18 Setembro 2021
"Rede de hospitais usou pacientes como cobaias humanas para a cloroquina e escondeu, dos 'estudos', a morte de vários deles. Presidente celebrou os resultados. Falta saber se, além disso, ajudou a tramar o experimento clandestino", escrevem Leila Salim e Raquel Torres em newsletter diária, um resumo interpretado das principais notícias sobre saúde do dia, publicado por OutrasPalavras, 17-09-2021.
“Por favor, não informar o paciente ou familiar sobre a medicação e nem sobre o programa”. Assim, sem meias palavras, Fernando Oikawa, diretor da operadora privada de saúde Prevent Senior, orientou subordinados a usar pacientes como cobaias para testes com cloroquina para o tratamento de covid-19, segundo a denúncia de médicos.
Além da flagrante violação de normas éticas elementares – que prevêem o consentimento explícito de pacientes para participação em testes desse tipo –, a ocultação de mortes entre pacientes submetidos ao tratamento, a publicação de dados não revisados e mesmo falsos, a alteração de prontuários e a coação de médicos estão entre as denúncias que vieram à tona ontem, reveladas pelo jornalista Guilherme Balza em reportagem para a GloboNews.
O caso, que repercutiu durante todo o dia, ainda tem ao menos um fio – crucial – solto: as denúncias dão conta de que o tenebroso “estudo” seria um desdobramento de acordo firmado entre a Prevent e o governo Bolsonaro no início da pandemia para testar e disseminar a cloroquina, a ivermectina e a azitromicina.
Saber se a tratativa de fato exisitu e, caso confirmada, conhecer especificamente os termos desse acordo, os responsáveis por sua condução e os interesses por trás das negociações é fundamental para elucidar as muitas faces do genocídio. Afinal, até onde vai a explosiva combinação entre desprezo pela vida, negacionismo, sede por lucros e aparelhamento do Estado que é característica da gestão bolsonarista da crise sanitária?
As denúncias reveladas pela GloboNews constam de um dossiê enviado à CPI da Covid por médicos que trabalham ou trabalharam na Prevent. Ontem seria justamente o dia do depoimento de Pedro Batista Júnior, diretor-executivo da Prevent, à comissão. Mas, alegando “falta de tempo” para se preparar, ele faltou. A oitiva foi adiada para semana que vem. Assinado por quinze profissionais, o dossiê que está nas mãos da CPI compila documentos, relatos, prints de mensagens, áudios, e-mails e planilhas que comprovariam, por exemplo, que os responsáveis pela pesquisa reportaram apenas duas, das nove mortes ocorridas entre as “cobaias” do tratamento com hidroxicloroquina associada à azitromicina. Os nomes dos médicos foram mantidos em sigilo por questões de segurança. Alguns deles falaram também à reportagem.
Realizado em março do ano passado, em São Paulo, o estudo foi, é claro, enaltecido por Bolsonaro. Ele chegou a postar os “resultados” – divulgados antes mesmo da revisão de dados pelos profissionais forçosamente envolvidos no experimento – em suas redes sociais e reforçar como comprovariam o sucesso do tratamento com a droga. Um médico que trabalhava na Prevent disse à GloboNews que o resultado da pesquisa, que teria sido manipulada para comprovar a qualquer custo a eficácia da cloroquina, já estava pronto muito antes da conclusão do estudo.
Entre os nove pacientes mortos, seis estavam no grupo que foi submetido ao tratamento com hidroxicloroquina e azitromicina e dois no grupo que não recebeu as drogas. Há, ainda, um outro paciente que morreu, mas sobre ele as informações não indicam em que grupo estava. Assim, o que se sabe é que houve pelo menos o dobro de mortes entre os participantes que tomaram cloroquina. Mas o artigo com os resultados da pesquisa, divulgado em 15 de abril em preprint (sem revisão por pares), registra apenas duas mortes no grupo que recebeu a medicação. E, ainda assim, diz que elas não teriam sido causadas por covid-19, mas por outras doenças.
O estudo da Prevent acabou se tornando uma espécie de tábua de salvação para Bolsonaro e sua trupe de cloroquiners. Isso porque, dias antes de sua divulgação, um outro estudo com a droga, esse realizado em Manaus, havia sido suspenso por conta da morte de pacientes. Assim como o estudo conduzido pelos hospitais Albert Einstein e Sírio-Libanês, a pesquisa também não encontrou evidências da eficácia da medicação.
Bolsonaro, Mayra Pinheiro e muitos outros bolsonaristas, então, não hesitaram em agarrar com todas as forças o estudo da operadora, que, entre outras fragilidades, testou para covid-19 apenas 93 dos 636 pacientes participantes. Isso mesmo: somente se verificou se 14,7% do total de participantes estavam infectados. No fim das contas, menos de 10% deles (62 pessoas) tiveram resultado positivo.
Um registro: a Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) suspendeu a autorização para realização do estudo depois de constatar que os testes já estavam sendo conduzidos antes de sua liberação formal. É claro que isso também não constrangeu o governo Bolsonaro e a própria Prevent de utilizá-los como base para seguir prescrevendo a cloroquina para pacientes com covid.
A lista das denúncias é muito mais extensa, e dá conta ainda de que a operadora escondeu mortes por covid usando o subterfúgio de alterar o código de diagnóstico (CID) do prontuário dos pacientes. A desculpa era retirar a informação das fichas após 14 dias da confirmação de infecção, para que as medidas de isolamento pudessem ser interrompidas. Na prática, quando os pacientes se agravavam e morriam, a causa que constava dos documentos oficiais era outra que não covid-19. A reportagem da GloboNews comprovou dois casos em que a doença foi omitida da declaração de óbito dos pacientes.
Em março, o Ministério Público de São Paulo abriu investigação contra a Prevent para apurar prescrição indiscriminada do famigerado “kit covid”, até mesmo para pacientes sem diagnóstico confirmado. Médicos relataram, em suas denúncias, terem sido coagidos a fazê-lo. Além do MP-SP, o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa da Polícia Civil de São Paulo e ANS também abriram investigações.
Uma outra investigação contra a Prevent havia sido conduzida pelo MP-SP ainda no ano passado, essa para apurar se operadora havia omitido óbitos por covid no começo da pandemia e sido negligente nas medidas sanitárias dentro de seus hospitais. Isso porque, nos primeiros meses da crise sanitária, as unidades da rede concentravam mais da metade das mortes em São Paulo. A suspeita era de que muitos dos pacientes tivessem dado entrada por outros motivos e, diante da falta de medidas adequadas, se contaminado nos hospitais. Mas, em agosto de 2020, o órgão concluiu que apesar de ter havido irregularidades nas notificações, elas não teriam sido intencionais.
O governo federal parece disposto a minar a característica mais importante que o Brasil tem no caminho para vencer a pandemia: uma população que confia nas vacinas e que, em havendo imunizantes disponíveis, os recebe em massa. Ontem o Ministério da Saúde retirou adolescentes de 12 a 17 anos sem comorbidades da lista de grupos cuja vacinação é recomendada. Em nota, disse que a posição “segue evidências científicas e posição da OMS”.
Mas isso é mentira. À noite, o ministro Marcelo Queiroga admitiu que o responsável pela mudança foi alguém que não entende nada de vacinas, nem de OMS, nem de evidências científicas: Jair Bolsonaro. “O senhor tem conversado comigo sobre esse tema e nós fizemos uma revisão detalhada no banco de dados do DataSUS”, afirmou Queiroga, em transmissão online ao vivo com o presidente.
Bolsonaro, por sua vez, disse que apenas levou ao ministro o seu “sentimento”. E, bem ao seu estilo, regou a desconfiança já plantada: “A minha conversa com Queiroga não é uma imposição. (…) A OMS é contra a vacinação entre 12 e 17 anos. A Anvisa, aqui no Brasil, é favorável à vacinação de todos adolescentes com a Pfizer. É uma recomendação. Você é obrigado a cumprir a recomendação?”. Queiroga respondeu: “Não. Eu não sou obrigado”.
A OMS nunca recomendou não vacinar essa faixa etária. A orientação é apenas a de que estes adolescentes estejam no fim da fila, depois de todas as pessoas em grupos com maior risco – exatamente o que o Brasil vinha fazendo até agora.
Quanto à suposta falta de evidências – a pasta diz que “os benefícios da vacinação em adolescentes sem comorbidades ainda não estão claramente definidos” –, isso também é mentira. O imunizante da Pfizer/BioNTech, único aprovado até agora pela Anvisa, não apenas teve ensaio clínico de fase 3 para essa faixa etária como já está sendo usada para em vários países.
Existe, sim, uma discussão entre especialistas sobre os (raros) efeitos adversos desse imunizante em pessoas mais jovens. O mais grave deles, a miocardite, é uma condição temporária mais prevalente em pessoas do sexo masculino após a segunda dose. Autoridades de saúde mundo afora levam isso em consideração e, ainda assim, têm entendido que os benefícios da vacinação superam os riscos. Primeiro porque, embora seja mais baixo em adolescentes, o risco de morrer por covid-19 existe – e é bem maior do que o apresentado pela miocardite. Além disso… covid-19 também pode causar miocardite.
Segundo porque a vacinação não é apenas uma medida de proteção individual: as pessoas precisam se vacinar também para proteger quem está ao redor. Com a Delta – muito mais transmissível – isso se complicou um pouco. Mas não deixou de ser verdade. Ainda que essa variante possa provocar mais infecções entre vacinados e que eles possam transmitir o vírus, o papel dessas pessoas na transmissão tem tudo para ser muito menor (veja aqui, aqui e aqui, por exemplo).
O mais grave na postura do Ministério da Saúde talvez nem seja o fato de não recomendar a vacinação desse público-alvo. Governos mundo afora têm tomado decisões diferentes em relação a essa faixa etária com base em suas próprias realidades, e não há nada extraordinário nisso.
Mas o que aconteceu aqui é de outra ordem. Há apenas duas semanas o Ministério da Saúde havia publicado Nota Técnica recomendando a vacinação de todos os adolescentes a partir do último dia 15. Aqueles sem comorbidades estavam no fim da fila, mas estavam lá. Isso obviamente poderia ser modificado a qualquer momento, se houvesse dados apontando essa necessidade. Mas nenhuma nova evidência surgiu de lá para cá; a posição da OMS tampouco mudou.
A guinada veio de repente, sem embasamento científico e sem passar pelos conselhos dos secretários estaduais e municipais de Saúde (Conass e Conasems), como seria o rito normal. Além disso, Queiroga e secretários da pasta apresentaram superficialmente, em coletiva de imprensa, informações pouco precisas que põem em xeque a credibilidade das vacinas. O secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros, citou até o caso de um jovem morto em São Paulo. Mas a Anvisa, que está investigando o caso, informou que até agora não há nenhum indício de que o óbito esteja relacionado ao imunizante – e frisou que mantém a aprovação do produto para essa faixa etária.
Queiroga disse ainda que foram aplicadas mais de 26 mil doses de vacinas não aprovadas pela Anvisa para adolescentes e que há casos de quem recebeu três doses. Tudo isso pode ser verdade, mas não seria motivo para interromper a campanha (erros acontecem desde o começo em todas as faixas etárias). Gestores estaduais e municipais questionam esses números, que podem ser na verdade erros de registro no sistema do Ministério.
O resultado mais imediato da decisão federal foi, como era de se esperar, uma confusão generalizada. Grande parte do país já tinha começado a vacinar os adolescentes – em alguns estados, a campanha começou em agosto – e, na mesma hora, várias cidades mandaram parar. Outras vão manter. O Conass e o Conasems não recomendam a suspensão. A Sociedade Brasileira de Imunizações também publicou nota se posicionando contra o Ministério: “as justificativas apresentadas [pela pasta] não são claras ou não têm sustentação”, diz o texto.
O presidente do Conass, Carlos Lula, insinuou até que a medida foi tomada apenas porque não há vacinas suficientes. Ele também criticou a condução geral do Ministério na pandemia (“Cada um está fazendo do seu jeito, da sua maneira, porque a gente não tem o ministério como condutor da política neste momento. Como não teve durante a pandemia inteira”) e disse que, na prática, “ninguém vai respeitar a decisão do ministério”. De acordo com ele, isso vai jogar a reputação da pasta “na lata do lixo”.
Pode até ser que a maioria dos estados e municípios decidam não seguir o Ministério. Mas quais serão os efeitos dessa verdadeira campanha antivacina para a população, que só precisa de uma mensagem clara e unificada para se sentir segura?
O Brasil foi o país que ficou sem aulas presenciais nas pré-escolas e ensino fundamental por mais tempo no ano passado, entre os analisados em um relatório da OCDE (a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Foram 178 dias – o triplo de tempo na comparação com a média dos países mais ricos.
E, só para frisar, isso nem leva em conta 2021. Segundo o estudo, mesmo os países que mantiveram escolas fechadas por longos períodos no ano passado estão menos propensos a fechá-las este ano. Mas no Brasil boa parte das escolas só retomou as atividades presenciais no segundo semestre, e ainda há milhões de crianças sem acesso a elas.
Dois terços dos países relataram aumento no financiamento da educação para ajudar a enfrentar a crise. E aqui? Nenhum incremento.
Um problema é que as nações onde o desempenho escolar já era mais baixo foram justamente as que fecharam mais tempo. É o caso do Brasil, que tem uma das maiores lacunas de desempenho educacional entre alunos pobres e ricos. E, durante a pandemia, sabemos bem quais foram os mais prejudicados.
A propósito: embora a vacinação de adolescentes não seja necessária para um retorno seguro às salas de aula, obviamente é uma importantíssima camada de proteção. Conseguir que seus estudantes possam frequentar a escola com menos percalços é algo que os países têm colocado na balança quando decidem recomendar que os adolescentes se vacinem – afinal, as quarentenas de alunos infectados e de seus contatos têm impacto negativo na aprendizagem. E é algo que o Ministério da Saúde brasileiro deveria ter levado em conta. Os estudantes daqui, já suficientemente maltratados pela falta de atenção das autoridades, merecem estudar em paz.
O Ministério da Saúde recuou em relação à redução do intervalo entre doses da vacina de Oxford/AstraZeneca. Inicialmente eram 12 semanas, depois a pasta decidiu que passariam a ser oito. Agora, a decisão é de manter as 12. O motivo é ruim: a falta de vacina. Mas o resultado pode ser bom. Diversos estudos têm demonstrado que intervalos mais longos levam a respostas melhores.
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O escândalo da Prevent Senior e o dedo de Bolsonaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU