Caso Prevent Senior é um capítulo de horror e transgressão ética na história da gestão em saúde no Brasil. Entrevista especial com Fernando Hellmann

Segundo o pesquisador, para compreender esse capítulo é preciso olhar com atenção a relação da operadora com o bolsonarismo e a lógica que trata a saúde como negócio que visa o lucro

Foto: Guilherme Gandolfi | Levante

Por: João Vitor Santos | 14 Janeiro 2022

 

Quando 2021 já se aproximava do final, nesse segundo ano da pandemia no Brasil, revelou-se um dos maiores escândalos em gestão de saúde no país: o caso Prevent Senior. “O caso da pesquisa da Prevent Senior é um triste capítulo de uma história recente de transgressão da ética e da integridade da pesquisa científica no Brasil”, aponta Fernando Hellmann, doutor em Saúde Coletiva e que tem se dedicado a pesquisar o tema. Pelo seu relato, é possível concluir que o caso beira o horror, uma vez que a operadora chegou a indicar cuidados paliativos para pacientes que, meses depois, curados, depuseram na CPI da Pandemia no Senado Federal. “O que a Prevent chamou de ‘cuidados paliativos’ me parece muito mais como uma espécie de eutanásia passiva, já que o termo ‘cuidados paliativos’ não significa retirar certos cuidados de saúde e administrar uma bomba de morfina”, esclarece.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Hellmann revela que “o tratamento apresentado pela Prevent Senior como ‘cuidados paliativos’ também tinha como objetivo, dentre outros, racionar recursos, nitidamente um leito na UTI”. Ou seja, não manter esse paciente em UTI era uma economia para a empresa. Isso porque a Prevent Senior tinha como mercado a atenção aos idosos, que são os que mais requerem cuidados em saúde. Logo, para assegurar o lucro é preciso “investir menos” na recuperação desses pacientes. “A Agência Nacional de Saúde – ANS, a qual fiscaliza os planos de saúde privados, deveria ter uma barreira nesse tipo de negócio. Mas o que parece é que a ANS se omitiu frente a esse caso”, aponta o pesquisador.

 

E tudo isso além da insistência em administrar o chamado kit Covid, de supostos tratamentos precoces à doença. Segundo Hellmann, a tal pesquisa da Prevent Senior que embasava esse uso era “de baixa qualidade científica, não sendo capaz de produzir resultados válidos, o que configura, por si só, falta de ética. É, na verdade, uma aula de como não se realizar pesquisa científica”. E por que teriam ido tão longe? Segundo o pesquisador, para responder é preciso compreender a relação da empresa com o bolsonarismo e o Governo Federal. “Para a Prevent Senior, o tratamento precoce foi uma jogada para manter os lucros da empresa, e para o governo federal foi uma medida populista para não apoiar o distanciamento social, contribuindo para acelerar com os péssimos indicadores de mortalidade por Covid-19 no Brasil”, aponta.

 

Por isso, Fernando Hellmann considera que esse caso não pode ser esquecido e deve ser acompanhado para que os envolvidos sejam punidos e evitar que situações semelhantes se repitam. “O caso Prevent Senior e a gestão da pandemia no Brasil são uma tragédia anunciada já descrita nos anais da história”, conclui.

 

Fernando Hellmann (Foto: Arquivo pessoal)

Fernando Hellmann é doutor em Saúde Coletiva e professor no Departamento de Saúde Pública e no Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Ainda atua como professor visitante na Escola de Saúde Pública da Universidade de Montreal, Canadá. Também é coordenador-adjunto do Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – O que experiência da pandemia de Covid-19 nos lega enquanto país?

 

Fernando Hellmann – O Brasil experimentou a pandemia de Covid-19 em um contexto de desigualdades sociais. A situação de pobreza e os aspectos étnico-raciais foram significativamente associadas à mortalidade por Covid-19 no país, somado à ineficácia das ações tomadas principalmente pelo Poder Executivo federal. Dentre os principais motivos apontados como causas desse caótico cenário se sobressaem o baixo desempenho dos tomadores de decisão na gestão da pandemia, muitas vezes com discursos impregnados pela ideia de imunidade de “rebanho” natural, de tratamento precoce e de outras artimanhas saturadas de negacionismo científico.

E o que aprender com essa trágica experiência? Com muito luto, a pandemia de Covid-19 no Brasil tem demonstrado que as mais de 620 mil mortes são mais que fenômenos biológicos, são também processos sociais, éticos e políticos. Portanto, a gestão da pandemia requer olhares das múltiplas possibilidades de se fazer ciência, desde as ciências biológicas e da saúde às humanas e sociais aplicadas, para que tomadas de decisão frente à pandemia sejam razoáveis, inclusivas, transparentes, responsivas às necessidades e responsabilizáveis àqueles que contribuem para piorar o quadro da pandemia.

Se governar é fazer escolhas, as escolhas negacionistas foram e continuam sendo determinantes da trágica dinâmica da pandemia de Covid-19 no Brasil. Nomear aqueles que contribuíram para esta fúnebre experiência, tal como o Governo Federal, os propagadores de fake news, as operadoras de saúde como a Prevent Senior e até mesmo a atuação omissa do Conselho Federal de Medicina – CFM, dentre outros, e responsabilizá-los deveria ser um legado para que na próxima pandemia não se repita uma gestão nefasta como esta.

 

 

CPI

A CPI da Covid vai neste caminho de identificar responsáveis. Resta saber quais serão as implicações das apurações dos temas listados no relatório final pelos órgãos responsáveis, como o Ministério Público Federal. É preciso aprender com as experiências vivenciadas, é preciso fortalecer as instituições públicas, fortalecer a ciência e a ética em pesquisa para que as tomadas de decisões que afetam a vida de milhares de pessoas sejam prudentes.

 

 

IHU – Como a ideia de ciência, desde as manifestações de defesa até a negação, foi ressignificada na pandemia?

 

Fernando Hellmann – Faz-se necessário explicar que tipo de ciência estamos falando, de qual epistemologia estamos tratando e principalmente prestar atenção a quem usa o discurso científico; com qual intuito, onde, como e quando o usam. O contexto em que se usa a ciência é muito importante. Mesmo aqueles que podemos classificar como negacionistas tentam revestir de discurso científico suas práticas, embora de modo retórico e falacioso, portanto, pseudocientífico. Ou seja, basta se pautar na arte da eloquência que seus argumentos pseudocientíficos passam a ter uma roupagem científica.

Também a internet tem um papel importante, pois ela não só democratizou a informação como também permitiu ofuscar as fronteiras entre fatos e opiniões. E essa equiparação de argumentos racionais com opiniões sem fundamento contribuiu para negar a realidade dolorosa dos fatos vivenciados nesta pandemia. Tomamos como exemplo a insistente defesa do uso da cloroquina para tratamento e prevenção contra a Covid-19, como uma clara manifestação do negacionismo científico que caracteriza a gestão da pandemia no Brasil e no mundo.

O uso político e mercadológico da cloroquina no Brasil se dá no âmbito do negacionismo científico, que desconsidera questões básicas de validação científica, tal como se caracterizam os discursos de Bolsonaro e de seus aliados, como a própria Prevent Senior. Inúmeras falhas metodológicas, éticas e de integridade científica pautaram muitos dos estudos com a Cloroquina/Hidroxicloroquina, seja defendendo ou até mesmo rechaçando seu uso na Covid-19.

Esses estudos revelam os problemas relacionados à produção do conhecimento científico na atualidade, a qual está muitas vezes mais ligada aos valores comerciais e de produtividade do que de responsabilidade social, mais relacionadas a valores e ganhos privados do que bens públicos e coletivos. As pandemias nos mostram que precisamos de ações coletivas para lidar com problemas que são coletivos. Portanto é preciso pensar ciência com responsabilidade social, com constitutivas colaborativas, transparentes, sustentáveis. O movimento da ciência aberta propõe mudanças estruturais que vão neste sentido.

 

 

IHU – O que mais lhe impressiona no caso evolvendo a Prevent Senior na pandemia?

 

Fernando Hellmann – O que mais me impressiona neste caso é a explícita forma de tomar a saúde alheia como mercadoria e fonte de lucro. Convém lembrar que, no início da pandemia no Brasil, já em março de 2020, a cidade de São Paulo registrava cinco mortes por Covid-19, todas relacionadas a pacientes atendidos nas unidades da rede Prevent Senior. A empresa havia sido acusada de ocultar o primeiro caso de Covid-19 no Brasil e foi investigada pela Prefeitura de São Paulo por superlotação, desorganização no fluxo do atendimento e insuficiência de funcionários.

Em menos de um mês, a empresa que antes figurava na mídia pela má gestão e altas taxas de mortalidade, passou a ser retratada como caso de sucesso pela diminuição das taxas de mortalidade e de internação hospitalar. Para tanto, a empresa surfou na onda da hidroxicloroquina para o tratamento da Covid-19, naquele momento sem publicações contundentes em revistas científicas, porém já com estudos anedóticos amplamente divulgados nas mídias sociais de grandes empresários, como Elon Musk, e defendida por mídias e governos conservadores da ultradireita, como a Rede Fox e Trump, nos EUA, e a Jovem Pan e Bolsonaro, no Brasil.

 

 

 

Para diminuir as internações hospitalares, a operadora de saúde Prevent Senior investiu num possível tratamento precoce. Para isso, a empresa orquestrou uma pesquisa denominada “Tratamento empírico com hidroxicloroquina e azitromicina para casos suspeitos de Covid-19 seguido por telemedicina”. O estudo concluiu, de maneira equivocada, que o tratamento precoce com hidroxicloroquina e a azitromicina na suspeita de infecção por Covid-19 reduzia a necessidade de internação. O estudo, que apresentou várias falhas metodológicas, éticas e de integridade científica, serviu para mudar a imagem da empresa e criar falsa esperança nos segurados da operadora, de modo que estes se sentissem tratados preventivamente e não buscassem cuidados médicos no tempo oportuno.

 

 

Kit Covid

 

O estudo também permitiu sustentar discursos - daqueles que defendiam esses remédios - sobre o tratamento precoce com medicamentos ineficazes, denominado de “kit Covid”. Esse foi o discurso do Governo Federal, de algumas operadoras de saúde, como a Prevent Senior ou mesmo a Unimed; esta última, como aconteceu no município de Brusque – SC, distribuiu o tal kit em caixas decoradas com fitas de cetim verde. Um absurdo.

 

 

Transgressão ética

 

O caso da pesquisa da Prevent Senior é um triste capítulo de uma história recente de transgressão da ética e da integridade da pesquisa científica no Brasil. Utilizaram-se de um grupo social de maior vulnerabilidade (idosos e pacientes que dependiam de profissionais de saúde para se recuperar) que foi submetido a medicamentos que potencialmente poderiam agravar seu estado de saúde. Isso só gerou lucro para a indústria dos medicamentos, ao mesmo tempo que colocou em risco uma parcela da população que fez uso deste artifício e, ao acreditar que estava sendo tratada precocemente contra a Covid-19, deixou de procurar ajuda em tempo oportuno.

 

IHU – Como analisas a pesquisa realizada pela Prevent Senior com uso de hidroxicloroquina e azitromicina dos pontos de vista teórico e metodológico?

 

Fernando Hellmann – A pesquisa realizada pela Prevent Senior, que ocorreu entre os dias 26 de março e 04 de abril de 2020, pautava-se em uma metodologia que consistia na avaliação, por telemedicina, de pacientes ambulatoriais com suspeita de Covid-19 seguida da prescrição de hidroxicloroquina e azitromicina. Participaram da pesquisa 636 pacientes sintomáticos; 412 iniciaram tratamento com hidroxicloroquina e azitromicina e 224 recusaram-se a tomar os medicamentos e formaram o grupo controle.

Os resultados foram relatados como muito promissores e apontaram que a necessidade de hospitalização foi de 1,9% no grupo de tratamento e 5,4% no grupo de controle (2,8 vezes maior). Entre os que iniciaram o tratamento antes e após o sétimo dia de sintomas, a necessidade de internação foi de 1,17% e 3,2%, respectivamente. Com isso, o estudo concluiu equivocadamente que o tratamento precoce com hidroxicloroquina e azitromicina na suspeita de infecção por Covid-19 reduzia a necessidade de internação.

Conforme denúncias feitas à CPI da Covid no Senado Federal por ex-médicos da Prevent Senior, várias falhas éticas em pesquisa e integridade científica ocorreram. Do ponto de vista teórico-metodológico, a pesquisa realizada pela empresa é de baixa qualidade científica, não sendo capaz de produzir resultados válidos, o que configura, por si só, falta de ética. É, na verdade, uma aula de como não se realizar pesquisa científica.

 

Participação sem consentimento e mortes ocultadas

 

O estudo não foi randomizado e tampouco controlado por placebo, o que era possível de ser feito já que não havia nenhum medicamento comprovadamente eficaz para tratar ou prevenir a Covid-19. A falta de cegamento da pesquisa se soma ao problema de que o grupo controle foi composto por pacientes que supostamente se recusaram a fazer o então denominado tratamento preventivo. Mortes do grupo que fez uso dos medicamentos em teste focam ocultadas.

Outra falha metodológica grave é o desfecho primário do estudo, que foi a necessidade de hospitalização dos pacientes com sintomas de Covid-19 avaliados por consulta remota (telemedicina). Porém, os pesquisadores não confirmaram o diagnóstico para Covid-19 de todos os participantes, sendo os pacientes recrutados no estudo idosos com sintomas semelhantes aos da gripe, o que invalidaria a investigação. Ainda que alguns pacientes tenham passado por tomografias de tórax, conforme relata o estudo, elas foram feitas de modo não padronizado e não mencionam se esses exames foram obtidos antes, durante ou depois da pesquisa. Soma-se ao fato de que a divulgação científica foi feita em uma coletiva de imprensa e não em revistas e jornais indexados revisados por pares.

 

IHU – Especificamente sob o ponto de vista ético, quais as falhas na pesquisa da Prevent Senior? E como evitar que pesquisas com seres humanos incorram nesses problemas éticos?

 

Fernando Hellmann – Uma breve análise da ética e da integridade científica dessa pesquisa conduzida pela Prevent Senior põe em evidência uma fraude científica e antiética ao revelar as inadequações do estudo às normas de ética em pesquisas nacionais e internacionais, tais como o Código de Nuremberg, a Declaração de Helsinque, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos da UNESCO e as legislações brasileiras, notadamente a Resolução CNS 466/2012.

Dentre os problemas identificados, à luz de tais normativas, destacam-se:

Educação forte em ética e integridade científica nas universidades, fortalecimento do Sistema CEP/CONEP, também sanções e punições claras aos infratores talvez sejam algumas das medidas que possam minimizar que pesquisas com seres humanos incorram em problemas éticos.

 

IHU – Essa pesquisa levou sempre em conta a necessidade de um suposto tratamento precoce contra a Covid-19. No que consiste um tratamento precoce e por que o caso da Prevent Senior não pode ser enquadrado assim?

 

Fernando Hellmann – O estudo da Prevent Senior concluiu, de forma equivocada e pouco científica, que o tratamento precoce com hidroxicloroquina e azitromicina na suspeita de infecção por Covid-19 reduzia a necessidade de internação. Esses medicamentos seriam os principais do chamado kit Covid, o qual poderia ter outras drogas, tais como ivermectina, zinco e vitaminas. Quem acompanhou a CPI da Covid ou leu seu relatório final percebe que, em muitos depoimentos, o uso dos termos “tratamento preventivo” e “tratamento precoce” foram usados como sinônimo. O próprio diretor-executivo da Prevent Senior, Pedro Benedito, em vários momentos misturou os conceitos.

 

 

Conforme descreve o relatório, o tratamento preventivo é quando se usa os medicamentos do kit Covid antes da doença se instalar para evitar o contágio ou minimizar consequências da doença se esta se manifestar. Tratamento precoce seria o utilizado nos primeiros dias após o contágio da Covid-19. Consta no relatório da CPI da Covid que a Prevent Senior cunhou, inclusive, a expressão “Golden Day”, se referindo ao melhor dia para o início da utilização do kit Covid.

Contudo, não existe até o presente momento nem tratamento medicamentoso precoce nem preventivo comprovadamente científico. O que existe, em termos de prevenção, são medidas não farmacológicas como o uso de máscara, isolamento e distanciamento social. Me parece que esse estudo falacioso orquestrado pela Prevent Senior teve objetivos espúrios, como o de manter a lucratividade da empresa.

 

 

IHU – A Prevent Senior, enquanto operadora de saúde, havia tomado grande parte do mercado. Mas que lugar é esse? Como compreender a ascensão dessa operadora?

 

Fernando Hellmann – A Prevent Senior é um caso peculiar de operadora de saúde baseada em medicina de grupo. Eles apostaram na população idosa, justamente aquela que tem maior prevalências de doenças e dá menos lucro para as seguradoras de saúde. Logo, o modelo de negócio da Prevent Senior, de prestar assistência pré-paga só para idosos, é logicamente inviável. Mas para que fosse possível viabilizar os negócios, a operadora avançou no racionamento de recursos.

O chamado kit Covid é uma dessas artimanhas de racionamento, fazendo com que a busca por internação pelos seus 550 mil associados fosse minimizada por “tratar” preventivamente ou precocemente. Convém ressaltar que a Prevent Senior possui médicos próprios, unidades hospitalares próprias, de modo que é a empresa que autoriza ou não os procedimentos médicos complexos e caros. Neste caso, muitas vezes os interesses do lucro se sobrepõem às necessidades reais do paciente. Há um claro conflito de interesses.

 

 

Podemos citar o exemplo de racionamento de recursos vislumbrado no emocionante depoimento de Tadeu Francisco de Andrade na CPI da Covid, em que ele afirmou que uma médica da empresa tentou convencer a família de que era hora de dar início aos “cuidados paliativos” pela falta de esperança de sobrevida do paciente. O que a Prevent chamou de “cuidados paliativos” me parece muito mais como uma espécie de eutanásia passiva, já que o termo “cuidados paliativos” não significa retirar certos cuidados de saúde e administrar uma bomba de morfina. Conforme Tadeu, se a família não tivesse exigido que o tratamento continuasse, ele poderia estar morto.

 

 

Neste caso, o tratamento apresentado pela Prevent Senior como “cuidados paliativos” também tinha como objetivo, dentre outros, racionar recursos, nitidamente um leito na UTI da empresa. Uma diária na UTI é algo muito caro. Sendo um modelo de negócio inviável, a Agência Nacional de Saúde – ANS, a qual fiscaliza os planos de saúde privados, deveria ter uma barreira nesse tipo de negócio. Mas o que parece é que a ANS se omitiu frente a esse caso.

 

 

IHU – O que o caso da Prevent Senior revela acerca da saúde pública no Brasil?

 

Fernando Hellmann – Este caso escancara o não cumprimento do Artigo 196 da Constituição Brasileira, que diz que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Convém ressaltar que cerca de 25% da população brasileira de 211 milhões de habitantes faz uso de planos de saúde. Portanto, o Brasil possui um grande mercado de saúde. Mas se somarmos a movimentação financeira deste mercado privado percebemos que eles são maiores que o próprio financiamento público do Ministério da Saúde. Portanto, como um país que tem um sistema universal de saúde e garante o direito à saúde como dever do Estado pode ter um orçamento público menor do que os gastos privados?

Há muitos interesses envolvidos, principalmente financeiros. A saúde é um mercado lucrativo que sobrevive às crises. E os interesses de mercado nem sempre são os mesmos interesses dos pacientes e do coletivo. Infelizmente, essa tragédia da Prevent Senior aponta para a falta de regulação estatal no mercado da saúde. A ANS, por exemplo, é um órgão público que parece muito mais dominado pelos interesses das empresas privadas do que a defesa dos interesses dos pacientes. Basta ver o posicionamento da agência frente aos reajustes abusivos dos planos de saúde e a falta de atuação fiscalizadora na qualidade da prestação de serviços.

Esta pandemia escancarou o perigoso sistema de saúde brasileiro; perigoso tanto para os que utilizam exclusivamente o SUS, sistema tão bem desenhado, mas tão mal financiado, quanto para os que usam planos privados. Como lembra a Profa. Lígia Bahia, se aqueles que possuem um seguro de saúde conseguem a internação e exames mais rápido, por outro lado, muitas vezes a qualidade é inferior à do SUS (eu acrescentaria como no próprio caso da Prevent Senior). Possivelmente o Sr. Tadeu Francisco de Andrade, que depôs na CPI, sequer cogitaria ser submetido àquilo que a Prevent denominou de “cuidados paliativos” se este tivesse sido tratado no SUS.

 

 

Fortalecimento do SUS

 

Os hospitais do SUS estão mais próximos das universidades, de conhecimentos técnicos e menos dos interesses privados. Por outro lado, ainda que aqueles que conseguiram se internar no SUS certamente tiveram cuidados melhores do que os prestados pela Prevet Senior no que se refere à Covid-19, é sabido que pessoas morreram à espera de uma internação em leitos ou UTIs do SUS. A solução é o fortalecimento do Sistema Único de Saúde, é a ampliação do financiamento público, o fortalecimento dos órgãos reguladores e das redes de atenção à saúde, a qualificação dos gestores da saúde pública, os quais devem ser muito mais pautados por critérios técnicos do que por indicação política.

 

IHU – O senhor já aponta que todo o caso Prevent Senior, da pesquisa à gestão enquanto operadora de saúde, revela fragilidades dos organismos regulatórios. Gostaria que detalhasse essas fragilidades.

 

Fernando Hellmann – O caso da Prevent Senior revela fragilidades em organismos regulatórios, como o da própria ANS, como havia dito anteriormente. Por outro lado, também revela as fragilidades do Sistema Comitê de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CEP/CONEP, dos Comitês de Ética em Pesquisa no Brasil, o qual “regula” as pesquisas envolvendo seres humanos no país. Embora tenhamos um sistema que serve de exemplo para vários países, este também tem suas fragilidades.

Dentre as maiores fragilidades estão a falta de acompanhamento das pesquisas aprovadas e que estão sendo executadas no Brasil. Os membros do Sistema CEP/CONEP, embora tenham capacitação em ética em pesquisa, nem sempre possuem conhecimentos profundos da metodologia da pesquisa que analisam, o que deveria ser feito por um grupo de especialistas em metodologia, estatística, farmacologia e por aí vai. Um mesmo ensaio clínico que ocorre em múltiplos centros de pesquisa é analisado por cada um dos centros. Por um lado, isso é bom, pois são mais olhares sobre um projeto; por outro, pode haver conflitos de interesses caso o CEP não seja de fato independente da instituição tal como é expresso nas resoluções nacionais.

Não há, por exemplo, um sistema de registro dos ensaios clínicos recusados por um CEP para que seja acessado por outros Comitês, para que estes possam consultar e tomar decisões e evitar que os pesquisadores e a indústria pulem de comitê em comitê até que seu protocolo seja aprovado. Os CEPs não analisam, por exemplo, os contratos estabelecidos entre as indústrias farmacêuticas e os pesquisadores e a instituição, e há estudos demonstrando que o que é aprovado no CEP nem sempre é o mesmo que é descrito em tais contratos de pesquisa.

 

“CEP/CONEP é uma caixa preta”

 

No próprio caso da Prevent Senior, um protocolo de pesquisa semelhante ao descrito anteriormente que ocorreu sem aprovação prévia foi aprovado pela CONEP. Eu não tive acesso para analisar o projeto, mas se foi semelhante àquele realizado ele notadamente tinha problemas metodológicos que não poderiam gerar conhecimento válido. O próprio Sistema CEP/CONEP é uma caixa preta. É muito difícil realizar estudos sobre ética em pesquisa com os protocolos de pesquisas analisados no Sistema.

Eu digo isso por experiência própria, sou membro de CEP desde 2009 e, em pesquisas que desenvolvi sobre ética em pesquisa com CEPs, alguns negaram participar, notadamente os de instituições privadas, justificando a não participação em nome do sigilo. O próprio Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLEs) de um participante de um protocolo aprovado não fica disponível para consulta pública. Os TCLEs, especialmente de ensaios clínicos, deveriam ser documentos públicos para maior controle social. Superar essas e outras fragilidades passa por fortalecer as instituições que defendem o interesse público, as quais carecem de financiamento, de pessoal técnico e, às vezes, até mesmo de espaço físico.

 

 

IHU – Como analisa o trabalho da CPI da Pandemia na divulgação do caso Prevent Senior? Que desdobramentos ainda podem ocorrer?

 

Fernando Hellmann – A maior parte dos que participam de pesquisas científicas decide por tomar parte nelas pois acredita plenamente nos profissionais de saúde, sobretudo nos médicos que os tratam, sem entender os reais riscos a que estes se submetem. De forma semelhante, boa parte dos brasileiros acredita que estão seguros se possuem planos de saúde privados, o que não é uma verdade absoluta. A CPI da Covid do Senado Federal, bem como a CPI da Câmara Municipal de São Paulo, somadas às denúncias jornalísticas, deram luz a uma fraude científica perversa e expuseram os riscos aos quais os usuários de planos de saúde privados estão submetidos.

É importante que possamos aprender enquanto nação com esta trágica situação. Os diretores da Prevent Senior e outros médicos responsáveis foram indiciados pela CPI por diversos crimes, tais como omissão de notificação de doença, de falsidade ideológica, de perigo à vida e à saúde de outros, além de fortes indícios de manipulação de prontuários e de dados de experimentação científica com cloroquina e hidroxicloroquina sem o consentimento dos pacientes. A CPI, que se encontra no âmbito político e tem seus limites, produziu um relatório apontando as pessoas que devem ser investigadas pela esfera processual penal.

Porém, os desdobramentos que ainda podem vir a ocorrer serão as cenas dos próximos capítulos. Caberá aos órgãos competentes a responsabilização penal dos indiciados pela CPI, tal como o Ministério Público, através de seu representante máximo – o Procurador-Geral da República – Augusto Aras. Particularmente, acho que a Procuradoria Geral da República poderia ser mais célere no que se refere a apurar os desdobramentos da CPI. Convém ressaltar que Aras foi indicado pelo presidente Bolsonaro e que, embora tenha currículo para assumir o cargo de procurador, ele não está isento de conflito de interesses.

Outro possível desdobramentos poderia ser a cassação do registro dos médicos indiciados no caso da Prevent Senior. Contudo, creio que isso não ocorrerá, haja visto que a própria gestão atual do Conselho Federal de Medicina – CFM tem sido omissa e até mesmo cúmplice no que se refere a questão do kit Covid, através da falaciosa autonomia médica. Ora, a autonomia médica se dá dentro daquilo que é comprovado pela ciência, o que não foi o caso frente aos referidos medicamentos indevidamente testados.

 

 

IHU – O que fazer para que o caso Prevent Senior não se repita?

 

Fernando Hellmann – É muito difícil dizer o que pode ser feito para além daquilo que já fazemos. Contudo, sejamos realistas esperançosos, tal como Ariano Suassuna: histórias semelhantes à da Prevent Senior vão se repetir não importa o que façamos. Basta olhar a história da ética em pesquisas com seres humanos. Porém, é claro que sempre haverá medidas para que essas barbaridades diminuam.

A clássica fórmula da educação é um dos caminhos. Educar profundamente profissionais de saúde em ética em pesquisa e em conflitos de interesses públicos e privados em saúde, por exemplo. Outra possibilidade é responsabilizar, a partir do devido processo penal, aqueles que impetraram tais barbaridades, já que muitas vezes parece que é praxe a impunidade daqueles que violam os códigos de ética em pesquisa e de ética profissional. Fortalecer os órgãos reguladores, tais como a Agência Nacional de Vigilância em Saúde – ANVISA, a Agência Nacional de Saúde – ANS e o Sistema CEP/CONEP é também uma das medidas. Fortalecer a ciência aberta, a regulação em saúde e fortalecer o Sistema Único de Saúde também são ações que podem convergir para a diminuição destas atrocidades.

Afinal, entendo a saúde não enquanto mercadoria, mas sim como direito do cidadão e dever do Estado. O caso da Prevent Senior escancara que, quando a saúde é tomada como mercadoria com a finalidade de lucro, os melhores interesses dos pacientes ficam em segundo plano.

 

 

IHU – Deseja acrescentar algo?

 

Fernando Hellmann – Gostaria de ressaltar que a gestão da pandemia no Brasil, sobretudo pelo Palácio do Planalto, é caótica e irresponsável. Arrisco a dizer que é uma gestão necropolítica. Só para se ter uma ideia, estima-se que, em janeiro de 2022, a população brasileira some 211 milhões de habitantes, o que representa 2,7% da população mundial. Se o Brasil fosse responsável por 2,7% das mortes globais de Covid-19, as quais somaram 5,49 milhões em 10/01/2021, aproximadamente 148.000 pessoas teriam morrido no país.

No entanto, nesta mesma data, um pouco mais de 620.000 pessoas morreram de Covid-19 no Brasil. Ou seja, 472.000 mil mortes potencialmente evitáveis. Embora esta trágica gestão não se resuma à narrativa do tratamento preventivo e precoce com o kit Covid, eu volto a dizer que o caso da Prevent Senior permitiu sustentar a narrativa do Governo Federal em ações com medicamentos ineficazes (cloroquina, azitromicina, ivermectina, entre outros) para Covid-19.

A relação entre o bolsonarismo e a Prevent Senior é evidente e inegável. Entre elogios à empresa e críticas ao Sistema Único de Saúde, Jair Bolsonaro e seus filhos Flávio e Carlos defenderam o kit Covid e divulgaram em suas contas no Twitter os resultados do estudo da empresa sobre o uso de hidroxicloroquina no chamado tratamento precoce. No início de abril de 2020, o presidente Bolsonaro promoveu live com médicos da Prevent Senior, incluindo o diretor Pedro Batista, para falar sobre o tratamento precoce para a Covid-19.

Dois ministros da saúde foram ceifados por defender a lógica da ciência frente ao uso da cloroquina contra a Covid-19 enquanto um general sem conhecimento algum de saúde foi colocado no lugar para que o protocolo que incluía cloroquina pudesse trazer falsas esperanças para a população. As Diretrizes do Ministério da Saúde para o tratamento medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da doença foram lançadas na gestão do General Pazuello e permaneceram vigentes por mais de um ano, mesmo quando as evidências científicas mostravam sua ineficácia.

 

 

Política da omissão

 

A política da omissão frente às ações comprovadas cientificamente como eficazes no combate à Covid-19 foram hábito da gestão de Bolsonaro. Sem entrar no mérito da recusa de ofertas de vacina para o Governo Federal, da falta de política de testagem de larga escala, da oposição do presidente frente às medidas de distanciamento social e ao uso de máscaras, somadas ao pseudo “tratamento precoce” colocaram em risco a vida de milhares de pessoas.

Para a Prevent Senior, o tratamento precoce foi uma jogada para manter os lucros da empresa, e para o governo federal foi uma medida populista para não apoiar o distanciamento social, contribuindo para acelerar com os péssimos indicadores de mortalidade por Covid-19 no Brasil. O caso Prevent Senior e a gestão da pandemia no Brasil são uma tragédia anunciada já descrita nos anais da história.

 

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