de ter agência própria, sendo controladas pela comunidade judaica. O "marxismo cultural" aparece no pensamento estadunidense desde os extremos da direita, especialmente entre os grupos nazistas e neonazistas, com esse tom conspiratório. A guerra cultural abrange desde intelectuais de direita que dialogam com ideias da esquerda até os lunáticos antissemitas.
Sim, as teorias da conspiração muitas vezes são configuradas estrategicamente para a mobilização social. Embora alguns de seus promotores possam parecer lunáticos, muitos dos intelectuais orgânicos por trás desses movimentos têm um plano claro. Não são simplesmente "idiotas". Como você mencionou, a imprensa alemã se refere a Curtis Yarvin como o "Maquiavel de Silicon Valley", o que indica que ele não é apenas um teórico marginal, mas alguém com uma agenda bem articulada e capaz de influenciar as elites intelectuais e políticas.
A questão central, como você bem apontou, é que a visão tradicional de que o neonazista é apenas um "matão com botas grandes" é uma simplificação que não reflete toda a complexidade do movimento. Os alemães, com sua experiência histórica, têm uma taxonomia mais sofisticada para isso. Eles sabem que há duas faces do nazismo: os "nazistas de botas", os violentos, que atuam nas ruas e se identificam abertamente com o extremismo, e os "nazistas de gravata", que operam de maneira mais sutil, nos bastidores, influenciando a política e as ideias de maneira mais estratégica. Esses últimos têm uma agenda intelectual bem definida e, como você disse, embora sejam um grupo menor, têm ganhado uma tração considerável, especialmente nos círculos de poder nos Estados Unidos.
J.D. Vance, que você mencionou, é um exemplo claro de como esse pensamento tem se infiltrado nas esferas mais altas da política. Ele tem o apoio de Silicon Valley por suas posições contra a China e, ao mesmo tempo, está cada vez mais alinhado com correntes de pensamento que flertam com ideias de extrema-direita, incluindo o nacionalismo branco e a xenofobia. Ele pode até se tornar vice-presidente, o que indica o quão longe essas ideias podem chegar no mainstream político dos EUA.
Esse fenômeno é ainda mais complexo porque, ao contrário do que se pensava anteriormente, essas ideias não se limitam a figuras marginais ou violentas, mas se espalham entre a elite intelectual e tecnológica, que as utiliza como ferramentas para moldar a sociedade e a política de acordo com seus próprios interesses. O fato de figuras como Yarvin ou Vance terem influência dentro de círculos de poder nos Estados Unidos demonstra que essas correntes de pensamento, mesmo nas suas versões mais radicais, têm sido capazes de penetrar nas estruturas políticas e culturais de forma estratégica.
Sua última novela, Píldoras rojas, explora como o protagonista se depara com ideologias de extrema-direita através de sua obsessão por uma série de televisão altamente violenta. Como você descreveria o impacto das ficções que promovem os marcos da ultradireita nos Estados Unidos?
Embora minha novela seja uma obra de ficção, existe um certo tipo de pensamento nihilista próprio da cultura desses movimentos que eu observei na cultura da televisão e do cinema nos Estados Unidos. No entanto, na novela, eu queria ir além e me perguntar o que aconteceria se alguém com uma plataforma enorme, como uma série de televisão cult, usasse seu alcance para semear ideias de extrema-direita na população. Afinal, sabemos que nos EUA, alguns programas de televisão sobre temas policiais têm a função de legitimar certos usos da força.
Durante a guerra contra o terrorismo, foi transmitida uma série chamada 24 Horas, onde Kiefer Sutherland interpretava um agente que lutava contra terroristas. Como seu trabalho sempre o levava ao limite, ele frequentemente ignorava as responsabilidades éticas das forças policiais para proteger os americanos do perigo. Torturava suspeitos, quebrava as regras, e esse tipo de personagem fascina muitos americanos. Eles se atraem pela ideia de que, mesmo vestindo um uniforme, podem ser rebeldes, como cowboys na fronteira com o México, que não deixam ninguém dizer o que fazer ou como agir.
De certa forma, essa mentalidade é um dos principais veículos pelos quais o autoritarismo atrai os jovens americanos. Ela se apresenta de forma simples, prometendo uma suposta vida em liberdade. Dizem: "Eles querem te controlar, querem que você obedeça à mamãe, que você se autocensure." Assim, você se torna um rebelde, se alinha com figuras como Trump e se sente parte de um grupo "autêntico". Essa forma de autoritarismo, hierárquico em grau máximo, soube se apropriar do espírito radical e contracultural dos anos 60, como se todos estivessem pilotando sua própria Harley-Davidson, no estilo de Easy Rider, de Dennis Hopper.
É surpreendente como a direita conseguiu transformar e politizar algumas ideias da esquerda ao reconhecer que os fóruns online são espaços chave para a batalha cultural. Mas há um aspecto relativamente novo nesse fenômeno, especialmente se o compararmos com o fascismo do século passado: o papel da política de trolling. A direita criou subculturas digitais centradas no humor que se difundem de maneira constante e muito eficaz através de memes. Essa instrumentalização do humor gera reações afetivas que se traduzem em conexões emocionais com figuras como Donald Trump.
Absolutamente. Quando eu era adolescente, a cultura nazista se limitava a algumas poucas bandas de punk de cabeças raspadas que distribuíam panfletos com piadas racistas mal fotocopiadas. Mas com o auge da internet, surgiu uma cultura de extrema-direita muito mais complexa. E o que você menciona sobre o trolling é fundamental. Existe uma expressão que diz: "estou brincando, mas não estou brincando". É assim que as ideias da direita e o politicamente incorreto se infiltram no discurso público, deslocando o que se conhece como a janela de Overton. Esse fenômeno é especialmente visível entre as gerações mais jovens. Lembro de ter começado a observar o que acontecia nos fóruns do 4chan no início dos anos 2000, onde os adolescentes compartilhavam piadas carregadas de racismo. O humor nesses espaços estava profundamente impregnado de racismo. Eram lugares tóxicos, mas também havia certa criatividade cultural.
Em minha análise, adoto a perspectiva de um autor chamado Dale Beran, que escreveu um bom livro sobre o 4chan e o 8chan [atualmente conhecido como 8kun] (It Came from Something Awful: How a Toxic Troll Army Accidentally Memed Donald Trump into Office). Nesse livro, Beran situa a expansão das ideias conservadoras na internet no momento em que os usuários do 4chan, conhecidos como os “garotos loucos”, decidiram atacar o Stormfront, o site nazista mais relevante da época. Esse site representava uma extrema-direita de viés "tradicional", com seguidores que idolatravam Odin e admiravam Hitler; no geral, uma cultura reacionária, monótona e arcaica. Essencialmente, os usuários do 4chan conseguiram derrubar a página, impedindo a organização dessas correntes ideológicas. Como consequência, muitos conservadores começaram a levar a sério o impacto da cultura digital, compreendendo que esses fóruns eram, de fato, espaços estratégicos para a mobilização política.
A presença dos grupos de extrema-direita nos fóruns aumentou significativamente desde então. Nas eleições de 2016, surgiu o que se chamou de “trumpismo esotérico”, uma corrente que impulsionou uma intensa produção de memes, em sua maioria em apoio a uma imagem de Trump apresentada de forma irônica, mas que não era exatamente uma piada. Esse fenômeno se tornou um eixo central da campanha e da chamada batalha cultural. Para muitos jovens descontentes com a política, presos em empregos precários e relutantes em seguir as instruções das elites liberais, esses fóruns ofereciam um espaço atraente e libertador. Lá, eles podiam ser irreverentes, fantasiar sobre atos de violência contra seus inimigos, fazer piadas sobre bombardeios ou compartilhar piadas recorrentes sobre o general Pinochet e os helicópteros. Enquanto isso, fora desses círculos, as referências passavam despercebidas: muitos podiam identificar Hitler por seu bigode, mas não entendiam que uma imagem de um helicóptero sobrevoando o mar fazia referência ao Chile e à guerra suja. Esse tipo de códigos e referências foi um dos vetores que permitiu que essas ideias se infiltrassem no mainstream. [Isso é o que se conhece como “vernáculo de plataformas”, onde as pessoas que não participam de uma subcultura ou não conhecem as piadas ou não entendem seu significado não podem, portanto, participar.]
Depois, Trump chegou ao poder, e uma parte dessa cultura começou a se convencer de que, de alguma forma, havia conseguido levar seu candidato à presidência graças aos seus memes; fenômeno ao qual chamaram de "magia dos memes" e que adquiriu características quase religiosas, incorporando elementos como a numerologia: acreditavam que certas publicações nas redes sociais possuíam um poder transcendental. Esse é um elemento que tentei refletir em minha novela.
Lembro da noite das eleições de 2016. Eu estava sentado em um terraço de Brooklyn com um grupo de pessoas de ideologia liberal e classe acomodada, enquanto trabalhava em um artigo. Alguém mencionou que tinha um amigo no Comitê Nacional Democrata e garantiu que tudo daria certo. Enquanto eles acompanhavam as notícias, eu estava no 4chan, no famoso tópico "/pol/" (politicamente incorreto), onde eram postadas mensagens e memes a favor de Trump. Parecia que duas realidades paralelas se cruzavam: "/pol/" deixou de ser um espaço marginal para se tornar um ator chave da política dos Estados Unidos. Desde então, essa cultura não fez nada além de ganhar terreno no mainstream. Os adolescentes revoltados de 2004 agora têm 20 anos a mais, ocupam posições de poder e continuam sendo impulsionados por essa mesma cultura. Isso será evidente na nova administração: aqueles que cresceram nos primeiros anos dos 2000 serão os que assumirão o poder.
Quero falar sobre gerações porque, a meu ver, os conservadores entenderam muito bem como mobilizar os jovens. Aproveitaram o componente existencial das redes sociais para oferecer respostas às ansiedades, inseguranças e dilemas próprios da modernidade capitalista, construindo uma contracultura ao liberalismo. Esse fenômeno está refletido na filosofia crítica da "ilustração sombria", que ocupa um lugar central em Píldora vermelha e conseguiu uma influência sobre os jovens muito maior do que a dos meios de comunicação tradicionais.
Há aspectos estruturais inerentes à Internet que são fundamentais para entender essa mudança. O principal é o colapso do modelo publicitário que sustentava a estabilidade financeira dos grandes jornais, o que contribuiu para reduzir a influência dos meios de comunicação na opinião pública. Mesmo pessoas da minha geração, a Geração X, ainda recorrem às instituições tradicionais do liberalismo, como os jornais, ou às cadeias de televisão e emissoras de rádio das grandes empresas midiáticas para se informar.
Mas, ao mesmo tempo, a Internet revelou os vieses que as narrativas dos meios tradicionais possuem. Por exemplo, dias atrás houve um altercado em Amsterdã entre torcedores israelenses e torcedores marroquinos. Os meios tradicionais apresentaram uma narrativa uniforme, qualificando os últimos como responsáveis por ataques antissemitas ou pogroms. No entanto, omitiram detalhes-chave, como o fato de que o time Maccabi Tel Aviv tem antecedentes racistas, que seus torcedores estavam gritando "morte aos árabes", arrancando bandeiras palestinas e agredindo um taxista. Esse tipo de omissão dos meios tradicionais reforça a percepção de que há uma desinformação deliberada.
Se você for alguém com simpatia pelo jornalismo tradicional, poderia argumentar: "Sim, o problema está em alguns editores de opinião do Washington Post, mas também há jornalistas excelentes fazendo seu trabalho". E talvez você esteja certo, mas a narrativa que chega aos jovens, que dependem quase exclusivamente das redes sociais para se informar, é muito diferente. Para eles, o TikTok é sua única fonte de informação; nem sequer recorrem ao X (antigo Twitter). Em uma cultura dominada por vibes e vídeos curtos, é muito fácil para eles perceberem os meios tradicionais como ferramentas de classe a serviço de elites progressistas que estão perdendo relevância. O poder passou das antigas elites midiáticas para uma nova classe de elites tecnológicas e financeiras. Essa nova classe tem uma marcada tradição libertária, própria da costa oeste, o que torna seu enfoque especialmente sedutor para os jovens. Essa cultura se apresenta como a única autêntica e nova na sociedade moderna, embora a realidade seja muito mais complexa.
Por outro lado, a direita soube construir uma ecologia de podcasts, meios de comunicação e plataformas de informação perfeitamente adaptadas a esse novo ambiente digital. É verdade que existem podcasters de esquerda e muitas fontes online valiosas, mas uma das grandes questões nos Estados Unidos é: por que não há um podcaster de esquerda com o alcance de Joe Rogan? Rogan, um ex-comentarista de luta livre, se tornou uma figura enormemente influente. Acredito que esse é o novo campo de batalha no que poderíamos chamar de guerra da informação ou disputas ideológicas. E sim, a direita entendeu o conceito de hegemonia e o mobilizou de maneira muito mais eficaz.
Voltando à parte mais distópica que você menciona em sua novela, agora são grandes figuras da direita, como Elon Musk, quem controlam as principais plataformas. O que você acha da virada autoritária que o Vale do Silício deu? Nas eleições anteriores, a maioria dos CEOs se mostrava contrária a Trump — basta lembrar das caras fechadas naquela primeira reunião com Peter Thiel — e estavam mais alinhados com a abordagem progressista neoliberal de Hillary Clinton. Passar de apoiar os democratas a se alinhar com os republicanos evidencia algo que contradiz as ideias de Francis Fukuyama e outros ideólogos americanos da Guerra Fria: o mercado e a democracia não estão necessariamente vinculados. O curioso é que o elemento que parece separar esses dois conceitos é a tecnologia, tradicionalmente entendida como a base do progresso liberal.
Acredito que essa questão é especialmente relevante neste momento. Um investidor de tecnologia com quem conversei me garantiu que isso não é verdade, que o Vale do Silício não é de direita, e que são apenas alguns poucos executivos barulhentos, enquanto a maioria continua sendo democrata e liberal. Admito que não é um panorama homogêneo, mas também acredito que existe um componente ideológico muito forte em um setor como o tecnológico, composto principalmente por pessoas jovens. Isso não é algo novo. Meu primeiro trabalho sério foi na revista Wired, que funcionava como uma espécie de incubadora de ideias libertárias sobre tecnologia, vindas da Costa Oeste; um dos pilares ideológicos chave para entender a legitimação do Vale do Silício.
Quando consegui esse cargo, no começo nem entendia totalmente onde estava trabalhando, até que, de repente, compreendi. Essa experiência me deu uma visão precoce de uma ideologia libertária peculiar que misturava elementos da contracultura hippie com a desconfiança em relação ao governo típica da direita. No contexto americano, essa postura era abertamente hostil ao New Deal e a qualquer política industrial ou tentativa governamental de gerir a economia ou melhorar a sociedade. No entanto, esses tempos ficaram para trás. Os jovens que hoje trabalham na indústria tecnológica, em sua maioria entre 30 e 40 anos, sustentam uma narrativa intimamente ligada ao mundo das criptomoedas e à ideia de uma moeda não controlada nem subordinada aos governos. Eles até se veem como pessoas que buscam escapar do Estado; acreditam que construir plataformas tecnológicas é, essencialmente, uma forma de se libertar das estruturas governamentais do século XX.
Neste setor, agora dominante, ninguém parece ter um interesse real na ideia de justiça social. Eles a percebem como uma forma de controle centralizado do governo sobre o que as pessoas dizem e fazem. Não sentem nenhuma conexão com os direitos civis, a erradicação da pobreza ou qualquer outro conceito tipicamente associado à esquerda no período pós-guerra. Esse libertarianismo agora está se alinhando com Trump, em parte porque existem incentivos econômicos para isso. Esse apoio, portanto, tem um componente cínico: veem Trump como um veículo para enfraquecer o Estado, a ferramenta política que, segundo eles, mais pode contribuir para danificá-lo.
Essa é, de fato, a narrativa que as corporações tecnológicas usaram para legitimar seu modelo: argumentar que o Estado é ineficiente e incapaz de resolver os problemas gerados pelo capitalismo e, portanto, inadequado para estabilizar a economia.
O mais atraente para as corporações tecnológicas americanas é a ideia de desmontar as agências do governo federal e reduzir drasticamente sua capacidade de implementar políticas públicas. Nos últimos anos, em parte devido à globalização, temos observado como os organismos estatais enfrentam sérias limitações para controlar assuntos nacionais e até mesmo para impor algum tipo de ordem diante de líderes rebeldes que fomentam a insurreição. Bolsonaro, por exemplo, foi inabilitado politicamente no Brasil por 30 anos, enquanto Trump foi reeleito, impulsionando uma agenda clara para continuar com o desmantelamento do governo federal, como ilustra a nomeação do próprio Elon Musk. De sua perspectiva, isso é algo inequivocamente positivo.
Esse cenário é interessante porque coloca os liberais americanos em uma posição defensiva: acabam adotando um papel conservador ao querer preservar um Estado grande — muitas vezes repressivo — porque o consideram o único mecanismo viável para implementar políticas redistributivas. Mas os libertários de direita são fundamentalistas do mercado. Acreditam firmemente que a "destruição criativa" do capitalismo sempre gera bons resultados. Isso nos devolve ao ponto inicial da conversa: a sociobiologia e a eugenia. Afinal, trata-se de uma visão darwinista em que apenas os fortes sobrevivem e prosperam, enquanto os fracos falham. Para eles, essa é uma posição ética: as melhores ideias prevalecem porque são adotadas, enquanto as falhas desaparecem.
Atualmente, existe um utopismo tecnológico cada vez mais influente, que se apresenta como um espaço crucial de disputa. Esse utopismo conecta ideias como a visão de Elon Musk de tornar os humanos uma “espécie multiplanetária” com propostas eugenistas sobre a otimização humana e diferentes correntes de trans-humanismo. Também há uma nova consciência sobre a estabilização da população mundial, mas acompanhada de preocupações entre certos setores da direita americana sobre quais grupos da população estão tendo mais filhos. Segundo eles, os grupos que estão crescendo demograficamente não são "os corretos". Daí surge uma obsessão com o coeficiente intelectual, baseada na ideia de que otimizar a humanidade exige que pessoas "inteligentes" tenham filhos entre si para gerar descendência "superior". No entanto, a realidade mostra que os que têm mais filhos não pertencem aos grupos que eles consideram de alto coeficiente intelectual. Isso lembra o imperativo nazista dos anos 30 de fomentar a natalidade entre certos grupos, algo que figuras como Musk parecem promover de uma maneira mais contemporânea.
Nesse contexto, combina-se um conjunto muito poderoso de elementos: a ideia de que a imortalidade é possível, um trans-humanismo que busca superar os limites naturais por meio da tecnologia e a promessa de escapar de um mundo moderno quebrado. Essa narrativa prometeica é extremamente sedutora para os jovens. Poderíamos dizer muitas coisas sobre por que essa visão não é uma representação objetiva do mundo e por que, na realidade, ela é um veículo para que uma pequena elite avance seus interesses. No entanto, acredito que essa seja a parte mais propositiva da política que está sendo promovida pela direita do Vale do Silício: uma visão trans-humanista.
Nesse debate, acho que é crucial destacar o que você mencionou sobre a dimensão criativa. Uma das bases do pensamento socialista defendidas por Raymond Williams e Stuart Hall é a capacidade de imaginar e transformar o mundo, às vezes por meio de narrativas. Hoje, nos deparamos com uma criatividade guiada pelo mercado: as pessoas jovens, ao expressar suas identidades ou se relacionar socialmente, o fazem por meio de uma interface cultural construída por redes sociais cada vez mais autoritárias. Essas plataformas transformam toda experiência em mercadoria, limitando seu potencial emancipador. Assim, a criatividade não apenas fica restringida, mas também politizada pela extrema-direita, que a utiliza como ferramenta para desmantelar qualquer vestígio de liberdade coletiva, individualizando e radicalizando as pessoas. A isso se acrescenta outra camada de complexidade, e aqui você tem sido muito crítico no campo da literatura: a inteligência artificial está usando os dados gerados por essas interações pessoais para treinar modelos que destroem a criatividade.
Sim, acho que devemos analisar a IA sob uma perspectiva de economia política, já que ela representa uma intensificação dos processos do capitalismo de plataforma. A apropriação do vasto "comum informativo" e sua exploração por meio do uso de dados para treinar modelos em larga escala implica que, no futuro, a criatividade ocorrerá completamente dentro de uma matriz controlada por quem possuir esses modelos. Isso vai além de criar imagens interessantes e publicá-las em redes sociais como as da Meta; está relacionado com a criação de estruturas de pensamento. O acesso à cultura, em todos os seus níveis, é mediado por um modelo corporativo. No entanto, não acho que a "negação" seja uma opção; é preciso enfrentar essa realidade.
Outro aspecto destrutivo da IA é seu consumo energético. Tenho trabalhado com uma pesquisadora chamada Kate Crawford, que me contou recentemente que o consumo energético estimado da IA equivale ao de todo o Japão. É como se tivéssemos adicionado uma nova economia industrial ao consumo energético global. Isso arruinou toda a agenda verde e os esforços contra as mudanças climáticas dos últimos anos. Agora estamos imersos em uma nova corrida armamentista, mais adaptada aos objetivos do capital, focada em expandir esses modelos cada vez mais.
Um dos principais expoentes desta abordagem é Eric Schmidt, o antigo CEO da Google, que ocupa agora um papel fundamental na digitalização do Pentágono no quadro da Guerra Fria 2.0.
Na verdade, Schmidt afirmou recentemente que não iremos parar o desenvolvimento destes modelos apesar do seu elevado consumo de energia. Segundo ele, se continuarmos nesse caminho, não conseguiremos limitar o aumento médio da temperatura global a menos de 2ºC. Portanto, a sua proposta é acelerar ainda mais o desenvolvimento digital e confiar que os modelos tecnológicos resolverão o problema por si próprios.
Do ponto de vista político, os grandes executivos do mundo tecnológico conseguiram construir um duplo discurso de eficácia impressionante. Por um lado, argumentam que esta tecnologia é tão crucial como a vida humana e que a utilização indevida pode significar o fim da nossa civilização. Por outro lado, insistem que só eles compreendem verdadeiramente como funciona, pelo que qualquer tentativa de regulamentação seria inútil ou contraproducente. Agora, estão a surgir propostas mais elaboradas relativamente ao controlo governamental dos chamados modelos de fronteira, uma vez que estamos num contexto onde apenas 4 ou 5 empresas em todo o mundo têm os recursos financeiros necessários para desenvolver estas tecnologias de próxima geração. Isto significa que todos os aspectos das nossas vidas dependerão destas grandes corporações.
O impacto será transformador tanto no local de trabalho como nas forças armadas. Embora se fale muito sobre avanços criativos em imagens e palavras, não está sendo dada atenção suficiente às armas autônomas e às capacidades de vigilância possibilitadas pela IA. Se o objetivo é controlar a população, hoje existem ferramentas que superam em muito qualquer tecnologia desenvolvida em épocas anteriores. Basta lembrar que o Holocausto levado a cabo pelos nazistas no século passado utilizou máquinas e sistemas ferroviários IBM. As tecnologias contemporâneas são muito mais avançadas do que as de então.
Em seus trabalhos, você costuma usar narrativas pessoais para abordar questões sociais. Como você consegue equilibrar a escrita de ficção com textos jornalísticos de intervenção? E como criar espaços narrativos que contribuam para promover uma agenda política alternativa?
A ficção não é um lugar para apresentar argumentos diretos ou tentar persuadir explicitamente o leitor. É necessário dar um passo atrás e construir situações humanas complexas sem resolvê-las totalmente. Trata-se de encenar conflitos e evitar cair em clichês simplistas, como o típico “capitalista malvado de cartola”. No entanto, acredito que, para ser mais eficaz, a esquerda deve enfrentar corajosamente os desafios que lhe são apresentados. Não basta desqualificar a estratégia conservadora nas redes como resultado de pessoas irracionais, nem ignorar as suas ideias racistas sobre biologia e cultura por medo de que o simples facto de lhes prestar atenção as legitime.
Acredito que existem múltiplas formas de confrontar estas narrativas, desmantelá-las e propor uma visão alternativa do mundo. Para isso, é fundamental entrar em combate ideológico com aqueles que o acusam de censurar ou evitar certas ideias porque não se enquadram nas categorias tradicionais da esquerda. E, honestamente, acho que a esquerda tem respostas melhores. Nos Estados Unidos, por exemplo, muitos dos jovens que votaram em Trump teriam votado em Bernie Sanders. O que procuram é escapar de um status quo neoliberal, e o populismo de direita ofereceu-lhes essa saída. Não há razão para que uma agenda política bem articulada não possa atrair de volta muitos deles.
O verdadeiro obstáculo é a elite do Partido Democrata, que continua a culpar a esquerda pelos seus fracassos, mesmo tendo feito todo o possível para retirá-la da sua campanha eleitoral.
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"Nos EUA há dois tipos de nazistas: os que usam botas e os que usam gravata". Entrevista com Hari Kunzru - Instituto Humanitas Unisinos - IHU