11 Fevereiro 2025
Em entrevista, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética sustenta: perseguição à pesquisadora é a ponta do iceberg. Conselho de Medicina desvia-se de suas funções, partidariza-se e, por seu elitismo, ataca a própria Saúde Pública
A entrevista é de Gabriel Brito, publicada por Outra Manhã e reproduzida por Outras Palavras, 07-02-2025.
A insistência do Conselho Federal de Medicina (CFM) em praticar assédio judicial contra a médica sanitarista Ligia Bahia, figura destacada nas lutas pelo SUS, gerou repulsa na comunidade científica brasileira. Cansadas do negacionismo, entidades e grupos de destaque na produção acadêmica e defesa da Saúde Pública levantaram-se em solidariedade à professora da UFRJ, e repudiaram de forma enérgica a tentativa de silenciamento praticada pelo órgão contra Lígia.
Mas aos poucos esta reação ganha novos desdobramentos. A crítica ao CFM já se estende à sabotagem que o conselho pratica contra medidas voltadas a garantir o Direito à Saúde e ao obscurantismo e elitismo que marcam sua atuação. É o que ficou claro na entrevista que Elda Bussinger, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) concedeu a Outra Saúde nesta quinta-feira (6/2), no âmbito do programa Outra Saúde.
Vale recordar os antecedentes. No ano passado, o CFM abriu um processo contra Ligia, por uma entrevista concedida ao canal ICL Notícias em 2024. Ela fez críticas à entidade por suas posições durante a pandemia de covid no Brasil, em especial no que dizia respeito aos ataques do Conselho à vacinação e ao incentivo do uso de cloroquina. O CFM exige retratação e uma indenização de R$ 100 mil, além de que seja proibida de fazer novas manifestações “ofensivas”.
“Não é a professora Lígia que está sendo processada. Quem está sendo processado são todos os cientistas, todos os pesquisadores sérios e comprometidos. Se nós pensarmos, todas as vezes que os projetos políticos totalitários chegaram ao poder, os ataques principais foram às universidades e seu corpo de cientistas, pesquisadores, professores, à filosofia, à política, à imprensa e às artes”, alfinetou Elda.
Em sua entrevista, ela foi implacável com o CFM, uma autarquia de Estado, que hoje cumpre papel de movimento social de ultradireita. Destacou que o conselho tem se dedicado muito mais a uma agenda política específica do que às suas funções reais. Tal situação ficou clara e reforçada nas recentes eleições do órgão, amplamente contestadas por acusações de fraude. Hoje, o CFM é controlado por bolsonaristas empedernidos – alguns deles inclusive corresponsáveis pela gestão catastrófica do governo anterior na pandemia de covid.
“O mundo inteiro, os principais órgãos de saúde e os maiores pesquisadores do mundo trabalharam em um sentido e o Conselho Federal de Medicina foi em outro. Isso foi gravíssimo. O órgão está claramente a serviço de um projeto político da extrema-direita, um projeto político de poder totalitário”, afirmou Elda.
Em 2024, a autarquia causou alvoroço outra vez, ao estabelecer portaria que proibia médicos de realizar assistolia fetal (procedimento abortivo) em gestações de mais de 22 semanas. Trata-se de uma ação ilegal, por tentar atropelar a legislação vigente e passar por cima da autoridade do Ministério da Saúde, ente de fato responsável pela regulação do direito a serviços de saúde previstos em lei. Sua iniciativa embasou o PL 1904, que ficou conhecido como PL do Estupro e provocou um levante quase instantâneo de mulheres em junho de 2024.
Ao Outra Manhã, Elda Bussinguer defendeu a importância da existência de um órgão regulador do exercício profissional: “O CFM tem um papel relevantíssimo na sociedade brasileira. Quando, por exemplo, fiscaliza o exercício médico, protege a sociedade contra médicos que não respeitam a eficácia científica. No entanto, não podemos nos esquecer que os conselhos também são órgãos políticos, são locais de exercício de poder. É uma autarquia e precisa estar sob fiscalização”.
A discussão também passa pelo fato de o órgão ter se afastado de suas funções reais de participante e formulador de políticas públicas, tanto em favor da categoria médica como do direito à saúde e defesa do SUS. Na prática, o órgão subverte sua atribuição legal de participar do Conselho Nacional de Saúde e do Conselho Nacional de Residência Médica.
“Quando o CFM se retira do Conselho Nacional de Saúde, está dizendo que não interessa o Estado, não interessa a Constituição. Ora, se ele se nega a participar do processo de construção coletiva, está dizendo e assumindo uma posição totalitária, de exceção, fascista. Precisamos ter cuidado com instituições que trabalham contra leis”, alertou Elda.
Nas últimas semanas, mais uma vez o órgão fez tabelas com políticos de extrema-direita ao manifestar apoio ao PL 2294/24, apresentado pelo senador astronauta Marcos Pontes, o ex-ministro da Ciência de Bolsonaro. O projeto visa criar o “Exame de Proficiência”, uma prova hoje inexistente que serviria para validar o direito ao exercício da profissão. A medida não tem apoio da comunidade científica e é vista como manobra para abrir um mercado de “cursinhos” voltados a preparar profissionais para passar na prova.
“Ora, o CFM sai do Conselho de Residência Médica e agora quer avaliar os médicos? Ele precisa fortalecer as residências médicas, fortalecer a educação médica no país. O CFM não precisa ficar construindo espaços para o exercício do seu poder. Ele precisa exercer um poder controlado pelo seu mundo público”, criticou Bussinger.
Além disso, diante do obscurantismo e alinhamentos políticos do órgão, a iniciativa leva a desconfianças ainda maiores. Para alguns críticos, é uma maneira de “escolher” quem pode ou não exercer a profissão, num contexto onde a medicina passa por uma rápida mudança de perfil socioeconômico. Como demonstrado na Demografia Médica, pesquisa organizada pelo médico Mário Scheffer, o Brasil terá praticamente o dobro de profissionais daqui dez anos e uma inédita maioria feminina.
Para Elda, trata-se de um movimento nefasto de cercear o acesso à profissão. Isso limitaria a expansão do SUS, outro alvo histórico da direita neoliberal no país, e a Atenção Primária, base do sistema de saúde brasileiro e do Programa Mais Médicos.
“Nós temos um empresariamento da saúde. O CFM também tem interesse nele. E quando nós temos uma entrada enorme das classes economicamente menos favorecidas na profissão médica, temos uma popularização da medicina. É fundamentalmente reserva de mercado, de manutenção de uma elite que precisa ser desmontada, uma elite que não tem mais sentido numa sociedade tão global, tão plural e que queremos tão democrática”, arrematou.